Jogos Vorazes por Cato escrita por AmndAndrade


Capítulo 2
Capítulo 2 - Eu lá tenho cara de vidente?




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Não quero pensar no que deixei pra trás agora, mas não pensar me soa um tanto impossível enquanto estou sentado numa cadeira branca, depois que Elsie, Trensa e Miltie apararam meu cabelo e lixaram minhas unhas, o que minha mãe já havia me mandado fazer uma semana atrás. Consigo ouvir sua respiração tranquila e sentir sua mão em meu cabelo quando percebo que estou quase cochilando sob as luzes amarelas que banham a sala em que estou à espera de minha estilista. Meu estômago parece ter se dividido em dois, mas eu sei que o rombo que estou sentindo não tem absolutamente nada a ver com fome. Com medo, talvez? Prefiro pensar que não, enquanto penso mais uma vez sobre como será a arena. Essa talvez seja a sétima ou oitava arena que projeto em minha mente. Agora estou imaginando um terreno pedregoso, não exatamente um deserto. Talvez alguma coisa como o que um dia foi Machu Picchu. De que inferno esse nome veio? Hm, talvez Cato também tenha cultura, imagino. Sempre achei idiota pensar em si na terceira pessoa, mas não é uma coisa que eu tenha conseguido evitar muito na última semana.

Não sei exatamente o motivo, também. Não quero me afastar de mim. "Eu sou muito precioso", consigo ouvir minha irmã mais velha dizer, imitando meu tom áspero de voz, que só muda quando quero alguma coisa, segundo ela. "Olá, sou Cato e sou ótimo em tudo que faço", escuto a risada dela e quase sinto os tapinhas nos braços. Talvez os minutos na saída não tenham sido inúteis, afinal.

– Cat Cato! – Escuto a voz dela enquanto desenho formas aleatórias no veludo do sofá.

– Cat Catherine! – respondo e sei que um sorriso muito largo está estampado no meu rosto agora. Preocupa-me que seus olhos, azuis como os meus, estejam brilhosos devido a lágrimas.

Catherine não faz nenhuma piada e o sorriso que ela está mostrando parece fraco demais para ser verdadeiro. Ela parece bem mais frágil agora perto de mim, uma figura pequena e delicada que está triste por um motivo pelo qual não compreendo muito bem, mas me angustia.

– O que você tem? – pergunto, e ela apenas fica olhando para mim como se olhasse para algum brinquedo quebrado. Como se lutasse para parecer crescida o suficiente para não chorar, mas estivesse morrendo de vontade de se agarrar a todas as peças e tentar consertá-las.

Ela agora está mais perto de mim e me abraça com força. Parece ainda menor. Cathy tem vinte e dois anos e é uns trinta centímetros mais baixa que eu, mas parece uma criança quando passo meus braços em torno dela. Ela começa a tremer e sinto que está engolindo forte, represando um soluço. Coloco minha mão entre os cachos loiros e acaricio levemente. É como se o toque a desmontasse. Cathy começa a chorar de um jeito que eu nunca vi antes, seu pequeno corpo tremendo como se estivesse congelando, apesar das lágrimas quentes molharem minha camisa.

– Eu acredito – ela finalmente diz e eu começo a compreender. – Acredito que você vá ganhar. Eu sei que vai – ela corrige. – Mas Cato... Eu não sei. Não sei por que estou assim.

Entendo o que ela está dizendo, entendo de verdade. Não posso dizer que sou o cara mais sensível do mundo. Já briguei várias vezes. Em uma delas enfiei um lápis no olho de um garoto porque ele me provocou. Não sei o que aconteceu e não quero saber, uma vez que tinha apenas doze anos. Mas apesar de tudo, Cathy é uma coisa totalmente diferente. Mesmo quatro anos mais velha, eu sinto que devo protegê-la agora. No entanto, tenho medo de que se soltar meus braços ela vá cair no chão.

Puxo-a em direção ao sofá e a sento na minha perna esquerda, encarando-a devagar. Não estou com vontade de chorar, aliás, não costumo chorar, mas vê-la assim me dá um aperto no peito que parece pior do que sentir lágrimas escorrendo.

– Cathy – digo com suavidade, talvez no que ela ache que seja minha voz de quer-alguma-coisa. – Eu sei que você está preocupada. Mas eu vou voltar.

– Eu sei que sim. – Ela sorri apesar dos olhos vermelhos.

