Luzes da Ribalta escrita por Roxane Norris


Capítulo 1
Rapsódia




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Luzes da Ribalta

 

Eu não sei por que vagava por aquela rua, meus pés andavam rápidos por sucessivas calçadas como se me levassem a um compromisso inadiável. Entrementes, eu não me lembrava de nenhum. Era véspera de minha audição no concurso inter-escolar, não sei bem se sentia nervoso, mas uma agitação inexplicável parecia correr dentro de mim. Ainda que eu tentasse encarar friamente, como sempre, aquele momento.

 

Dobrei a esquina, as mãos nos bolsos. O cachecol enrolado ao pescoço, o grosso sobretudo e um gorro de lã cinza. Patético. Suspirei fundo, vendo a neve começar a cair em flocos brancos sobre mim. Eu devia estar em casa, treinando uma vez mais... repassando a melodia de Paganini. Mas sinceramente, não era onde eu queria estar. Olhei meu sapato, cujo preto desaparecia sobre o branco e voltei a andar, projetando em minha mente as notas daquele compasso.

 

Eram breves, semi-breves... Colcheias, semifusas. Cadenciadas, e eu quase podia fundir todas numa melodia única quando parei bruscamente. Ouvindo algo que não estava lá, mas sim, em Paganini. E sem abrir meus olhos, eu bebi daquele som como se saboreia um vinho. Notas extraídas de um violino perfeitamente, em harmonia. Guiei meus passos por ela, para o teatro ali perto.

 

Fitei o cartaz onde dizia: Il Cannone por Guarnieri. Por alguns instantes eu ri da audácia daquele cartaz. Certamente quem o fizera, tinha-se em alta conta, principalmente pelo contraste do título com o lugar que escolhera para se apresentar. Os acordes perfeitos novamente chegaram aos meus ouvidos, e eu me decidi: paguei a entrada e escorreguei no escuro pela fileira de cadeiras de um veludo castanho roto. Sentei, envolvido pela melodia plena que enchia aquele lugar escuro e abafado... quase vazio. E só então, me permiti fitar Guarnieri executando a peça no violino ao centro do pequeno palco. O que o lugar a fazia perder em tamanho, ela ganhava na dimensão de sua execução. Poucas vezes vi Paganini tocado dessa forma...

 

Eu era apenas um amante de violino comparado aquela exibição fantástica. Remexi-me inquieto na poltrona, ainda perdido nos cabelos castanhos escuros que caíam pelos ombros da moça num vestido reto, diáfano, azul. Tão poucos detalhes em si mesma, mas tantos em sua música. Na forma de segurar o violino e de tocá-lo. Peculiaridades, que eu apreciava com esmero e dedicação. Dedos mágicos os dela... e agora, somente eu estava ali.

 

A execução terminara, e ela agradeceu como se a casa tivesse cheia... E sorriu como se os aplausos eclodissem em cada canto daquele teatro vazio. Só havia eu, que me erguera para bater palma. Mesmo me sentindo estranho em ser o único, estava certo de que era merecedora de um platéia lotada e intensa. As cortinas fecharam e eu voltei para a rua, ponderando que o cartaz fazia jus a moça do teatro.

 

Ergui a gola do sobretudo ao alcançar a rua. O vento sibilava forte quando tomei o caminho de volta para minha casa. Eu não tinha mais tanta pressa nos meus pés, pensava em Guarnieri. Ouvia Il Cannone. Crispei os lábios, achando agora, o cartaz perfeito. Continuei descendo a rua, me perdendo em novos arranjos para o compasso de meus pés no chão. Então algo colidiu comigo, me levando ao chão junto ele.

 

- Sumimasen – Eu ouvi quase pronto para brigar seriamente com quem fizera aquilo, mas os castanhos alargados sobre mim e os traços finos me impediram de alguma forma.

 

- Daijoubu – respondi, auxiliando-a a se erguer. - Você está bem?

 

- Hai... - Ela desviou o rosto, rubro. - Arigatou.

 

Eu tinha a impressão de já tê-la visto em algum lugar.

 

- Não nos conhecemos?

 

- Iie – retrucou, virando-se apressada para seguir seu caminho, e só então, os cabelos fugiram de seu gorro. Castanhos como o Guarnieri.

 

- Il Cannone – murmurei, fazendo-a parar.

 

- Então era você? - Ela pareceu divertida com isso e voltou os castanhos para mim. - Perdoe-me, uma vez mais, pela tortura.

