Destino escrita por Eve


Capítulo 25
Capítulo Vinte e Cinco




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XXV

 

 

Atena acordou com um terrível mal estar. Mas se servia de consolo, pelo menos ela já podia respirar novamente e sua cabeça não mais estava latejando. Ergueu-se como pôde, apoiando-se na cabeceira da cama, e por um momento estranhou estar sozinha no quarto. E então estranhou o fato de estranhar acordar sozinha, pois era assim que ela sempre despertava.

Aí se lembrou de que Poseidon a tirara de seu quarto na noite passada, e que ela havia dormido com ele. Haviam dividido uma cama pela primeira vez desde o casamento, voluntariamente dessa vez. Atena queria ter qualquer opinião sobre o fato, mas na verdade só conseguia pensar no porquê de ele tê-la abandonado ali quando sabia que estava tão mal. Afundou nos travesseiros, sentindo-se exausta demais até para pensar no que faria a seguir. Mas esse estado de letargia não durou muito, pois logo ela percebeu ruídos vindos do lado de fora do castelo. Nada estranho, apenas as vozes de centenas de pessoas, o ruído de carroças e animais, o clangor de metal e outros sons próprios e característicos de qualquer cidade, mas que não deveriam ser ouvidos tão longe, ali na torre sul, a menos que a comoção estivesse ocorrendo no pátio do castelo.

Atena não demorou nem um segundo para lembrar-se.

Levantou-se bem mais rápido do que deveria, o que fez sua vista escurecer, mas ignorou a tontura e tratou de arrumar-se rapidamente, sem nem mesmo chamar pela criada. Desceu as escadas como pôde e chegou à entrada do salão principal sentindo-se sem fôlego. Mas ainda assim saiu determinada para o pátio, e por sorte encontrou logo quem procurava.

Poseidon estava de costas, conversando com um senhor que parecia assustado só de estar na presença dele. O velhinho revirava o chapéu nas mãos ossudas e os olhos claros percorriam nervosamente o espaço, sem nunca olhar para Poseidon. Foi ele quem primeiro viu Atena, e sua expressão devia estar muito furiosa, ou Poseidon dissera algo realmente horrível, porque o homem engoliu em seco e assumiu um olhar de quase desespero. Sem se importar muito com isso no momento, Atena simplesmente caminhou até os dois e puxou Poseidon de lado com a maior força que conseguiu. Certamente não era muito, pois Poseidon mal se moveu, mas foi o suficiente para o ancião dar às costas e sair apressadamente.

— Atena? O que está fazendo? - Poseidon parecia surpreso por vê-la ali, e havia algo de preocupado em seu olhar.

— O que eu estou fazendo? Não era você quem deveria perguntar isso! - Atena estava bastante ciente de que sua voz estava um tanto quanto histérica, mas ela não se importava. - O que pensa que está fazendo aqui?

— A seleção dos criados! - Ele exclamou, como se fosse óbvio.

Atena poderia batê-lo naquele momento. Não era isso que queria saber. 

— Eu sei que é a seleção dos criados! - Ela rebateu entredentes, baixando o tom de voz para não chamar a atenção dos moradores. - O que quero saber é com que autoridade você vem até aqui e inicia o meu evento sem mim, prejudicando toda a minha organização e meu método com a sua intromissão.

Poseidon agora parecia indignado.

— Com a autoridade de senhor desse castelo, eu suponho. E não era você que há algumas horas estava tendo uma crise ou o que quer que fosse aquilo? Certamente não está em condições de promover um evento deste tamanho agora! De qualquer maneira, não ficou combinado que eu viria ajudá-la?

Atena cerrou as mãos em punhos, tentando controlar sua raiva. A questão aqui era que ele havia sobrepujado seus esforços na primeira tarefa oficial que recebera como senhora de Atlântida, a deixando de lado como se fosse alguma espécie de flor delicada e recém colhida que não poderia ser manuseada. Além de tudo, aquele tom condescendente que ele estava usando a fazia querer esmurrá-lo.

— Você faria os pronunciamentos. Não é como se estivesse apto a escolher toda uma criadagem.

— E por que não? Por que sou homem?

— Provavelmente. 

Ele ergueu uma sobrancelha, cético. Ela revirou os olhos.

— E porque por ser homem não foi treinado a vida inteira para isso. Duvido que sequer saiba todos os tipos de funcionários que precisaremos aqui. Administrar o castelo é o meu dever, não se esqueça.