Sorrio também e ficamos naquela posição por algum tempo que não posso calcular agora, seu rosto colado em meu peito enquanto afago os cabelos. Tão grande, e tão pequena. Não importa se só por duas ou três semanas, Cathy com certeza vai fazer falta.

Seus olhos adquirem um brilho maroto.

– E fique sabendo, idiota, que estarei observando tudo. Controle a testosterona. – Ela sorri. – E se alguma garota tentar se aproveitar de você, bonitão, eu vou caçá-la até a morte.

– Os Jogos cuidarão disso. – Sorrio.

– Eu sei que sim – ela repete, antes que um pacificador apareça na porta. Pacificadores são quase inúteis no Distrito 2, pensando bem. – Se cuida – diz, na porta.

– Sim. Amo você.

A imagem de Cathy na porta é substituída por uma figura esguia, que tem a pele em um tom rosado diferente, cabelo repicado e olhar avaliador. Se apresenta como Unicqua, minha estilista, mas decido prestar mais atenção ao cozido de carneiro que surge na mesa à frente assim que ela começa a falar sobre os tons de dourado que pretende usar em minha roupa.

Sou guiado ao nível inferior do Centro de Transformação, ou alguma coisa com o nome parecido. Subo em um daqueles carrinhos, ou carruagens, tanto faz, acompanhado de Clove que continua com o olhar seco. Decido segui-la até perceber que ela está exoticamente bonita com um colar de gotas douradas e uma tiara que, não sei bem por que, me lembra a Primeira Roma ou a Primeira Grécia. Como sou lento para certas coisas. Estou olhando para uma loira bonita do Distrito 1 quando percebo que estou vestido exatamente como Clove. Que idiota. Confiro minha imagem no telão. Pareço bem também. Ameaçador como nunca.

A carruagem se move rápido, puxada por quatro cavalos. Entre aplausos, pergunto a Clove se ela está bem. Ela se limita a apenas balançar a cabeça para cima e para baixo, num gesto quase imperceptível. Se é assim, está certo. Um Carreirista só não faz verão, se é o que essa garota pensa.

Mas as pessoas não estão prestando atenção. Estão voltadas para mais atrás, mas não posso me dar ao luxo de olhar também. Que diabo é aquilo no telão? Dois otários... Pegando fogo? Não acredito. Tomara que morram queimados aqui mesmo, penso enquanto reviro os olhos. Dois a menos na arena.

No círculo da cidade, um homem pequeno e magro nos saúda e vejo que a rede de televisão faz cortes simultâneos de nossos rostos – parando irritantemente nos 12 de vez em quando. Mas não me espanta. A luz que eles emitem parece ainda mais intensa enquanto anoitece. Quero ver o quanto um fogo falso idiota vai ajudá-los na arena. Sim, eu quero ver.

Quando o discurso de alguma coisa Snow termina, saímos da frente do que parece ser sua mansão e voltamos para o que é o Centro de Treinamento. Observo os 12 por um tempo, e Clove também observa. Um olhar de desprezo. Gosto da idéia de acabar com eles primeiro e imagino algumas maneiras enquanto a equipe de preparação continua dizendo qualquer coisa sobre o desfile.

Edwin e Jocelie comentam sobre a facilidade que terão em conseguir patrocinadores para tributos tão bem formados e vejo Clove sorrir novamente. Começo a reparar que ela sorri com freqüência na presença deles e imagino se o problema é comigo. Acredito que não e me dirijo ao elevador, seguido por ela como uma sombra. O espaço é bonito e nos permite ver as pessoas diminuindo logo abaixo. Pressiono o número dois com o punho fechado e decido sugerir o que tem me perturbado há algumas horas.

– Então, Garota da Faca. O que acha de alianças?

Ela me olha por alguns segundos, estreitando os olhos antes que as portas do elevador se abram.

– Deve ser feito com as pessoas certas. – E desaparece pelos aposentos.

Mas que diabos ela queria dizer com isso? Eu não sou burro. Nem todos que são fortes são burros. Mas parece que ela quer que eu me lembre de algo que parece impossível para mim. Ainda assim, tento. Tento enquanto vou para o quarto mostrado por um Avox, um tipo de empregado eterno da Capital que teve a língua arrancada por desobedecer alguma ordem e que, portanto, não fala. Tento enquanto tomo banho tentando não ser sufocado por essas drogas de chuveiros estranhos que eles usam por aqui. Eu sei que estou cheiroso. Sei que é uma delícia poder escolher entre tantas opções, mas não é isso que eu quero. Quero me lembrar e uma máquina idiota não vai me ajudar muito nesse caso. Sinto vontade de chutar qualquer coisa, mas não quero me estressar. Ao sair do quarto, não sei o que cheira melhor: eu ou o cheiro que vem na direção do que só posso supor que seja a cozinha.