 

Sorriu-me de modo franco, estendendo-me a mão, que eu tomei após algum tempo na minha.

 

- Prazer, me chamo Juliana Guarnieri.

 

- Len Tsukimori – obriguei-me a responder.

 

- Toma um chocolate? - disse, olhando por cima do meu ombro.

 

- Olha, eu realmente tenho que ir...

 

- Vamos... - Ela passou por mim, pegando meu braço e puxando-me na direção da cafeteria a nossas costas. - É o mínimo que eu poderia fazer, eu te derrubei e o fiz passar longos minutos sentado e entediado.

 

- Está enganada – protestei assim que entramos no café, e ela parou sob o portal.

 

- Mesmo? - Sorriu uma vez mais enquanto procurava uma mesa para nós. - Não acredito que não esteja somente sendo cortês. - Ela se sentou.

 

- Não, não estou – retruquei seco, sentando-me à frente dela.

 

Ela não tinha se envergonhado de tropeçar em mim? O que fazíamos ali? Esfreguei minhas mãos e olhei pela vidraça enfumaçada.

 

- Você não está confortável, não é?

 

O rubor voltara.

 

- Não – optei novamente por uma resposta curta.

 

- Desejam algo? - a garçonete chegou até nós.

 

Eu silenciei, aguardando o que ela faria. Ela pediu sem me perguntar o que eu desejava.

 

- Dois chocolates quentes.

 

A mulher se afastou com um assentimento, e sentenciei baixo:

 

- Não tomo chocolate.

 

Ela se inclinou sobre a mesa, olhando furtivamente para o lado, e me segredou:

 

- Também não costumo tocar Paganini.

 

- Isso é alguma brincadeira? - Ela me tirou do sério.

 

- Não. - Mordeu o lábio inferior. - Gosto de Liszt.

 

Silêncio.

 

- Você toca? - perguntou, fitando-me curiosa.

 

- Por que?

 

- Não sei quem agüentaria tanto tempo sentado ali me ouvindo – disse pesarosa.

 

- Toco.

 

- Piano? - arriscou interessada.

 

- Violino.

 

Castanhos brilharam e a garçonete depositou os dois chocolates na mesa.

 

- Gosta de Paganini?

 

- Sim. – Mexi, desinteressado, o líquido espesso.

 

- Beba enquanto está quente. – Tomou a xícara entre os dedos e a levou aos lábios como uma criança.

 

Vencido, eu a imitei. Não devia ser desagradável quando ela só queria ser gentil.

 

- Tenho que ir... - Ela se ergueu de repente, depositando a xícara no pires.

 

- Como? - retruquei aturdido, interrompendo minha degustação.

 

- Sabe, está tarde demais... e amanhã eu tenho uma audição logo cedo - explicou ao abrir sua carteira.

 

- Eu pago – impedi-a de ser descortês comigo, não consentiria aquilo.

 

Ela concordou e prosseguiu até a porta.

 

- Venha me ver, se quiser se torturar mais um pouco. – Acenou com a mão. - Será no auditório do Colégio Seiso Gakuen – completou ao sair pela porta.

 

Eu simplesmente voltei a sentar e fitei meu chocolate.

 

Eu competiria com ela?


Sem me dar conta, bebi o líquido doce de uma vez só.

 

...xxx...

 

- Ohayou, Len – a voz de Kahoko soou perto, mas não me atingiu como antigamente.

 

Fitei-a por instantes antes de responder de forma polida e me afastar dela. O que tanto me preocupara, de certa forma, no último ano, não passava de uma brisa suave nesse momento. E inacreditavelmente, eu não queria ficar perto dela. Não queria ficar perto de ninguém. Tomei a direção do auditório, e ao invés de procurar pelos bastidores, me enfiei numa das salas de música. Sentia-me estranhamente inseguro com aquela maldita melodia de Paganini ressonando na minha mente. Retirei o violino do estojo e comecei a tocá-lo.

 

Desde a tarde anterior, eu não havia extraído uma nota sequer dele, precisava somente ouvi-lo vibrar entre meus dedos, comandado por mim. Cada sustenido e bemol... Fechei os olhos, sentindo meus músculos acompanharem o compasso da melodia que preenchia o ar a minha volta. Intensa e grandiosa como ouvira no teatro, e não percebi que pensava nos castanhos. Na imensidão que era aquelas cadeiras vazias e na dimensão solitária que elas tomavam vistas do palco. Apenas sentia que devia fazer minha música ultrapassar aquelas paredes e alcançar o mundo.

