Sob Sombras escrita por Pedro Vinícius


Capítulo 1
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Era uma vez uma menina que sonhava com fadas,

Mas vieram os monstros e o sonho acabou...

Na primavera de 2002, eu não fazia ideia que as coisas chegariam àquele ponto. Nem posso dizer exatamente como tudo se desenrolou, mas o fato é: a verdade estava debaixo do meu nariz, e eu não soube enxergá-la.

       Não sei se por acaso eu tivesse feito algo de diferente tudo o que aconteceu poderia ter sido alterado, mas não consigo deixar de pensar que se apenas uma coisa não ocorresse da maneira com a qual ocorreu... Eu poderia não estar contando essa história.

       E talvez fosse melhor que eu não estivesse mesmo.

       Mas quem disse que a vida é justa?

***

Meu nome é Rachel Spall e eu tenho dezesseis anos.

Nasci na pequena cidade de Hathaboom, na Costa Leste dos Estados Unidos. Hathaboom se erguia em frente ao mar azul-dourado da Califórnia, junto a areias douradas e um céu límpido. Todos os anos uma horda de turistas lotava os hotéis locais e nossas praias ficavam apinhadas de crianças, adolescentes, adultos e idosos.

Mas é claro que este não é o ponto chave da história.

Tudo começou no primeiro dia de verão de 2001.

Eu não tinha aula, claro, e tive que ir atrás de um emprego. Normalmente eu teria me contentado em ser garçonete no restaurante dos meus pais, o Angels, só pra ganhar uma graninha extra - como eu tinha feito nos verões passados – e dar uma força pros velhos. Mas naquele ano eu queria alguma coisa nova e... Desafiadora. Algo que me tirasse da minha acomodação.

Naturalmente, não é como se por aqui existissem empregos de verão muito desafiadores ou repletos de aventuras. Portanto só me sobravam:

a)                    O restaurante dos meus pais;

b)                   O Supermercado e Açougue dos Kennedy’s;

c)                    E algum hotel. 

De fato, as duas primeiras opções estavam definitivamente descartadas. Portanto só me restava a última opção.

Hathaboom era conhecida por possuir alguns dos hotéis mais luxuosos da Costa Leste, hotéis que abrigavam viajantes ricos de todo o globo; e que eram os contribuintes mais importantes para a economia local.

Os mais respeitáveis deles eram o Paradise, o Beach e o Hotel Boom. Tínhamos outros, é claro, mas estes não recepcionavam somente a elite. Também eram os lugares que pagavam melhor salário, cerca de 3.000 dólares por mês; muito mais do que os meus pais ou o supermercado e açougue Kennedy’s juntos poderiam me pagar.

Então era justamente por isso que a concorrência era enorme.

A maioria dos meus colegas havia se inscrito para os empregos oferecidos pelos três hotéis. Éramos estudantes de escola púbica, e era norma dos estabelecimentos aceitarem apenas alunos de instituições como a minha para as vagas oferecidas no verão. Eles avaliavam nosso boletim e faziam uma entrevista no primeiro dia do verão; não o faziam antes porque, segundo eles, nossa pontualidade e responsabilidade deveriam ser testadas no ato.

Eram somente duas vagas em cada um dos hotéis e os serviços poderiam variar desde limpar piscinas, servir drinks para os clientes e... ser babá. Mas por 3.000 dólares por mês, eu estava disposta a tudo.

Ou quase tudo.

Naquele primeiro dia de verão, eu acordei cedo. Penteei meus cabelos ruivos e os prendi em um rabo-de-cavalo que me conferia um ar de polidez e responsabilidade. Enquanto me olhava no espelho circular na parede do meu quarto, eu até parecia inofensiva e dócil. O único contrapeso era o batom vermelho em meus lábios; mas até este parecia inocente como o restante do visual. Eu vestia uma calça jeans comprida e uma blusa branca de botões, muito leve e confortável. Calçava uma sapatilha bege e um par de brincos discretos pendia das minhas orelhas.

Eu estava ansiosa e eufórica, e ao mesmo tempo amedrontada com a possibilidade de não me sair bem nas entrevistas. Quanto às minhas notas, não achava que teria problema algum em alcançar uma boa classificação com elas.