— Nosso dever. - Ele a corrigiu. - E posso aprender o que for necessário para auxiliá-la. Não posso permitir que faça tudo sozinha depois do que aconteceu ontem.

— Aquilo não foi nada. - Ela tentou dispensar sua preocupação. - Já disse que passei por isso outras vezes e que ficarei bem.

— Nada?! - Ele exclamou indignado. - Atena, quando cheguei ao seu quarto você mal respirava!

Atena desviou o olhar, desconcertada. Não havia como negar aquilo

— Está decidido. - Ele disse por fim. - Ficarei ao seu lado o tempo todo enquanto escolhemos os criados; não arriscarei que passe mal novamente longe de mim. E se sentir qualquer coisa, me avise imediatamente que a levarei de volta para o castelo. Entendido?

Ela anuiu, aceitando que ele seria irredutível nesse ponto.

...

Poseidon não mentiu quando disse que ficaria ao seu lado durante todo o tempo. Se Atena estava próxima à grande mesa posta no pátio, verificando algo, ele se postava atrás dela, sempre com os braços ao seu redor. Se era ele que precisava falar com alguém ou testar algo, a mantinha ao seu lado, com um dos braços envolvendo sua cintura. Mesmo que fosse segurando-a pelos ombros, ou guiando-a suavemente com as mãos em seu quadril, Poseidon nunca deixava de tocá-la. Atena estaria mentindo se dissesse que não gostava da sensação de segurança e cuidado que aqueles gestos proporcionavam.

Agora eles testavam as cozinheiras. Já haviam dispensado três delas, e nenhuma havia os agradado particularmente. A maioria das candidatas à vaga já era velha o suficiente para ser mãe ou mesmo avó de Atena, mas havia uma delas que era jovem e aparentava ser mais nova que ela mesma. A dita cuja era a última candidata, e após provar uma gama de pratos insossos de cozinheiras mais experientes, Atena duvidou um pouco da capacidade da jovem.

Poseidon decidira que as cozinheiras eram trabalho para Atena quando os dois experimentaram uma gororoba particularmente rançosa, e agora ele simplesmente a acompanhava, ficando atrás dela com os braços ao seu redor, enquanto ela caminhava ao longo da mesa experimentando as provas das cozinheiras. Quando enfim chegaram à última candidata, Atena perguntou:

— Qual o seu nome, querida?

— Penélope. - A moça respondeu suavemente, fazendo uma leve reverência para seus senhores. Penélope era pequena e graciosa, apenas alguns centímetros mais alta que Atena. Tinha cabelos longos e ondulados, de um castanho claro, e um rosto comum, porém belo.

— Então, Penélope... O que preparou para nós?

A moça rapidamente pegou uma tigela de madeira e serviu o conteúdo de sua panela fumegante para Atena. Era um cozido de carne de cordeiro com caldo espesso e aroma inebriante. Ela também serviu pequenos pedaços de pão macio para serem mergulhados no caldo, e foi o que Atena fez, experimentando em seguida da carne. Estava absolutamente delicioso. Virou-se para Poseidon, sem que saísse do seu abraço, e levantou a colher para que ele experimentasse também.

— Não é melhor coisa que já comeu em sua vida? - Ela perguntou antes mesmo que ele terminasse de engolir.

Poseidon riu e respondeu:

— Talvez não em toda minha vida, mas com certeza foi a melhor de hoje.

Ela sorriu antes de virar-se para Penélope. A garota não estava mais sozinha: ao seu lado, havia uma criança que os observava encantada e assim que Atena estava novamente de frente para elas a menina virou-se para Penélope e falou:

— Eles não são o casal mais adorável que você já viu?

Penélope sorriu, mas não teve tempo de responder antes que outra jovem chegasse e repreendesse a criança:

— Quantas vezes já lhe disse para ter educação? - A recém-chegada devia ter percebido o constrangimento de Atena, pois se apressou em desculpar-se. - Por favor, milady, a perdoe. A pobre criatura não consegue ficar calada, fala tudo o que vêm à cabeça.

Atena tentava convencer-se de que não havia nada de romântico ou adorável entre ela e Poseidon e que isso era coisa da imaginação fértil de uma criança, então mudou de assunto:

— Não se preocupe. E vocês, quem são?

Foi Penélope quem respondeu:

— Essa é Bia - disse apontando para a jovem ao seu lado, e em seguida para a criança - E essa é sua irmã Nice.

