Catarina de Navarro escrita por slytherina, jessica varela


Capítulo 15
Capítulo 15




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Dom Bolaños procurou uma vasilha com água, seu frasco de óleos curadores, e um lenço fino que usava em dias de muito calor. Lamentou que agora tivesse que cuidar de mulheres vadias, como se fosse um servo qualquer. Não fora para isso que entrara na vida religiosa. Lembrou-se de quando era um rapazinho esquálido, e sua mãe o chamara para lhe dar as boas novas: Iria para um monastério. Passaria o resto de sua vida enfurnado em conventos, igrejas, bibliotecas, escritórios e escolas. Não teria mais liberdade para se divertir à toa, ao ar livre, entre amiguinhos e o colo de sua mãe. Teria agora que prestar obediência a seus superiores e a Deus.

No início tudo fora bem difícil. Fora castigado algumas vezes, fazendo mais jejuns do que a maioria dos santos, mas no fim se acostumou com a disciplina do monastério. Aprendera a ler e escrever, e isso já era algo excepcional, que o diferenciava dos pobres mortais. Entre eles, sua própria família, que se não era abastada, também nunca havia passado necessidades. Aprendera a conviver com aqueles homens poderosos. Probos só na aparência, mas tão pecadores quanto o mais perverso e escrachado camponês. É claro, nos meios privilegiados não se referiam ao próprio comportamento como pecaminoso, mas como tentações da carne, e como pequenos momentos de prazer e abandono, em uma vida dedicada a orações e ao estudo dos livros sacros.

Ele se lembrou do companheiro do monastério, de sua mesma idade, com quem perdera a virgindade. Eram apenas dois jovens temerosos e desejosos do contato físico. Entretanto, foram flagrados e castigados fisicamente, para resistirem à tentação da carne. Se ele soubesse naquela época o que os religiosos mais velhos faziam, não teria aceitado o castigo e separação de seu amigo. No fundo entendia que era necessário domar a própria sexualidade, para que ela não se transformasse num ponto fraco de seu caráter, ou num turbilhão em uma vida respeitável e digna.

Ao Clero quase tudo era permitido. Podiam deitar-se com mulheres, rapazes imberbes, gerar filhos e ter posses. Podiam até influenciar nobres e reis. A vida de pessoas inferiores estava em suas mãos, para regulá-las segundo a norma cristã. Abençoando ou excomungando. Absolvendo ou condenando à fogueira. Bastando que para isso dedicasse sua vida ao serviço do Cristo. Não era de todo uma má carreira, podendo inclusive chegar ao posto máximo de Papa. Dom Bolaños se ajustara bem a tudo isso. Ele não era estúpido. Rapidamente fora alçado à condição de secretário do inquisidor Dom Emanuel de Aragão, muito mais por mérito, do que por favores ou nepotismo. Ele sabia que não poderia ir muito longe na carreira religiosa, porquê não viera de berço nobre, mas ao menos poderia ter uma vida digna de um nobre, com boas acomodações, boas roupas, e o respeito da plebe. Apenas por ser um sacerdote.

Então, o serviço que agora fazia, lhe parecia uma humilhação e afronta. Estava a tratar das feridas de uma mulher qualquer, que estava destinada a queimar na fogueira, como uma herege, uma bruxa infame, um ser imprestável, e posta bem baixo na escala da condição humana. Até uma cadela mereceria melhor tratamento do que essa mulher, pois as cadelas dão cria a bons filhotes, além de serem muito úteis. Entretanto, este era o serviço que lhe fora designado, e como bom religioso que era, ele o faria exemplarmente. Limpou as feridas da aldeã e a vestiu com um camisolão, que geralmente era usado por pessoas mais abastadas e acostumadas a ter o melhor da vida. Uma das muitas peças de roupas que foram confiscadas do povo daquela aldeia. A aldeã torturada nas masmorras, nunca poderia, em todo o seu tempo de vida, usar tal vestimenta. Ela no máximo poderia se vestir com os lírios do campo. O religioso se divertiu com o pensamento. A Bíblia e suas comparações.

Dom Bolaños imaginou se Deus pudesse escolher pessoalmente os homens que deveriam ser seus sacerdotes, se ele escolheria aqueles que ali estavam. Certamente que não. As escrituras sagradas falavam de comportamento correto, e moral imaculada. O próprio Jesus Cristo sofreu nas mãos dos homens, pois seu comportamento não era igual ao dos religiosos do seu tempo. Se acaso Jesus Cristo viesse a Espanha na presente época, certamente seria feito prisioneiro, posto que fazia coisas miraculosas e fazia as pessoas pensarem sobre sua condição e comportamento, além do que, antes de tudo, ele era judeu também. Essa era uma cruel ironia.

