Jogos Vorazes - O Garoto Do Tridente escrita por Matheus Cruz


Capítulo 22
Labaredas


Notas iniciais do capítulo

OI! Mais um capítulo!

Quero agradecer de coração à Jéssica Morais pela recomendação, tomara que goste desse capítulo e quero dar as boas vindas à Leledramione amatumblr e Giovanni Potter!

Um abraço pra todos os meus leitores, vocês são demais!



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–- Pescar Carreiristas? – Zen pergunta confuso, mesclado à um tom de voz preocupado.

–- Finnick! Que idéia genial! Prendendo-os na rede, poderei fazer o que eu quiser com eles... – Dakota quase saliva, ansiando por vingança, com um brilho cruel no olhar.

–- Tenho um plano. É perigoso, posso adiantar, mas pra quem está nos Jogos Vorazes, não será nada fora do comum. – acrescento, ainda arfante depois de tantas corridas desesperadas.

O sangue quente corre por minhas veias, fazendo meu peito inflar, e as idéias borbulharem, criando canais condutores, conectando os fios soltos em minha mente. Fico de pé. O suor brota na raiz dos meu cabelo e desliza sinuosamente por minha face enrugada numa estranha expressão de fadiga. Mostro a rede restaurada e devolvo o prego para Zen. Por fim, mais uma vez, sorrio.

–- Eu sou a isca. – explico – Nesse aquário, o peixe é o predador dos tubarões.

–- Isca? Finnick você pretende... – Zen pergunta, mesmo sabendo a resposta.

–- Exatamente isso. – digo, interrompendo-o – Sou o responsável por atraí-los.

–- Eu posso fazer isso. – Zen se oferece, e a convicção em sua voz me espanta – Digo a eles que fui traído por vocês, e pelo que eu sei, Carreiristas não deixam iscas tão frágeis escaparem.

Pisco perplexo. Faz todo o sentido.

–- Zen! Você tem toda a razão! – exclamo boquiaberto – Irina e Dan não pensariam duas vezes antes de persegui-lo! – dou tapinhas leves em seu ombro, orgulhoso do meu amigo.

–- Esqueceram um pequeno detalhe... – Dakota intervém duramente – Irina é perigosa, tem um faro apurado. Ela sabe que você, Finnick, não teria coragem de trair o Zen, nunca. Essa história levaria todo o esforço pro buraco.

Sou obrigado a concordar com Dakota também. O que Dan tem de músculos, Irina tem de neurônios, e com ela por perto, precisamos tomar muito cuidado.

–- Ok, nesse caso, eu vou junto com o Zen. Fazemos parecer que o encontro foi por acaso e, se eles perguntarem, diremos que foi você quem nos traiu. – aponto pra Dakota e nós trocamos e um olhar de cumplicidade. – Concorda?

Zen cruza os braços aguardando a resposta.

A garota assente, soltando a respiração, e nos encarando ameaçadora.

–- Irina é minha – avisa secamente, o tom sugerindo que isso é uma exigência, não um pedido. – Quebrarei dente por dente, até deixar aquela cadela ruiva banguela – fala, batendo palmas empolgada.

Gosto da idéia. Se tem alguém que pode dar o que Irina merece, com certeza é ela.

– Eu teria o maior prazer em capar o peruzinho mole do Dan, mas deixarei vocês cuidarem dele... Espero que não tenham piedade...

Rimos. Um contraste violento numa atmosfera tão medonha.

Zen, no entanto, ficou assustado.

Paro de ri quando vislumbro sua expressão séria, nos fitando com grandes olhos marejados, rodeado de manchas avermelhadas e rugas que lhe dão um aspecto sombrio. Eu e Dakota o assustamos, estamos conversando como Carreiristas, sobre tortura, violência, dentes quebrados... É difícil ouvir alguém em quem deve confiar, falar em tirar vidas com tanta crueldade.

–- Isso não é sério... é? – Zen pergunta num sussurro quase inaudível.

–- Claro que...

–- Não! Dakota só está brincando – interfiro, antes que Dakota fizesse uma besteira.

–- Não gosto desse tipo de brincadeira. – Dakota revira os olhos debilmente quando ouve Zen dizer isso.

Lembro da Annie, provavelmente me assistindo rir de coisas tão horríveis, o que evapora os últimos resquícios de humor em mim, trazendo um pesar desconcertante.

–- Então... – começo à dizer, pousando a mão no ombro de Zen e arriscando um sorriso de desculpas – Preciso da ajuda de vocês, a rede deve ser suficiente para dois... – explico, indicando um grosso véu de trepadeiras que forra as paredes entre os galhos vivos. – Prontos?

Os dois confirmam em meio à sorrisos e começamos o trabalho.

Durante duas longas horas, Dakota e Zen me ajudaram a costurar uma nova rede acoplada à antiga. Zen limpa os cipós cabeludos das trepadeiras, tirando as pequeninas folhas alaranjadas em forma de coração, e os entregando à Dakota, que amarra os fios em nós de pescador. Eu finalizo, costurando os nós uns aos outros, até a rede ganhar forma.