 

Agarrei-me com vigor em cada nota, deixando-as fluir sem barreiras por mim. Quando eu tocava meu violino, um mundo só meu e dele se formava... mas naquele momento, eu queria ganhar o dela. Queria alcançar a satisfação que havia na melodia que saíra do Cannone. E não senti os minutos passarem, estava envolvido demais com minha música e nossos mundos.


- Len... - Kazuki surgiu de repente ao meu lado, esbaforido. - É a sua vez.


Eu podia repreendê-lo naquele instante por ter me interrompido de uma forma tão abrupta, mas me detive, crispando as mãos sobre o violino. A imprudência havia sido minha em me trancar ali, deveria ter ido me juntar aos outros quando se aproximou a hora da audição, mas me contentara em me isolar. Parece-me inútil dizer como me sentia, mas o fato é que tinha medo de vê-la. Medo de uma menina, que tocava violino tão bem quanto eu, numa sala vazia. Vazia...

 

Passei rápido por entre todos ali, se fosse acusado de qualquer coisa, seria de nervosismo e de minha capacidade de parecer indiferente a eles, como sempre. Entrei no palco sem olhar a platéia, lembrava-me somente do teatro vazio. Empunhei meu instrumento e iniciei minha apresentação. E nunca me senti tão sozinho como quando busquei, ali, as notas perfeitas. Tão perfeitas quanto as dela. Não era a mesma exatidão da Kahoko, nem a minha paixão pelo violino... era algo que tangia os dois, e que fugia completamente ao meu domínio. E por mais que me concentrasse, não a alcançava... Por quê?

 

Curvei-me em agradecimento aos aplausos e deixei o palco. Novamente não a vi, apenas assenti para os que falavam comigo e busquei a saída dali.

 

- Guarnieri... - Eu ouvi o nome ser anunciado.

 

Então ela estava lá...

 

A porta do corredor onde eu estava se abriu quase acertando-me o rosto, mas antes que eu dissesse qualquer coisa, ela me sorriu.

 

- Len, você veio! - Abraçou-me entusiasmada. Eu via pelos castanhos brilhantes dela.

 

Ela não tinha noção mesmo de que éramos competidores do mesmo universo.

 

- Vim. – Estranhamente eu não quis afastar aquele sorriso do rosto dela, mesmo que minha razão gritasse que deveria. No instinto, abracei-a.

 

Talvez o fato de ter feito isso, assustou-a, e no instante seguinte, ela se afastou sem graça. Mulheres são estranhas, se abraçam, não querem ser abraçadas. Conclui.

 

- É a primeira vez que toco para alguém... - disse apressada, retirando o casaco e revelando o azul do vestido de ontem.

 

- Você está atrasada – revelei, devolvendo minhas mãos aos bolsos. Não sabia o que fazer com elas, eu era melhor com violinos.

 

- Guarnieri... - o chamado soou uma segunda vez.

 

Ambos olhamos para os auto-falantes, acima de nossas cabeças, e depois nos encaramos.

 

- Vai perder sua apresentação, e outro concertista pode roubar-lhe a primeira colocação...

 

- Está tão certo que consigo?

 

Ora, ela tocava melhor do que eu, mas eu não ia dizer isso.

 

- Tocarei para você – disse como se fosse a coisa mais simples do mundo e beijou-me a bochecha. - Vai me ouvir não é? Como ontem...

 

Surpreso, eu estava surpreso.

 

- Sim... - foi tudo que articulei e a vi sair correndo pelo caminho que me trouxera até ali.

 

Mas que porcaria era aquela? Baixei a cabeça e desci as escadas na direção do anfiteatro. Eu queria que ela ganhasse.

 

Sentei-me numa poltrona ao canto, dessa vez revestida em veludo azul lustroso, em meio a uma platéia cheia e atenta. Ela se posicionou no meio do palco, exatamente como na noite anterior, quando eu a assistia sozinho... e me enebriou. Sim, me encantou com a melodia de Liszt, com a harmonia em notas e movimentos de mãos de firmes. Perfeitos. E não me importei de ser o primeiro a levantar e aplaudi-la. Me sentia na ribalta vazia, onde ela tocava para mim. Um único espectador daquela obra-prima... daquela genialidade. Ao menos era assim que eu queria que fosse, mas sabia que quem a ouvisse, teria essa mesma impressão.

 

Então, ela ganharia o mundo...

 

As luzes de outras ribaltas...