O religioso voltou os olhos para a imagem na parede do aposento de Dom Emanuel. Ela mostrava a crucificação do Nazareno, o filho de Deus. O cordeiro levado para o abate, inocente de pecado. Indefeso e sem socorro, diante das autoridades impiedosas. Sem um único discípulo que se levantasse e o defendesse da morte injusta. O clérigo baixou os olhos e concentrou-se em seu serviço.

Ele percebeu que os olhos da prisioneira piscaram. A princípio julgara que ela estava agonizando às portas da morte, mas percebera que a mesma estava desperta. Talvez estivesse desperta este tempo todo, apenas fingindo inconsciência para poder escapar de mais castigos físicos. Ele terminou sua obrigação, cobriu a camponesa com uma manta grossa, e afofou um travesseiro sob sua cabeça. Então resolveu falar com a mulher, que o encarava com seus olhos cor de avelã.

- Então como estás, Catarina de Navarro? Imagino que estejas com fome. Posso trazer frutas e leite para ti.

- ...

- Não te preocupes, não me apetece servir-me de mulheres. Apenas toquei em ti, porquê assim me foi ordenado.

- ... Acho que... devo agradecer... obrigada.

- Agradeças se quiseres, para mim não faz diferença. Irás queimar na estaca de qualquer forma.

- ... Acreditais... em céu e inferno... padre?

- Que pergunta! Faz parte da minha profissão acreditar.

- Então... quando eu morrer... eu irei para o céu ou o inferno... certo?

- Sabemos bem que irás para o inferno, ter com teu senhor, Lúcifer.

- ... e quanto a vós... para onde ireis?

- Ahahah! Sei onde queres chegar com teu raciocínio raso e inculto. Sou um servo do cordeiro, educado e treinado para fazer o que faço. Se acaso o Santo Ofício não tivesse a aprovação de Deus, ele continuaria regulando as ações dos homens? Certamente que não. E eu com toda a certeza tenho meu lugar reservado no céu.

- E se fosse ... um nazareno... surrado e atado... condenado à cruz... sob vosso julgo ... teríeis vós coragem... de salvar-lhe a vida... e dizer... que vossos superiores... estavam... errados?

- ... Onde aprendeste a ler a bíblia?

- Minha mãe... me ensinou.

- Claro! A filha da bruxa aprendeu bruxarias com a mãe, e também aprendeu a tripudiar sobre o livro sagrado, para me confundir. Eu, um fiel servo da inquisição, o mais zeloso e capaz entre meus pares. A mim... tu não enganas, nem tripudias. Vade retro Satanás!

- ...Ainda as... assim... ele morreu na cruz... porquê vós... não o salvastes.

Dom Bolaños, com os olhos dilatados de raiva, ergueu a mão para esbofetear Catarina, mas não conseguiu desferir o golpe. Algo lhe pareceu errado, como se as palavras dela pesassem fundo em si. Ele achou melhor se afastar daquela prisioneira. Dirigiu-se à porta de comunicação com o escritório de Dom Emanuel, mas esta estava trancada. Claro, o clérigo assassino o trancara com a vadia, para que ele não fugisse e o delatasse. Ele só poderia escapar dali, se Dom Emanuel destrancasse a porta. Dom Bolaños achou melhor se acalmar, pois estava preso em uma ratoeira com uma enviada do mal, para confundi-lo e desestabilizá-lo em sua fé. Não havia nada que pudesse fazer, a não ser esperar. Procurou uma cadeira e sentou-se bem longe de Catarina.

- O céu... tem um lago calmo e ... florestas... minha família está lá... esperando por mim... eu estive lá... é muito bonito. - Catarina balbuciou com a voz fraca, olhando para um ponto perdido no vazio.

- Então, a bruxa condenada a morte foi ao céu e voltou. Que história tocante! - Dom Bolaños não conseguiu controlar o desejo de replicar, por mais que resolvesse intimamente não mais conversar com a aldeã, para não ser influenciado por ela.

- Foi só... um vislumbre... como um aviso.

- Se acaso não fosses culpada, não achas que Deus te salvaria a vida?

- Não é ... Deus quem me mata... mas os homens... Deus não precisa... fazer milagres... em mim... Eu... entendo e aceito a... morte... em paz.

- Então separas o trabalho da inquisição do trabalho de Deus? Ora, mas que tolice!

- Sois apenas... homens... não santos... estão abaixo do... do trabalho de ... Deus.

