Dançando Com Os Mortos escrita por Jade Amorim


Capítulo 1
Dançando com os mortos


Notas iniciais do capítulo

Esse foi um pequeno presente de halloween. :)



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Silêncio. A linha tênue que nos mantém entre a vida e a morte é feita do mais profundo e desesperador silêncio.

Algumas novatas tentavam abafar os soluços de medo, com lágrimas escorrendo de olhos agitados. As experientes apenas olhavam sem enxergar para um ponto qualquer enquanto suas mentes estavam vidradas e absortas na ideia de perfeição daquela insanidade.

A era do pão e circo estava de volta. Sacrifícios humanos e criaturas repulsivas dividindo uma arena em prol da diversão do Governador e seu povo. A única diferença é que não usávamos escravos de guerra, era uma sujeira voluntária em troca da adrenalina, da fama e da própria loucura que cada uma carregava.

Éramos exatamente uma formação de vinte e três mulheres seminuas com um facão atado na cintura e lambuzadas de vísceras humanas que sequer me eram perceptíveis olfativamente, apenas incômodas por causa de sua textura pungente e melecada. Com o tempo deixou de ser repulsivo, é como um perfume que, depois de algum tempo de uso, você não sente mais o cheiro não importa a quantidade que passe.

Talvez, com um pouco de sorte, apenas cinco ficassem pra trás nos minutos seguintes. O número de novatas eram equivalentes aos de veteranas. Uma proporção arriscada nesse jogo onde se dança com os mortos. Já sabia de, ouso dizer que com exatidão, pelo menos três que não sairiam daquele salão tão ricamente decorado em laranja e preto.

Movidas pela ambição, muitas entravam nesse caminho sem volta atrás do dinheiro e da fama, esquecendo-se do nível de preparo na qual eram obrigadas a se submeter. Muito bem treinadas e ensaiadas, obviamente, mas nossos parceiros não estavam e, na primeira oportunidade, não hesitariam em nos devorar.

A experiência de quem está nesse jogo há mais de um ano me fazia alvo de garotas, muitas vezes, novas demais. Vinham perguntar, pedir conselhos e até mesmo tentavam se aproximar em busca de inspiração e proteção.

Nunca lhes neguei os ensinamentos que já havia buscado por contra própria quando comecei, mas também nunca lhes dei a liberdade e a aproximação que procuravam. Vi muitas pupilas ficarem para trás e quando não se sabe quem vai morrer, é melhor não criar laços.

Levantei o olhar para o gabinete do Governador, que assistia tudo de camarote juntamente com seus subordinados mais próximos. As paredes de vidro a mais de quatro metros do chão garantiam a segurança para os espectadores que se espremiam na barra de ferro para ver o espetáculo prestes a começar.

Lentamente a música começou com sua batida grave e frenética. Meu coração parecia acompanhá-la com perfeição. Respirei profundamente, fechei os olhos por um instante buscando e me agarrando àquela sensação de adrenalina acumulada. Comecei a mexer os braços no ritmo de uma coreografia ensaiada à exaustão, quase todas fizeram o mesmo em perfeita sincronia.

A garota ao meu lado estava petrificada, olhando para frente e com os punhos em riste ao lado do corpo magro e forte. Ela tremia como um coelho à espera do abate.

– Dance, – sussurrei-lhe entredentes sem direcionar o olhar, mas sentindo o dela sobre mim. – e sobreviva. É tudo que te resta.

Ouvi sua respiração pesada se acalmar e pude perceber seu corpo imitando meus movimentos. O Tum-tum-tum ensurdecedor, no qual já não sabia dizer se vinha de dentro do meu peito ou do exterior, ficou mais cadenciado. Rodopiando, puxamos as armas de nossa roupa e os colocamos em riste.

Foi neste momento que escutei o primeiro grito. Uma novata parada debilmente a umas quatro fileiras à esquerda havia sido acertada no rosto pela arma da dançarina ao lado. Algumas perderam a compostura, mas logo se recuperaram.

Neste momento as grandes portas do hall se abriram, deixando uma horda de zumbis atordoados e famintos entrarem no recinto.

Cinquenta metros.

Outro giro, as batidas mais rápidas.

Trinta metros.

Uma das dançarinas gritou apavorada, abandonou a formação e subiu correndo as escadas em direção à porta de escape no corredor superior à direita. O guarda, sem sequer piscar, apenas chutou-a por cima do corrimão. A queda a teria matado se não tivesse caído justamente em cima daquela nuvem de olhos brancos atraídas pelo seu berro.

O sangue esguichou e um pequeno grupo de mortos-vivos ficou para trás enquanto o resto continuava em nossa direção.

Quinze metros.