 

Teatros repletos...

 

E o que seria de um único espectador, como eu, na última fila da platéia vazia?

 

Eu não era isso tudo... Não era tão bom espectador assim.

 

Eu era melhor tocando.

 

Levantei-me da poltrona e deixei o teatro, em três semanas haveria outra audição e eu certamente não queria perder para ela. Não queria ser só um expectador.

 

Sorri de mim mesmo.

 

Tomei a direção da sala de aula, o estojo entre meus dedos.

 

- Ei... - Eu não me virei e ela avançou. - Por que não me disse que competia comigo?

 

- Porque não me perguntou. – Continuei andando.

 

- Acho que não se importou com isso. – Ela parou, me deixando dar alguns passo sozinhos até me ver obrigado a fazer o mesmo e encará-la.

 

- Não, não me importei – consenti, sem me importar em fazê-lo. - Tenho certeza de que mereceu a primeira colocação. Poucas vezes vi alguém tocar assim...

 

- Não costuma elogiar seus oponentes, não é?

 

Neguei firmemente com a cabeça enquanto ela se aproximava com cuidado, e novamente eu hesitava. O que acontecia comigo?

 

- Há anos eu não competia... - ela prosseguiu como se eu tivesse interesse em ouvi-la. E eu realmente tinha. - E gostei de perder o primeiro lugar para você.

 

- Para mim? - indaguei duvidoso. Impossível, eu não era tão bom quanto ela, quer dizer, eu me achava bom até ouvi-la.

 

- Parabéns, Len Tsukimori. – Estendeu-me a mão para um aperto. - Só lamento não tê-lo ouvido.

 

Eu aceitei a mão dela, ainda envolvido pela notícia que não era a que eu esperava. Na realidade seria, se não soubesse do potencial de Guarnieri.

 

- Vai ser tão prolixo assim? - Ela sorriu. - Devia me deixar ouvi-lo... acompanhado de um bom chocolate quente.

 

Colocou as mãos no bolso do meu casaco.

 

- Está esfriando rápido demais. - Fitou o céu e voltou castanhos para mim. - E então? O que vai ser?

 

- Chocolate? - indaguei duvidoso, escondendo uma careta.

 

- Minha segunda paixão – rebateu convicta, seria difícil me livrar do liquido doce.

 

Respirei fundo, baixando a cabeça.

 

- Está bem...

 

Ela retirou as mãos do meu bolso e murmurou antes de correr:

 

- Te encontro depois da escola, no parque.

 

- Sem problemas...

 

- Ah... - Ela alargou os castanhos, voltou até mim e beijou-me a bochecha. - Tinha me esquecido disso. Até mais, Len.

 

Eu acompanhei a corrida dela até os portões do colégio enquanto minha bochecha queimava. Não só pelo contato dos lábios dela na minha pele, mas pela situação em si. Em que mais ela me surpreenderia?, me perguntei ao voltar a minha sala. Não sei, mas tinha pressa em descobrir antes da próxima apresentação. Tinha tanta pressa, quando acabou o horário escolar, que não se formavam notas no meu andar pelo parque, era um compasso arranhado e difuso.


Um sopro ao meu ouvido e eu quase tropecei em meus pés, mas ela me segurou em tempo.

 

- Vamos – disse contrafeito. Aquela situação estava ridícula demais, eu abalado por uma menina.

 

- Para onde?

 

- Minha casa.

 

- Não.

 

- Como não?

 

- Eu faço o chocolate, você toca... - Voltou a andar. - Na minha casa, me sinto mais a vontade.

 

- Eu não – cortei-a sincero.

 

- Eu não mordo, e meu pai não está em casa a essa hora.

 

- Mais um motivo para ser na minha casa.

 

- Ficamos aqui, então.

 

- Não toco para multidões. – Lancei um olhar às pessoas que iam e vinham a nossa volta.

 

- Você venceu... - ela tomou a minha frente. - Sua casa.

 

Eu a segui, pela primeira vez diante dela tive realmente vontade sorrir. Era minha segunda vitória do dia.

 

 

...xxx....

 

Não gosto de doces.