Dom Bolaños involuntariamente se lembrou de Dom Emanuel estrangulando Dom Villagrán, bem como recebendo todas aquelas mulheres em seu escritório, para "qualificação". Mulheres que o próprio Dom Bolaños trazia para ele. Ao menos, ele não participara disso. Tinha as mãos limpas. O religioso olhou para as próprias mãos, num reflexo de seu pensamento. Não conseguiu evitar de pensar "assim como Pôncio Pilatus". Ele escondeu as mãos sob as fímbrias da batina.

- Eu não... cometi crime algum. - Dom Bolaños ouviu-se dizendo, enquanto colocava o punho na boca, numa tentativa de calar-se, enquanto olhava para a imagem religiosa na parede do aposento do inquisidor.

- Eu também... não. - Catarina balbuciou.

- Tua mãe era uma bruxa. Já és culpada deste o nascimento.

- Minha mãe... era uma mulher boa e... decente... Vós... a matastes.

- Eu não. Dom Villagrán. Ele conduziu a tortura. - Dom Bolaños tentava calar-se, mas o impulso de se defender e se eximir de culpa era mais forte, como se o crime de Dom Emanuel pesasse sobre sua cabeça, por cumplicidade.

Catarina começou a soluçar, pensando na mãe. Ela não tinha forças para chorar, nem para parar os soluços. Dom Bolaños levantou-se e procurou um recipiente de água. Encheu uma caneca e a levou para Catarina. Ajudou-a a beber da água, e se espantou consigo mesmo, por estar preocupado com o bem-estar de um ser inferior. Alguém condenado à morte.

- Obrigada! - Catarina agradeceu e o observou, enquanto ele levava a caneca de volta. Sustentou o olhar dele, quando este se aproximou dela novamente.

- Talvez... talvez não tenhas culpa do crime de bruxaria. Talvez... vás morrer inocente de pecado, mas... não há nada que eu possa fazer quanto a isso. - Dom Bolaños falou a meia voz, em um tom sério e frio que impressionou até a ele mesmo.

- Não por mim. - Catarina falou com a voz um pouco mais firme, enquanto sustentava o olhar de Dom Bolaños.

- O que? O que quer dizer com isso?

- Por vós mesmo.

- O que? Dizes para fazer algo por mim mesmo? Não sou eu que estou condenado à morte. És tu quem vai morrer queim... - Dom Bolaños se interrompeu, enquanto ficava meditando sobre o que Catarina falara.

Um barulho às suas costas, o fez virar-se. Um grande barulho vindo da sala contígua, onde deveria estar Dom Emanuel de Aragão. Como se alguém estivesse brigando. Então tudo ficou calmo. Alguém mexeu na fechadura e a porta se abriu. Um clérigo desconhecido, armado com um punhal na mão, como um salteador, entrou no aposento. Ele logo alcançou Dom Bolaños e encostou o punhal em seu pescoço, enquanto o olhava transtornado como uma fera.

- Miguel! - Catarina exclamou surpresa e feliz.

O clérigo salteador olhou de relance para Catarina, mas não se afastou da sua posição ameaçadora, junto a Dom Bolaños. Todavia, sua expressão se alegrou, como se houvesse encontrado o bem supremo.

- Catarina! Graças a Deus, estás viva! - Miguel exclamou sorrindo.

- Catarina, minha amiga! - Javierito atirou-se sobre Catarina chorando, mas afastou-se rapidamente, com medo de machucá-la. - Não estás muito ferida Catarina?

- Um pouco! ... Estou fraca demais... para ficar em pé... Javierito, que bom... vê-lo de novo.

- Quanto ao senhor, padre, ajoelhe-se na minha frente. - Miguel falou firmemente para Dom Bolaños, afastando-se um pouco para que o outro pudesse se mover, ao que Dom Bolaños obedeceu, sustentando altivo o olhar de Miguel.

- O que irás fazer...Miguel? - Catarina perguntou preocupada.

- Vou bater em sua cabeça, para que não nos atrapalhe, como fizemos com o outro, na sala ao lado.

- Reverendo, poderias... nos ajudar... a sair daqui? - Catarina perguntou ao clérigo.

- ... Acho que sim. - Dom Bolaños respondeu num tom baixo, enquanto procurava não encarar muito a Miguel, pois o outro poderia ficar nervoso, e ele estava armado.

- Não desvies os olhos, padre. Eu não confio na tua laia, e só posso saber que mentes, pelos teus olhos. - Miguel falou grave. - E se acaso estiveres mentindo, a primeira coisa que sentirás será meu punhal.


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