–- Seus nós são bons, como os de um pescador experiente. – elogio, mas Dakota não se gaba como de costume, ao contrário, apenas baixa a cabeça. – Com quem você aprendeu?

Ela não responde, mas balança a cabeça negativamente, lamentando algo e encolhendo o queixo, à beira das lágrimas.

Engulo em seco. Talvez tenha mexido em alguma de suas feridas.

–- Bem... é... desculpe, não queria...

Dakota se volta para mim, seus lábios finos e rosados se erguem num canto da boca e os olhos apertados ganham um brilho alegre nas pupilas negras.

Boas memórias estão passando na mente enigmática da senhorita Marshall, fugindo das caixas onde foram cuidadosamente depositadas e trancadas, trazendo à tona lágrimas travessas e a garotinha frágil que existe por trás da armadura de guerreira.

–- Meu pai, foi ele quem me ensinou. – é difícil acreditar, mas Dakota responde com a voz embargada – Ele foi um grande pescador.

Zen lhe entrega mais um cipó, ela volta ao trabalho e não diz mais nada. Desencorajado, não toco mais no assunto, mas um sinal de alerta pisca em minha cabeça: encontrei o ponto fraco de Dakota.





Durante uma manhã chuvosa, fiquei espiando as ruas enlameadas do Distrito 4 serem surradas por gotas velozes e pesadas que se precipitavam de grossas e cinzentas nuvens. Um vento gélido fazia as cortinas se sacudirem com violência, trazendo uma névoa opaca e envolvente que parecia emanar dos espaços entre os ladrilhos rústicos das vielas.









Apertando o casaco contra o corpo, me afastei do batente da janela e fechei o trinco. Minha mãe se encontrava no sofá, assistindo sobre tendências tecnológicas na Capital e bebericando uma xícara de chá sete ervas. Sentei-me ao seu lado e ela recostou a cabeça no meu ombro, enquanto eu afagava seus cachos cinzentos.





Nessa época eu tinha oito anos e não conhecia a Annie. Era domingo, não tinha escola, mas o papai saiu para trabalhar cedo no cais, no meio de uma furiosa tempestade. Desde que acordou, minha mãe está aflita, como fica todas as vezes em que está chovendo e o papai vai pescar em alto mar.

Nunca havia acontecido nada, até aquele dia.

Nos sobressaltamos quando a porta da cozinha se abre com um estrondo e meu pai entra, completamente molhado, em casa. Papai é um homem robusto de ombros largos e grandes braços endurecidos por anos de trabalho no cais. Seu rosto é parecido com o meu, mas seus olhos são castanho-avermelhados e o cabelo é negro.

–- Houve um acidente... foi tudo culpa minha!! – diz, chorando, as lágrimas descendo amarronzadas pela camada de sujeira que cobre sua face envelhecida. – Os outros morreram... – nos levantamos e ele corre para nos abraçar – Morreram por minha causa... – aos soluços, seus braços nos apertam contra seu peito arfante.

–- O que aconteceu? Que acidente foi esse? – mamãe pergunta assombrada, quase chorando, e deito a cabeça no ombro do meu pai, tentando consolá-lo.

Pessoas saem de suas casas, curiosas, no meio da chuva. Alguns vizinhos se aproximam, papai nos solta e senta no sofá, com a cabeça entre as mãos, chorando solto e alto. Corro até a porta e vejo uma garota morena de vestido verde, se debruçar sobre um saco preto. Alguns pescadores tiram o chapéu de palha e os apóia contra o peito, num sinal de solidariedade. Senhoras tentam afastar a garota do corpo, mas a menina se debate. Há outro corpo, em frente a uma casa mais próxima, e uma esposa abraça seus dois filhos gêmeos que choram na barra de sua saia.

O Sr. Calil nos conta sobre o barco, que saiu cheio de pescadores de madrugada, ter batido nas pedras. Escaparam dois dos sete pescadores, um deles é meu pai, que acabou provocando a batida ao optar por uma rota perigosa.

–- Só sobreviveram seu marido, senhorita Odair, e o Edward Marshall, que acabou perdendo as duas pernas na tragédia. – a voz rouca do senhor Calil completa, e mamãe leva a mão ao coração, ao mesmo tempo horrorizada e aliviada por meu pai ter sido o único à sobreviver sem seqüelas.

Descrente, me afasto, tapando a boca, pálido de susto. O vejo sentado no sofá, molhando a toalha de renda azul que cobre os assentos, tentando tirar as mechas molhadas dos olhos.

–- Pai... – sussurro, sentando ao seu lado – A culpa não foi sua... – ele não responde, apenas choraminga – eu te amo... você sobreviveu, e está aqui, do meu lado, com seu filho... – minhas palavras soam trêmulas – Ninguém vai te culpar por nada, mas se isso acontecer, eu vou bater nessas pessoas até sangrarem... – papai não diz nada, mas seu braço me envolve, me puxando para perto dele.