 

Não gosto, também, daquela sensação desagradável em meu estômago, como se ele se comprimisse a cada movimento dela pela sala. Eu retirara o violino do estojo, ensaiara algumas notas, mas não havia harmonia nem nos meus acordes, nem na minha mente. Meu corpo todo só registrava ela se movendo entre as prateleiras de cds e as de foto da estante a minha frente. O golpe final veio quando ela tomou uma foto minha de bebê entre os dedos e virou-se para mim com aquele sorriso nos lábios... Aquele sorriso que me aquecia e me envergonhava. Eu parti em meu socorro rapidamente. Meu socorro mesmo, porque eu nunca entendi o motivo que levam as mães a espalhar fotos de seus filhos, em todas as fases de sua vida, pela sala.

 

- Uhn... - ela murmurou quando tomei o porta-retratos de sua mão.

 

- O que foi? - indaguei receoso, devolvendo-o ao lugar. Eu deveria escondê-lo, mas pretendia mais tarde analisar o que chamara tanta atenção dela para o bebê.

 

Afinal, era uma daquelas clássicas tomadas que os pais fazem de seus filhos sujos de chocolate quando comem bombons ou qualquer coisa do tipo.

 

- Você gosta de doces – ponderou triunfante. Como negar quando a foto dizia o contrário?

 

- Gostos mudam – rebati firme.

 

- Deixaria de gostar do violino por opção? - Fitou-me em castanhos curiosa, mordendo o lábio inferior como se fizesse uma travessura.

 

Ok. Ela gosta de me alfinetar e eu não sou bom com jogos desse tipo.

 

- Não ia fazer o chocolate? - Encarei-a severamente.

 

- Você não ia tocar para mim?

 

Tocar para mim? Em que momento eu havia dito algo parecido?

 

- Eu ainda não decidi o que tocarei na próxima apresentação... - cortei-a friamente, assim como qualquer tipo de interação que pudesse surgir daquele diálogo.

 

Muito bem, Len. Você sabe lidar com meninas, assim como lida perfeitamente com uma tigela de arroz parbolizado e hashi.

 

- O que me diz de Rachmaninoff?

 

- Certamente são peças lindas para piano...

 

- Não – protestou, indo até sua mochila e tirando de lá uma partitura. - Tenho trabalhado nessa adaptação aqui, há algum tempo. Dê uma olhada...

 

Estendeu-me o livreto que eu tomei, incerto, entre meus dedos.

 

- Rapsódia sobre um tema de Paganini? - murmurei ao folheá-lo e ver os compassos específicos para o violino.

 

Ela assentiu e fechei-o rapidamente.

 

- Quer tentar?

 

- Não seria justo. - Devolvi a partitura á ela. Parecia ser uma excelente peça, principalmente porque essa rapsódia é uma obra belíssima, mas ela mesma confessara estar trabalhando nela algum tempo. Não era certo eu me apropriar daquilo.

 

- Não seja bobo – Abriu a partitura, apoiando-a sobre os cds e concluiu para mim enquanto retirava seu violino do estojo: - Vamos tocar juntos.

 

Eu me dirigi devagar até onde deixara meu violino, na esperança de que ela não percebesse minha fuga improvisada. Infelizmente, não alcancei meu intento como queria.

 

- Len, eu vou segui-lo...

 

Suspirei, tomando o instrumento nas mãos e voltando até ela. Não era fácil fugir de Guarnieiri.

 

...xxx...

 

Não sei explicar como, mas afirmo que minha rotina após as aulas, depois daquele dia, não era mais normal. Eu já não estava sozinho em casa por horas a fio, mesmo com a ausência de meus pais envolvidos em suas viagens e apresentações. O cheiro doce do chocolate, ao cair das tardes de inverno, já não me eram tão repulsivos... e certamente, tocar com ela se tornara um vício, uma necessidade quase básica. Eu dominava a rapsódia de Paganini em cada nota, me surpreendendo como o processo fôra de fato rápido, e eu devia isso á ela.

 

Suspirei, encarando-me no espelho antes de ir para aula naquele dia. Eu tocara com Kahoko uma vez e nossa música se misturara como magia, mas era diferente. Eu me impressionara como ela dominava o instrumento, como tocava com o coração, não era nada comparado a minha técnica... No entanto, com Guarnieri, a magia estava na forma como ela conseguia extrair de mim um Len que eu não conhecia. Estava também, no fato, de que nós dois atingimos juntos o mesmo grau de interpretação daquela peça. Isso para mim, era algo inusitado. Algo realmente fora do comum.

 

Algo que mexia comigo de diversas formas.

 

Nos encontrávamos no parque depois da aula e seguíamos para minha casa. Sempre a minha casa. Ter que enfrentar o pai dela não estava em minhas prioridades naquele momento, não quando eu mal conseguia discernir o que se passava comigo. E afinal, minha casa sempre estava vazia, exceto por mim e pelos empregados. E eu jamais teria qualquer comportamento inadequado com a Ju.