Desci as escadas que ligavam meu quarto, no primeiro andar, ao térreo. Minha casa era bastante arejada e iluminada, com várias janelas acortinadas que serviam de entrada para a brisa fresca do oceano. Ela era simples, mas tinha lá seu estilo. As paredes eram pintadas com pinceladas serenas de bege e na entrada havia uma varandinha, onde uma rede igualmente bege jazia sempre armada. Também tínhamos um jardim de rosas coloridas na base da varanda.

Minha família não era rica. Nossa única fonte de sustento era o restaurante, e ele não possuía uma clientela exatamente estável. No verão, tínhamos uma vastidão de clientes, e nossas mesas nunca estavam vazias do café da manhã até a janta. Já nas outras estações, nós nos sustentávamos dos turistas atrasados que visitavam Hathabloom e dos moradores locais, quando queriam ir a algum lugar bacana.

Durante a baixa estação, quase não conseguíamos pagar as contas; e foram várias as vezes em que meus pais pensaram em fechar o Angels. Felizmente, nunca o fizeram de verdade.

Minha mãe estava na cozinha sozinha quando cheguei. Ela era muito parecida comigo. Tínhamos os mesmos cabelos ruivos e os exatamente iguais olhos verdes. Mas sua pele sensível era branca e só um pouquinho avermelhada pelo contato constante com o sol, enquanto a minha era dourada e bonita, bronzeada pelo sol californiano.

Ela estava acabando de colocar alguns pratos sujos no lava-louças quando me viu chegar. Virou-se para mim com um ar de cansaço, e eu reparei que havia olheiras em seus olhos.

Supus que ela havia passado a noite toda no Angels, organizando-o para os clientes que começariam a chegar hoje aos montes.

- Você está com uma cara péssima, mãe – eu disse para ela, enquanto abria a porta da geladeira.

Tirei a garrafa de suco de laranja e a coloquei na mesa de madeira que ficava no centro da cozinha. Já havia um copo de vidro me esperando ali, por isso não me dei ao trabalho de tirar outro do armário.

- Bom dia pra você também, Rachel – falou. Fiquei observando-a tirar o avental, dobrá-lo e guardá-lo em uma gaveta na bancada da pia. – Não é como se eu tivesse tido muito tempo para descansar hoje. Talvez se eu tivesse uma filha que me ajudasse...

- Peraí, mãe! – disse. – Você fala como se eu nunca tivesse te ajudado antes. Isso é completamente injusto com sua filha que está tentando encontrar o primeiro emprego de verdade.

Me sentei à mesa rapidamente e tirei um pedaço do bolo que estava em cima dela. Enchi o copo de vidro com o suco e comecei a comer. Minha mãe me olhava com certo contentamento, possivelmente achando graça da maneira como eu me alimentava; rapidamente, com medo de me atrasar para as entrevistas.

- Minha filhinha está crescendo... – ela murmurou.

Eu me engasguei. Minha mãe não fazia muito esse tipo; isso parecia mais com o meu pai.

- Mãe, eu não estou indo embora, você sabe – cortei mais um pedaço de bolo e o enfiei na boca. Mastiguei mais algumas vezes antes de continuar: - E se essa for a forma de você tentar introduzir uma conversa sobre rapazes e camisinha, NÃO VAI COLAR, ok?

Ela fez uma careta de surpresa. E então, como se tivesse sido iluminada por uma ideia muito inteligente, falou:

- Bem, eu não tinha pensando nisso ainda, mas agora que você mencionou...

***

Saí de casa meia hora depois. Minha mãe me bombardeou com informações sobre como é importante o uso de camisinhas e que eu devo sempre levá-las no bolso, mesmo tendo insistido que minha vida sexual era mais movimentada que a de uma estátua.

Só tínhamos um carro lá em casa, e eu o dividia com meu pai. Mas no verão, quando ele precisava sair a qualquer momento para resolver problemas no Angels, eu não me importava se ele ficasse com o carro o tempo todo.

Por isso tive que ir a pé ao Paradise, onde eu me apresentaria à primeira das entrevistas. Se eu não me saísse bem lá, ainda podia tentar a sorte no Bloom e no Beach.

Havia alguns caminhos acessíveis da minha casa até o Paradise. Por exemplo, eu poderia ir pelo centro, passando pela prefeitura e pelo shopping e continuar andando até o hotel, à beira mar.

Mas sempre sobrava a melhor possibilidade.