— Mas como Nice é um nome horroroso - interrompeu Bia - Nós a chamamos de Nik.

Atena sorriu da careta que a menininha fez.

— Elas são suas irmãs, Penélope? - Poseidon perguntou.

— Não. Elas são órfãs. Eram minhas vizinhas e ficaram sozinhas quando a mãe delas morreu, então eu as trouxe para minha casa. Eu morava apenas com meu pai, mas ele morreu recentemente, então agora somos apenas nós três. Nós cuidamos uma das outras.

Atena apiedou-se das garotas. Sabia o que era ser órfã de quem mais importava. Era admirável que elas três conseguissem viver sozinhas.

— Quantos anos vocês tem?

— Eu tenho 16, Bia tem 14 e Nik tem 8.

E tão jovens! Atena ia falar alguma coisa, mas Poseidon adiantou-se:

— Pois bem, Penélope. Você é oficialmente a nova cozinheira do castelo. Bia e Nice, vocês também são muito bem-vindas à nossa casa. Podem auxiliar Penélope ou se encarregarem de alguma outra tarefa que Atena lhes designar.

As meninas agradeceram efusivamente e se retiraram juntamente com as outras cozinheiras que haviam sido dispensadas. Atena tentou soltar-se de Poseidon, mas ele a abraçou firmemente, segurando-a ali e então apoiando confortavelmente o queixo no topo de sua cabeça. Era difícil se convencer de que não havia nada de romântico entre eles quando Poseidon a abraçava daquela maneira. Desistindo de relutar, relaxou de encontro a ele, descobrindo que era de fato um apoio muito agradável.

— Ela é tão jovem... Não será perigoso deixá-la encarregada da cozinha? - Atena perguntou, referindo-se a Penélope.

— Você não ouviu o que ela disse? Aquelas meninas encaram a vida sozinhas há sabe-se lá quanto tempo. A cozinha de um castelo não será nada para ela. E uma vez lá dentro, poderemos nos assegurar de que elas estarão sempre seguras, bem alimentadas e saudáveis.

Ela pensou sobre isso por um momento.

— Tem razão. - Acabou concordando. E logo os dois seguiram para testar as categorias restantes.

... 

Já era noite quando terminaram, e Atena não podia negar que o esforço do dia a levara à exaustão. Seus músculos estavam doloridos e ela odiou-se por ser tão fraca e doente. Mas uma coisa a aliviava: ela e Poseidon haviam conseguido recrutar todos os criados de que precisariam e agora o castelo seguiria a um ritmo normal, se assemelhando mais a um lar. E ainda melhor: Madge se aposentaria de uma vez por todas.

Estavam chegando a seus aposentos, e Atena seguia para seu quarto quando Poseidon a segurou:

— Aonde está indo?

— Ao meu quarto. - Ela respondeu, franzindo as sobrancelhas para aquela pergunta.

— Nada disso. - Ele negou. - Você vai dormir comigo, assim poderei saber se você passar mal novamente.

— M-Mas...

Ele não permitiu que Atena discutisse. A arrastou para dentro do aposento e rapidamente foi até seu quarto, trazendo alguns de seus pertences e a entregando.

— Eu ficarei ali fora enquanto você se troca.

Atena não teve escolha além de fazer o que ele dizia. Estava deitada quando ele voltou ao quarto, já em trajes de dormir, e deitou-se ao lado dela, preservando um bom espaço entre os dois. Ambos estavam virados para o centro da cama e ele a encarava descaradamente enquanto ela desviava o olhar para suas mãos, o lençol, ou qualquer coisa que não fosse ele. Aquele dia servira para que Atena notasse definitivamente o modo como Poseidon a observava e a tocava, algo que mesmo antes daquela proximidade era difícil de se ignorar. Às vezes ela nem mesmo tinha certeza de que queria ignorá-lo. Era lisonjeador ser tão claramente desejada ao mesmo tempo em que ele prezava pela sua autonomia. Ficaram um bom tempo em silêncio, mas acordados, até que Poseidon perguntou:

— Por que está tão determinada a não me deixar buscar ajuda? Tenho certeza que nosso padre a examinaria sem contestar.