 

Meu estômago se refugiou em algum lugar obscuro de meu ser, que eu não sei dizer qual, sob a árvore do parque onde a esperava. Aliás, nem sei dizer de onde veio o Ju. Nunca a chamei assim, seria intimidade demais, e nós não nos conhecíamos tão bem... Nós apenas tocávamos juntos, dividíamos a paixão pelo violino, a música.... E bom, confesso, algumas tardes, o chocolate. Isso era muito pouco para poder chamá-la de Ju, ainda que ela me chamasse de Len...

 

E eu gostasse muito disso.

 

Ela estava atrasada quinze minutos, não era seu habitual, e a grama sob meus pés se tornara extremamente rala. Podendo-se dizer que meu vai e vem sob a copa da árvore se apresentava um tanto frenético, mas tudo perdeu a cor paulatinamente quando a vi surgir na curva do caminho, que a levaria aonde eu estava, acompanhada de um rapaz ruivo. Toda a minha inquietação e raiva se transmutaram em um suor frio que atravessou minha espinha e meu ventre como uma lâmina gelada. Que tipo de idiota era eu, que estava ali esperando uma menina fútil como aquela, que queria apenas se divertir com meus sentimentos?

 

Sentimentos – interrompi meus pensamentos, fixando meus olhos no casal. Ele não era mais velho que eu, mais magro talvez... Sardento, com um nariz um pouco adunco. E se fosse analisar o quadro que os dois formavam juntos, eu diria que era patético, trivial... Paradoxo. Enfiei as mãos nos bolsos, voltando meu rosto para outro lugar. Eu devia ir embora, isso sim; mas ela tinha me visto e o idiota também. Se tomasse essa atitude, ela pensaria mal de mim, e claro, ele diria mais meia dúzia de palavras “adoráveis” sobre mim para ser solidário. Fora de cogitação, eu ia ficar bem ali. Ela ia ter que inventar uma desculpa muito boa para estar com ele, e por estar atrasada. Afinal, era nosso último ensaio antes da apresentação do dia seguinte.

 

Vai ver era uma técnica de desconcentração dela – ponderei involuntariamente, era mais forte do que eu. Eu estava profundamente irritado. - Então, ela percebera que me dera chance de uma nova vitória e agora estava arrependida. Tinha que agir rápido ou tudo estaria perdido... E o que seria melhor do que deixar seu concorrente totalmente fora de si, sem conseguir arranhar uma nota? Bufei.

 

Ela tinha conseguido, dane-se Paganini. Eu queria fazer aquele ruivo comer toda a grama do parque.

 

- Len... - Ela sorriu, era provocação, com certeza. Ignorei e fixei o ruivo seriamente. - Desculpe-me a demora, eu...

 

- Encontrou um amigo – completei por ela, sem desviar o olhar do dele. Não ia ser tão fácil me convencer, Guarnieiri. Era um aviso, ao menos eu achava isso.

 

- Bem, pode-se dizer que sim – concordou incerta.

 

O ruivo me sorriu. Agora estava bem melhor – desdenhei para mim mesmo. - Ele me sorria e ela me dizia que talvez, quem sabe, ele era um amigo. Mas que diabos ele poderia ser que não um amigo? O meu papel estava bem claro, eu era o concorrente que ela queria ver descartado. O tolo que passara tardes com ela, ouvindo-a tocar. Ensaiando junto, achando que partilhávamos aqueles bons momentos, e principalmente, tomando chocolate sem gostar... No entanto, ela me aparece com um namoradinho na véspera do recital? Era golpe baixo.

 

- Acho que vocês dois devem ter muito o que fazer – disse enfim, ao me controlar e, só então, ver uma cesta na mão do rapaz. O que mais eu precisava ver para saber que estava sobrando? Deixei meus olhos nos castanhos dela e completei com toda calma que conseguia ter: - Afinal, foram semanas treinando comigo, ao menos um dia de folga você merece...

 

Meu olhar cruzou o dele novamente.

 

- Divirtam-se – finalizei para ele e me virei de costas para deixá-los. O que mais eu poderia fazer?

 

- Espere!

 

Eu parei alguns passos depois do pedido, ouvindo o barulho das folhas secas sendo pisoteadas pela corrida dela até mim. Por que ela não me deixava simplesmente ir?