O Calçadão.

A caminhada até o Paradise por aquela passagem não era muito cansativa. A maior parte do trajeto podia ser percorrida pelo longo calçadão que circundava as praias principais de Hathabloom, tendo o mar azulado como plano de fundo.

O calçadão tinha um número considerável de turistas para àquela hora da manhã. Barracas já eram armadas nas praias mais populares de Hathabloom e crianças jogavam futebol enquanto rapazes musculosos e bronzeados surfavam livremente. Encontrei-me com alguns amigos durante o percurso. Eles também iriam se apresentar para as sequências de entrevistas, mas eu não conseguia enxergá-los como concorrentes. Quero dizer, mesmo que eu não conseguisse o emprego de verão em um dos três hotéis, ainda havia o Supermercado ou o açougue dos Kennedy’s e o restaurante dos meus pais; embora eu preferisse não ter que recorrer para essas opções.

Por fim, cheguei ao meu destino.

       O Hotel Paradise era totalmente cercado por toras altíssimas de madeira polida e envernizada. A cerca invadia a areia do mar, formando uma praia particular para os hospedes que desejassem mais privacidade. Ficava do outro lado da pista, embora essa não passasse na frente do prédio. Pois, à esquerda do hotel, erguia-se o paredão rochoso cartão-postal de nossa cidade. O monumento natural adentrava vinte metros no mar e era praticamente impossível de escalar se você não fosse habilidoso o suficiente. Não havia como cruzá-lo, de modo que delimitava o fim da pista e do calçadão, que eram interrompidos ali.

O paredão fazia um contrapeso primoroso à construção colada a ele. Daquele ângulo, o Paradise parecia mesmo um lugar paradisíaco, saído dos mais extraordinários sonhos. Não era de se espantar que fosse o hotel mais caro da Costa Leste. Ele transparecia ser inatingível e indestrutível, como um castelo ou uma fortaleza de tão lindo.

A entrada de pedestres só podia ser feita por uma abertura lateral. Eu e meus amigos seguimos rumo a ela. Mesmo que eu tivesse morado minha vida toda em Hathabloom, nunca tinha entrado no Paradise – ou em qualquer um dos três hotéis. Podíamos não ser pobres, mas isso não queria dizer que tivéssemos acesso a lugares tão opulentos quanto o Paradise. Há certas barreiras sociais que não pudemos cruzar, ainda que queiramos.

A abertura lateral se revelou, na verdade, uma guarita. Espelhos à prova de bala cingiam toda a estrutura intimidadora. Debaixo da guarida havia um portão de vidro negro e fortemente protegido. Dois seguranças armados tomavam conta daquela área na parte de fora – e eu, pela primeira vez, me questionei se o Paradise era realmente um hotel ou uma base ultrassecreta do governo.

 Lucy LeGross, a responsável pelas entrevistas, estava ao lado de um dos seguranças. Eu sabia quem ela era por causa do crachá em sua roupa; o seu nome estava no catálogo que nos havia sido entregue no ato da inscrição. Ela carregava uma pasta preta e uma caneta esferográfica entre os dedos esguios da mão esquerda.

Lucy tinha por volta dos trinta e cinco anos. Seus olhos eram azuis e bondosos, e os cabelos, castanhos, estavam soltos. Ela trajava um terninho marfim e uma calça cinza que não valorizava suas pernas longas e torneadas. Usava uma maquiagem bastante leve, apenas base e um batom clarinho, nada muito notável ou exuberante. Aparentemente, ela tomara cuidado ao arrumar-se, evitando chamar atenção para a própria beleza. Perguntei-me se aquela era uma norma do hotel, ou só uma forma de auto-preservação de Lucy – com tantos homens transitando por ali, não era difícil imaginar que algum rapaz daria em cima dela.

Ela nos olhou com simpatia e nos concedeu um sorriso carinhoso. Gostei dela de cara. Pediu para que nos organizássemos em fila indiana e que tivéssemos nossos documentos em mãos. Ela disse que a primeira fase da seleção se iniciava ali e seria com base em nosso rendimento acadêmico. Quem tinha boas notas no boletim poderia entrar no hotel. Quem não o possuísse, já podia voltar pra casa.

Eu era a penúltima da fila, mas não me importei.