Ela pensou por um bom tempo se deveria ou não responder sinceramente, e acabou decidindo que o cuidado e a consideração dele mereciam no mínimo uma dose de honestidade. Fosse porque Poseidon a inspirava confiança ou porque ela precisava desabafar sobre isso há muito tempo, Atena falou:

— Como você sabe, eu sou o fruto da infidelidade de meu pai. Minha mãe era uma das damas de Lady Hera e meu pai a engravidou logo após seu casamento. Ele tinha casos com a maioria das servas no palácio e outras mulheres da cidade antes de comprometer-se com Hera, e até então ela não parecia se importar. Mas ela não gostou nem um pouco quando soube que minha mãe estava grávida, uma vez que ela mesma ainda não havia dado filhos a meu pai. Hera desejava que minha mãe deixasse o Olimpo de uma vez por todas, me levando junto com ela. Não suportaria aquela afronta.

Fez uma pausa antes de continuar:

— Lady Norwood quase teve seus desejos realizados. Minha mãe entrou em trabalho de parto antes do previsto e morreu na tentativa de me dar à luz. De fato, ela conseguiu, mas eu era um bebê prematuro e doente, e os padres e as parteiras diziam que não viveria sequer um mês.

— Quem te contou isso? - Poseidon perguntou.

— Consegui arrancar de minha tia Deméter as respostas que meu pai me negou a vida toda. Mas voltando à história, bem... Eu sobrevivi. E fosse pelo fato de minha fragilidade ou pela lembrança dolorosa da morte de minha mãe, eu sempre fui a favorita de meu pai. Lady Norwood deu à luz ao seu primogênito alguns anos depois de meu nascimento, logo quando tive minha primeira crise. Era muito nova, não me lembro bem. Mas os sintomas não mudaram durante os anos seguintes, quando eu era acometida pelos mesmos males repetidamente. Até que os padres disseram a Lorde Norwood: não havia cura para mim. Eu era fruto de um relacionamento vil e pecaminoso, uma bastarda suja aos olhos de Deus mesmo que fosse a preferida aos olhos de meu pai. Segundo eles, a minha doença não era nada além de um castigo empregado a mim pelo simples fato de existir, e não havia nada que se pudesse fazer sobre isso.

Atena piscou para se livrar das lágrimas. Ainda era doloroso lembrar-se de si mesma, uma criança indefesa nas mãos daqueles homens que a chamavam de aberração.

— Foi então que Hera exigiu que Zeus me mandasse para longe. Ela temia que o castigo divino se estendesse sobre seus preciosos filhos. Meu pai foi compelido a atender seu pedido, talvez temendo pela minha segurança no Olimpo. Os rumores de uma criança amaldiçoada apavorariam mais do que apenas nossa família. Em uma semana eu estava morando com tia Deméter e sua filha Perséfone. Enquanto isso, Apolo viajava pela Europa. Quando retornou, usou seu estudo e os conhecimentos que adquiriu com alguns sábios orientais para preparar remédios que melhorariam minha condição. Mas ele tinha de fazer isso secretamente, ou a Igreja poderia acusá-lo de bruxaria. Eu estava sem sintomas por três ou quatro anos até a noite do nosso baile de noivado.

Poseidon permaneceu algum tempo em silêncio, como se absorvesse aquelas informações.

— Diga-me o que poso fazer, então. - E sua voz era de alguém ansioso por ajudar. Mais uma vez Atena foi surpreendida pela dedicação que ele lhe oferecia. - Devo trazer Apolo aqui?

Ela fez que não com a cabeça.

— Não é preciso. Ele continua me mandando tudo o que necessito, e de qualquer maneira, ataques fortes como o de ontem costumavam ocorrer não mais que algumas vezes por ano, e se aconteciam os remédios não tinham o poder de evitá-los. No restante do tempo eu preciso apenas de cuidados que já estou habituada a tomar.

Poseidon assentiu, então estendeu a mão e acariciou sua bochecha suavemente. Atena fechou os olhos, e ele continuou fazendo isso até que ela começou a se sentir sonolenta. Nem percebeu quando dormiu.


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Notas finais do capítulo

[Mais uma aula de história da tia Vitória: na Idade Média a Igreja Católica era a detentora de praticamente todo o conhecimento e também quem o controlava, por isso os "médicos" eram realmente os padres e qualquer um com conhecimentos alternativos que os praticassem sem permissão (e obtivesse resultado, na maioria das vezes) poderia ser acusado de bruxaria. As doenças e pragas eram muitas vezes vistas como castigos divinos inevitáveis que atingiam apenas os pecadores. Sobre mitologia grega agora: Penélope, Nice e Bia são personagens mitológicas gregas, e Nice e Bia realmente são irmãs nas histórias originais.]