 

- Len... - Meu nome era angustiante pronunciado por aqueles lábios. - Acho que não me expliquei direito.

 

Oh, não... Eu entendi tudo – respondi mentalmente á ela, sem me virar.

 

- Sabe, Katsuro é meu primo... - ela resfolegou as minhas costas, mas não foi o suficiente para aquietar meu coração. Primos namoram primos, que mal a nisso?

 

Minha mente me alertou para o perigo de aceitar prontamente aquelas palavras doces. Não me virei novamente.

 

- Eu trouxe um lanche para nós, pensei em ficarmos no parque... - ela balbuciava nervosa, eu sabia que algo a incomodava... mas seria por mim? - Talvez uma tarde relaxando e o recital amanhã pareça apenas nuvens.

 

Então ela queria mesmo me desconcentrar?

 

- Por isso trouxe seu primo... - eu arrisquei sem fitá-la.

 

- Não! - protestou no mesmo instante.

 

- Escuta... – Eu me virei, encarando-a e vi castanhos assustados nos meus. - Pegue seu lanche e tenha uma ótima tarde com seu amigo – frisei a última palavra. - Você já fez muito por mim... - Inclinei-me sobre o rosto dela, não sei por que raios eu fiz isso, mas deu vontade... e deixei em seu ouvido: - Ju. Arigatou.

 

Não dei chance aos protestos dela, meu coração era um linha esticada ao máximo e eu sabia que se olhasse uma vez mais aqueles dois juntos, ela romperia. Minha tarde se tornou escura, como o céu lá fora, onde nuvens pesadas se acumulavam uma sobre as outras, entristecidas. Eu nem me dei conta que fui até a cozinha e preparei, exatamente como ela fazia, um chocolate. Eu apenas estava lá, lembrando dela quando os primeiros pingos da chuva grossa colidiram com a vidraça. O vento sibilava pela frestas da esquadria, as cortinas se agitavam e eu me perdia no horizonte vazio.

 

A batida soou na porta quando a noite já ia intensa e eu adormecera no sofá. A caneca de chocolate abandonada sobre a mesinha de centro... Vazia. Duvidei por segundos se era sonho ou realidade, mas a insistência na batida fez-me levantar e atendê-la, sonolento.

 

- Len... - Meus olhos embaçados não registraram a imagem dela de imediato, mas todos meus outros sentidos, sim.

 

- Ju...

 

Em meio a surpresa de vê-la ali, assustei-me de me deparar com ela encharcada. O queixo tremendo sobre os cabelos escuros grudados ao rosto.

 

- O que aconteceu? - indaguei preocupado.

 

O que podia tê-la tirado da cama aquela hora? Se fosse aquele ruivo de araque, eu o quebraria ao meio.

 

- Não consegui dormir... - respondeu tilintando de frio.

 

- Entra...- sugeri, dando-lhe passagem e fechando a porta atrás dela. - Vou pegar algo seco para você se aquecer.

 

Eu me dirigi ao corredor, que daria nos quartos, e ela concordou com um aceno de cabeça enquanto esfregava os braços com suas mãos. Saí e voltei em menos de cinco minutos, com um roupão branco entre os dedos.

 

- Toma, tire essa roupa molhada enquanto te faço um chocolate.

 

Novamente ela concordou com um aceno de cabeça enquanto eu sumia na direção da cozinha. Conforme eu esquentava o leite, praguejava o ruivo. Se ele tivesse algo a ver com aquela cena...

 

Chocolate pronto e eu voltei á sala. Parei assim que entrei, ela parecia um anjo dentro do roupão felpudo. O meu anjo... Eu me perdi naquela visão por minutos.

 

- Pronto – alertei-a de minha presença quando meus pés me permitiram movimentos.

 

- Arigatou. – Ela tomou a xícara para si.

 

- Agora, conte-me por que estava na chuva – pedi, não ia conseguir ficar quieto enquanto não soubesse o que a levara até minha casa.

 

- Eu...

 

Os castanhos me fitaram escuros como o chocolate na xícara, fazendo meu coração acelerar sem que eu conseguisse impedi-lo. Como ela fazia isso?

 

- Você entendeu tudo errado essa tarde, Len – corrigiu.

 

Eu? Essa era boa, eu entendi tudo errado. O ruivo era o quê? Uma prima disfarçada?

 

Menos Len, exigi. Ajeitando-me inquieto no sofá ao lado dela.

 

- Não tenho nada com Katsuro – foi direta.