A primeira pessoa da fila era Jessica Albany. Jessica estudava no mesmo ano que eu e, no entanto, só tínhamos algumas aulas juntas. Não éramos exatamente amigas, mas ela sempre me tratava bem. Tinha cabelos loiros longos e encaracolados belíssimos e um corpo cheio de curvas que a fazia parecer uma modelo de marca de biquíni.

Lucy esperou Jessica procurar sua carteira de identidade na bolsa. Percebi que ela nunca parava de sorrir e, quando não o fazia com os lábios propriamente, fazia-o com os olhos. Jessica entregou a identidade e ficou ansiosa enquanto Lucy tentava achar seu boletim. Eu não tinha certeza se Jessica seria ou não aprovada, porque não sabia nada de suas notas.

Entretanto, deveriam ser no mínimo razoáveis, porque Lucy entregou-lhe a identidade e fez um sinal para o segurança abrir o portão de vidro. Jessica deu um pulinho de felicidade, guardou o documento e entrou. Observei que havia um rapaz do outro lado do portão e supus que acompanharia Jessica até o seu destino.

Nos minutos seguintes, vi Andrew Parkins, Julie Frost, Rick Kane e Lukas Haas deixarem a fila esbravejando. Não haviam sido aceitos. Eu me sentia meio mal por eles, mas eu não podia fazer nada a não ser desejar que suas notas melhorassem. Também observei Claire Stahl, Nick Danes, Kristanna Cromwell e outros candidatos entrarem no hotel. A fila estava ainda maior; cerca de dez pessoas estavam em pé atrás de mim.

Quando finalmente chegou a minha vez, eu não me sentia mais nervosa. Exceto se Lucy não gostasse da minha cara e quisesse me prejudicar – o que eu achava muito improvável pra alguém que nem me conhecia – eu seria aprovada com facilidade. Tinha as melhores notas da escola e era a campeã de natação. Era bem recomendada por meus professores e tinha uma vaga praticamente garantida em uma importante universidade.

Lucy parou ao meu lado e me mostrou um sorriso verdadeiro. Eu retribuí com toda simpatia que possuía e aquilo pareceu agradar-lhe.

- Bom dia, Sra. LeGross – falei. – Sou Rachel Spall.

- É um prazer conhecê-la, Srta. Spall – respondeu, educadamente. – Está com sua identidade aqui? – perguntou-me.

Concordei e entreguei-lhe o documento com um autêntico sorriso à lá Rachel Spall. Ela o pegou e folheou em sua pasta por um tempo, até chegar em meu boletim. Vi uma mudança perceptível em seus olhos e que ela franziu levemente as sobrancelhas. O sorriso em seus lábios se extinguiu.

- Srta. Spall... – disse.

Meu coração começou a bater mais rápido. Será que havia algum erro em minha inscrição? Ou meu boletim tinha sido trocado por engano? Um milhão de suposições invadiram minha mente e eu comecei a suar.

- Há algum problema, Sra. LeGoss? – perguntei-lhe, forçando minha voz a não tremer.

Ela respirou fundo.

Observei Lucy LeGoss se recompor velozmente e me conceder mais um de seus sorrisos magníficos. Agora que eu vira sua rápida transformação, perguntei-me se não havia nada de falso no modo como os lábios dela se alargavam sempre tão descontraidamente.

- Problema algum, senhorita – ela olhou para o papel em sua pasta mais uma vez e ergueu os olhos até encontrar os meus. – Você foi aprovada para a segunda fase da seleção. Por favor, queira acompanhar o Sr. Moynaham até o local da entrevista.

Quando ela terminou de falar, o portão do hotel se abriu e ela apontou para um rapaz de terno – devia ser o mesmo que acompanhara Jessica. Seu rosto estava oculto pelas sombras, mas meu corpo não conseguiu evitar um arrepio.

Agradeci Lucy por sua atenção e peguei minha identidade. Enquanto andava em direção ao portão, não pude deixar de me virar para olhar Lucy mais uma vez. Ela estava parada olhando para sua pasta, com um ar espantado. Alguma coisa, alguma coisa havia deixado-a naquele estado.

Ela se dirigiu para o próximo candidato e baixou a pasta. E, de relance, vi meu nome escrito com letras vermelhas e uma foto minha... Com uma linha diagonal preta saindo de cada extremidade... Formando um X.

 


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