–- Filho, você é meu bem mais precioso... – escuto, antes de um trovão romper o silêncio pesado e chuva voltar à se precipitar com violência.





No final da tarde, eu, Dakota e Zen observamos o reflexo opaco de Henry tremeluzir no céu lusco fusco púrpura. Suspiramos com pesar e Zen baixa a cabeça evitando encarar a o rosto ossudo e sério de Rachell. O hino de Panem cessa e o labirinto mergulha na escuridão.









Caminhamos por meia hora, até encontrar um local largo o suficiente para não encostamos nos galhos enquanto dormimos e com saídas suficiente para uma fuga ágil.





Fiquei de guarda até os primeiros raios de sol ofuscarem o pontilhado de estrelas no céu. Meus companheiros acordaram com o reflexo azulado do vidro nos olhos, ficaram e de pé e guardaram os sacos de dormir de volta nas mochilas. Tomamos um gole de água na garrafa de Dakota e a garota matou um coelho branco que saltitava próximo a nossos pés.

Tentei ignorar o líquido viscoso que envolvia as vísceras do bicho e engoli, apertando o nariz, aquela carne crua e ensangüentada. Zen mastigou normalmente e disse que estava acostumado a comer coisas assim no Distrito 12.

Prontos para mais um dia de Jogos Vorazes, repassamos o plano e eu entrego a rede à Dakota. O próximo passo é encontrar Dan e Irina, que segundo meus companheiros, fugiram para o labirinto no dia do Golpe, cambaleando de sono.

–- Cornucópia, os Idealizadores devem ter achado uma maneira de mandá-los para lá, afinal, é onde ainda tem o que sobrou dos mantimentos que deixamos para trás. – digo.

Concordamos e começamos a caminhada. Curvas, corredores estreitos, zig zag, trezentos e sessenta graus, degraus de grossas raízes, aquilo parece um trabalho inútil. Por todo o percurso sentimos a estranha sensação de estarmos sendo observados pelos galhos em volta.

Meu coração bate velozmente contra as costelas, ansiando por adrenalina. Meu espírito de Carreirista está aflorado, estalando dentro das minhas veias, fazendo meus olhos atônitos crescerem e deslizarem de um lado para o outro, observando cada passo à nossa volta.

O som de um canhão ecoa, freamos o passo surpreendidos. Ouço um borbulhar e a temperatura começa à subir, nos envolvendo com uma nuvem de calor, abrindo nossos poros, evaporando toda a água que bebemos mais cedo.

Voltamos à caminhar, agora com mais dificuldade, sedentos, assando num imenso forno. O suor começa à escorrer e minha camisa gruda, formando uma pequena curva sobre meu abdômen. O sol queima minha nuca, que aos poucos começa à arder.

–- Que calor infernal... será que esses Idealizadores acham que isso ajudará em alguma... – a voz de Zen escapa entre os lábios e silenciam. Seus olhos focam no brilho flamejante atrás das paredes riscadas, e paralisado, respira arfante, começando à se desesperar.

–- Não teria um jeito mais amigável de nos conduzir à Cornucópia? – deixo escapar um grito quando Dakota aponta. – Porque precisa ser assim?

–- Eles querem um show, Dakota... um show... – respondo antes de...

–- Corre!!! – gritamos juntos e saímos desembestados corredor acima, tropeçando em raízes e ferindo os braços nos espinhos. Sigo na frente, como uma bússola e meus companheiros me seguem, como se eu soubesse o que estou fazendo.

As serpentes vêm com seus dentes letais atrás de nós, como aquelas do treinamento, mas diferentes... Essa estão em chamas!!! São serpentes de fogo e dez vezes maiores que a que vimos naquele dia! O calor que emana delas é insuportável e aos poucos vai tirando todo ar de meus pulmões.

Cornucópia, esteja próxima, por favor... peço, desesperado.

Sinto os lábios racharem, a garganta queimar, os olhos ressecarem até o ponto de quase saltar das órbitas e a visão duplicar. Dois caminhos, curvas, passos, quatro paredes, mais brilhos laranjas e os chiados das serpentes, com línguas de fogo lilás.

Um, dois, três passos. O vento me empurra e a sensação de restauração é prazerosa. O calor atinge o ápice, olho para trás e vejo a serpente avançar, abrindo a boca e exibindo as presas venenosas em chamas, soltando um grito ensurdecedor, rachando os vidros. Parece um cometa. A serpente se dissipa antes de nos atingir, com uma áurea vermelha lançando luz antes de desaparecer.

Me volto para frente e sei de onde veio aquele vento protetor. A campina está no final desse último corredor, cercado por emaranhados de galhos que seguem como veias e se enroscam num arco arredondado.

Estamos no centro da Arena.

Cornucópia.



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