 

E por que eu estaria interessado nisso? Senti-me ainda mais desconfortável com aquela conversa. Onde ela estava querendo chegar?

 

- Não me deve explicação nenhuma – interrompi antes que aquilo fosse longe demais.

 

Tínhamos uma competição amanhã.

 

- A cesta era para nós dois... - ela continuou como se não me ouvisse. - Eu queria uma tarde especial com você, entende?

 

Não, eu não entendo o que seu primo tem de especial.

 

- Era nossa última tarde juntos e eu não sabia se teríamos outras... - E levou seu primo? Meu coração batia como um bumbo. Meus olhos presos aos dela sem que eu conseguisse desviar ou reagir. - Eu não sabia se sentiria de novo o que sinto quando estou aqui, com você.

 

E as mãos dela seguraram as minhas e meu rosto se aproximava do dela devagar. Sem primo, sem dúvidas... Eu queria beijá-la. Beijar aquelas palavras que ela me dizia e com que eu sonhara a tarde toda. As palavras que eu queria ter dito para ela no parque, mas que a presença do primo me impedira. Então, escorreguei meus dedos pelos traços delicados de seu rosto, aproximando meu corpo do dela, sentindo sua respiração quente se alterar com minha... Vendo-a fechar os olhos e esperar. Esperar meu toque, e eu quase sorri quando rocei meus lábios nos dela, sentindo-a tremer para mim, enterrando meus dedos nos cabelos escuros enquanto a mantinha presa ao meu beijo. A minha língua que explorava a dela, calmamente, aprofundando-o... Tornando o contato de nossas bocas intenso. Fazendo meu coração disparar nas notas de Paganini.

 

...xxx....

 

Eu subi no palco na manhã mais radiante de minha vida, vendo-a por entre as cortinas dos bastidores. Não me importava se eu perderia ali, já havia ganhado horas antes meu melhor prêmio... Empunhei o violino, iniciando a apresentação. As notas saíam primorosas, eu era espírito e coração em cada uma delas. Não me importava a platéia, a colocação na competição, eu estava aquecido pelo fato dela ter dormido em meus braços parte daquela noite... Ali mesmo no sofá, e ter saído às pressas nas primeiras horas do dia. Isso significava alguma coisa, não é mesmo? E esse algo me deixava tonto.

 

Paganini sorria como eu, estava ali comigo, mas eu não contava que a corda do meu violino fosse arrebentar quase no final da apresentação. Eu saí do transe em que me encontrava, atônito, sem saber exatamente como prosseguir... E eu sabia que era observado e senti a apreensão dela, como a da platéia. Eram frações de segundos até o piano me dá a deixa para continuar, e eu não pude acreditar quando a vi pisar o palco na hora do meu retorno. Substituindo o som do meu violino pelo dela quase que imperceptivelmente, se ela não estivesse ao meu lado, tocando, ninguém sentiria a troca de intérprete. Fazendo dezenas de olhares se alargarem e fixarem nela, até mesmo o meu. Não houve desafinação, não houve interrupção, nossa melodia era única... uma só.

 

Eu sei que deveria estar zangado por ela romper as regras daquela forma, por me colocar à berlinda dos jurados... Por tão facilmente ter se desclassificado. Mas de alguma forma, eu sabia que ganhava mais com ela ali, ao meu lado... Com Guarnieiri e Paganini... Com nossos corações na rapsódia sob a luzes da ribalta.

 

*** Fim ***

 

N/A:

Podem me matar, podem me xingar, mas Juhh, eu fiz com carinho, viu?

Obrigada por lerem e me aturarem! Eu nem sei como agradecer o carinho de todos.

Beijo cada um com amor

Rô.

 

Paganini - nasceu em Gênova (Itália) em 27 de outubro de 1782. De família humilde, seu pai, Antonio Paganini, era um operário do porto, no entanto, e apesar de sua condição social, era um bandolinista amador, apaixonado pela música e quem primeiro ensinou seu filho nessa arte. Foi considerado um gênio em suas peças para violino, inspirando grandes compositores como Rachmaninoff e Liszt.

Cannone - Era o nome de seu violino, cujo o artesão se chamava Guarnieiri.

Rapsódia para um tema de Paganini - é uma composição e homenagem linda de Rachmaninoff ao autor. Certamente já a ouviram no filme: Em Algum Lugar do Passado. Sua versão mais conhecida é para piano, mas há tb récitas com violino, e é tão linda quanto a primeira.


 


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