Clove baixa os olhos quando eu chego, franzindo a testa como se algo a perturbasse – mas algo que ela teria de superar. Cumprimento Edwin, Jocelie, Unicqua e um homem não tão estranho que suponho ser o estilista da minha nova melhor amiga que acha que tenho poderes telepáticos, Clove.

Observo a variedade de cozidos, assados e grelhados que se estendem à minha frente ao tomar o lugar vazio na mesa. Cozido de carneiro, arroz integral, macarrão a molhos inusitados e frutas que eu nunca vi antes. Tomo uma taça de vinho servida por um Avox e me sirvo devagar de cada prato ali. Não sou de comer pouco e se fico com fome por muito tempo me sinto mais estressado do que suponho que uma garota fique em sua época pré-menstrual.

– Já conversamos com Clove, talvez vocês possam se conhecer depois – começa Edwin.

Só que não, imagino, mas permaneço calado.

– Agora vamos focar um pouco em você – ele prossegue. – O que você acha que te dá vantagem, fisicamente?

– O físico no geral – digo enquanto mastigo um pedaço de cordeiro. Deus, como é delicioso. – A força.

– Quero que mostre isso amanhã, no treinamento. Quero que você intimide com mais que essa cara de matador. – Ele sorri ao mesmo tempo que eu. – Algo que possa te trazer dificuldade?

– Eu sou meio estressado. Perco a cabeça com coisas bobas, mas até hoje isso não me trouxe problemas de verdade.

Um tilintar agudo ecoa pela sala. Som de um copo quebrado, escapado das mãos de Clove – que supostamente deviam ser bem firmes devido à prática com facas. Olho para ela imaginando que foi apenas um acidente, mas seu olhar me indica que há algo a mais. Ela está me encarando com os olhos verde-escuros, a boca semi-aberta numa expressão incrédula.

– Estou satisfeita. – E secamente se levanta, deixando a sala com uma graça que sou obrigado a admirar.

Ou seria obrigado se não estivesse bastante nervoso e seguindo-a escadas acima. Ela não para, nem sequer olha para trás, apesar de eu estar pisando duro o suficiente pra que ela perceba minha presença. Adianto meus passos e coloco a mão em seu ombro, que já não parece tão frágil.

– Qual o seu problema? ­ – pergunto enquanto ela para.

Ela joga minha mão para fora de seu ombro com uma força que simplesmente não condiz com seu tamanho.

– Qual o meu problema? Qual o meu problema? – ela parece rosnar, de um jeito que me deixa paralisado. – Você é Cato, não é? O grande Cato, que vai vencer essa droga de Jogo, certo? Que acha que não tem problema com ele, que acha que sua raiva mal controlada nunca trouxe problemas! Que não sabe olhar nada mais que o próprio umbigo! – ela grita.

Não sei por que ela está tão nervosa, juro que não sei. Minha confiança a irrita? Não sei se a confiança a irrita, mas ela com certeza está irritada por achar que estou me fazendo de sonso.

– Você acha que está tudo bem, apenas porque um garoto entrou na sua frente numa fila, você provocar uma discussão e querer uma luta corpo a corpo com um garoto vinte centímetros mais baixo que você! – Seus olhos brilham e ouço mais a voz dela em trinta segundos do que em todo tempo até aqui. – E como se não bastasse, só porque ele não se rendeu, você vira seu rosto em direção a galhos! Galhos, Cato! Galhos que cegaram o menino! Mas isso não te traz problemas, porque você é forte! Porque você não precisa de ninguém! – ela cospe as últimas palavras e bate a porta de seu quarto com mais força do que o necessário.

Passo os dois minutos seguintes digerindo a história até que tudo desce da minha mente e se aloja em meu estômago cheio. Agora a história faz todo sentido e eu me lembro quase detalhadamente de quando ceguei esse idiota. Então é por isso que Clove parece me odiar. Porque ceguei o irmão dela. Droga, ela precisava ser irmã de Mart Woods? De tantas famílias, precisava ser ela? Ser a melhor garota com facas em toda a Panem a garota que me odeia? Bem, parece que sim.



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