O ritmo acelerado, o fio da arma reluzindo, meu coração batendo e a vontade de gargalhar entalada na minha garganta. O suor e a excitação umedeciam o meu corpo. Aproximamo-nos uma das outras em direção à grande escada no meio do salão sem parar de dançar em nenhum momento. Subíamos de costas, corríamos e voltávamos nos esfregando provocativamente no corrimão.

Os zumbis alcançaram o corpo semi-inconsciente da primeira garota ferida, deixando mais uma quantia considerável para trás.

Cinco metros.

Mesmo com o barulho alto da música atordoando aquelas criaturas, elas continuavam em nossa direção. Algumas foram para o lado errado do corrimão e não conseguiram fazer o caminho de volta, outras tropeçavam nos degraus.

Seus grunhidos podiam ser ouvidos com nitidez e seu cheiro de decomposição invadiam minhas narinas. Ali podia distinguir dançarinas que já estiveram do meu lado, mas que agora haviam se tornado um deles. Não eram muitas, pois em sua grande maioria as que ficavam para trás eram devoradas por completo, mas alguns daqueles rostos me eram reconhecíveis.

Chegaram.

Continuávamos dançando e subindo pelas escadas. Algumas já estavam completamente cercadas pelos zumbis, mas conseguiam se esquivar. Subi três degraus sem me virar, agachei e ao mesmo tempo parti a carne putrefata do rosto de um que chegou perto demais.

A grande façanha dessa arte era nunca dançar com mais de dois ou três parceiros. Se fosse acertar em algo que não fosse a cabeça, os membros inferiores perto das juntas deveriam ser o alvo.


Mantínhamos a formação e quem fosse sequer arranhado já era deixado para trás. Compaixão era sinônimo de morte. A loirinha que havia petrificado ao meu lado anteriormente estava um pouco afastada, mas o brilho de seus olhos me faziam crer que ela sobreviveria, nem que fosse para ter essa sensação novamente.

Gostaria de saber quantas baixas teríamos nessa pequena festa de halloween. Nada de doces, apenas as travessuras. Muitas, de fios de aço afiados, sangue podre e cérebros espalhados.

Quando mais uma errou o passo, o seu parceiro se aproveitou da situação. Novamente fechamos o cerco e fomos para trás. Chegando no fim da escada, era hora de nos dividirmos.

Com um corredor estreito, de pouco mais que um metro e meio de largura, a horda perdia a força. Era fácil também empurrá-los corrimão acima. Corrimãos estes que, aliás, estavam decorados com faixas e pequenas abóboras feitas com cabeças de errantes. Seria meigo se não fosse asqueroso.

Ali de cima era fácil ter uma visão geral do andar inferior. Era possível enxergar três pequenos aglomerados de zumbis que se alimentavam das dançarinas mortas. Talvez tivesse algum em baixo da escada. O primeiro grupo que ficara para trás já havia se dissolvido, e restava apenas dois que roíam os ossos.

Ouvi risadas. Rachel, uma outra veterana quase tão antiga quanto eu, se deliciava ao ver rolar o que poderia ser sua décima cabeça. Pouco preocupada com o espetáculo em si, sua maior diversão era tentar bater o próprio recorde de abates. Ela era doente. Tanto quanto eu, quanto qualquer uma de nós. Hipocrisia querer julgar. Tínhamos nossos motivos e o meu ainda não havia aparecido.

A pouco menos de dois metros da porta que nos salvaria, eu a encontrei. Com o que parecia um fêmur nas mãos e a cara suja de sangue fresco, ela levantou os olhos e os conectou aos meus. Sua roupa de dançarina rasgada, os cabelos negros, os olhos brancos que um dia haviam tido a cor doce do chocolate.

Algo me fazia acreditar que algo na mente daquela criatura ainda pertencia à minha irmã. A líder do primeiro grupo de dançarinas, que ficou para trás num dia de halloween dois anos atrás e o meu motivo para estar ali.

Ela nunca se aproximava. Eu sempre tentava chegar à ela, mas parecia que instintivamente algo dizia para não se aproximar de mim. Ficava sempre à espreita, se alimentando das bailarinas já caídas. Era quase como se algo instintivo lhe avisasse que eu era uma rival forte demais.

Foi quando derrubei o último morto-vivo e estava fechando a porta que pude captar a mensagem através dos olhos de fumaça da outra tantos metros abaixo. Talvez não fosse o instinto que a afastasse de mim, mas a certeza de que no dia que acabasse com sua existência, eu estaria pronta para morrer.

Sorri. A loirinha, enquanto arfava, me retribuiu. Sacudi meu facão para tirar o excesso de sujeira, lhe direcionei um olhar maroto e finalizei com uma piscadela.

– Feliz halloween.


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Notas finais do capítulo

Texto originalmente publicado no site Anima Poison, de minha autoria. www. animapoison .com .br