Retalhos escrita por Mandy


Capítulo 3
Dookins


Notas iniciais do capítulo

Esse capitulo é denso.
Narrado de forma completamente diferente.
O único que usarei alguma referencia a psicologia.
Espero que gostem.



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O correr da vida embrulha tudo.
A vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem...”

Guimarães Rosa


Era frio, frio como qualquer mês de inverno.

Era escuro como nenhuma e todas as noites em particular.

Eu estava no meu lugar de sempre, no estabulo junto aos outros cavalos tentando dormir. Na realidade eu era o único acordado, pois era o único que tinha algo para pensar que não fosse as coisas de cavalos... infelizmente meus outros companheiros não se importavam com os humanos tanto como eu, talvez porque eles eram jovens ou porque alguns vieram de fazendas de humanos ruins que os maltratavam, na realidade nunca saberei o motivo, mais o único equino do estabulo que realmente se interessava pelo que acontecia na casa grande era eu.

Oh, desculpe-me por começar complicando suas cabeças leitores. Deixem me apresentar: meu nome é Dookins e sou um cavalo da raça Clydesdales, orgulhosamente escocês, meço 160m de altura e tenho em meu pelo as cores negro e um pouco de branco cobrindo as quatro patas. Não preciso dizer que sou um animal muito bonito. e sempre bem disposto.

Agora que já somos apresentados eu posso voltar a minha narrativa. Eu estava imerso em pensamentos e sem conseguir dormir por causa de muitos deles, minha preocupação com os seres humanos que tinham me adotado desde meu nascimento (segundo o velho cavalo Falabellas o dono da fazenda tinha me ganhado em um jogo de poker, eu realmente não me lembro muito da coisa toda...) era intensa. As coisas que estavam acontecendo na casa grande me deixavam louco tanto porque eu tinha apreço especial pelas três crianças que moravam ali quanto porque minha personalidade não permite ver coisas como aquelas.

Como no mundo que Deus criou uma mãe, sim, uma mãe humana- a pior e mais ingrata especie de todas- poderia pensar em não amar seus filhos?

Se fosse apenas a falta de amor eu nada faria e nem ao menos me gastaria passando noites sem dormir, mas infelizmente a mulher dessa fazenda maltratava duas de suas crianças.

Eu não conseguia aguentar. Não é porque sou um cavalo e porque não pertenço ao mundo que eles vivem que eu tenho de assistir tudo de braços, ops, rabo dobrado e crina erguida. Eu me assustava com as poucas coisas que a mulher deixava transparecer fora de sua casa.

Sim, a idiota restringia seu comportamento para com os filhos que não amava dentro de casa, mas como um ditado humano diz: o mordomo e os garçons sempre sabem de tudo. Isso é verdade, nos os cavalos somos mais inteligentes e mais discretos do que qualquer empregado humano e podemos ver e ouvir muito melhor do que eles, era logico que não ficariam impunes os atos que ela cometia. Não pelo menos para mim, os outros cavalos as vezes se permitiam fofocar, mas nada em especial. Eu era o único oposto, eu era o único que realmente queria resolver a situação deles.

Naquela fazenda viviam quatro pessoas. Uma mulher de cabelos quase loiros e olhos cor do âmbar, um garoto igual a ela mais muito diferente em sua conduta e mais dois meninos que não passavam de filhotes de cabelos negros e olhos azuis como o céu mais bonito que um cavalo livre de floresta poderia ver. Esses dois eram a imagem e a semelhança de seu pai- o homem que me comprou e que infelizmente morreu de um ataque cardíaco quando os gêmeos nasceram- mais completamente diferentes de toda a família.

Um deles era batizado com o nome do anjo da quinta-feira, Castiel, ele era inteligente e muito conversador. Sua aura era de um tom delicado de dourado e ao que parece todas as fêmeas eram lisonjeadas com a sua presença dizendo firmemente que ele seria um grande homem no futuro. Ele era cego como um gato recém-nascido e tinha um temperamento um pouco submisso, mas sempre sabia o que as pessoas queriam dele. Era ele o segundo que mais passava tempo comigo, era ele o único que gastou horas e horas lendo com suas mãos coisas sobre o jardim da Babilônia e o antigo Egito. Ele me contava tudo com um fascínio de quem um dia descobriria o mundo e jurava que eu de nada sabia, bom, ninguém realmente poderia saber que nos cavalos somos conhecidos por ter uma tradição oral forte e que gostávamos de falar sobre as grandes conquistas que fizemos para os humanos.

O outro tinha o nome de um dos apóstolos do menino Deus- James- e era uma coisa completamente diferente. Sua aura brilhava como a luz do sol, era de uma cor azul e parecia crescer quando ele sorria, ele era menos inteligente do que as pessoas normais e quase não passava tempo com nenhum dos animais da fazenda, pois a mulher não o deixava sair muito. Quando ele saia parecia que todos nos eramos sugados por sua beleza de alma e não havia nenhum animal que não quisesse ter sua presença nem que seja apenas por um minuto. Quando não o encontravam dentro da grande casa os humanos poderiam vê-lo dormindo ao meu lado no estabulo. Definitivamente nunca esquecerei desses momentos e, mesmo que fossem tristes, eu me sentia digno ao estar ao lado de uma presença quente como a dele.

Eu estava pensando exatamente na ultima vez que o pequeno Jimmy deitou-se sobre mim quando o barulho de passos chegaram a minhas orelhas. Não demorou muito para eu ver a figura magra e desesperada- eu poderia saber pelo seu cheiro, mesmo não sendo como os cães os cavalos sabem reconhecer emoções pelo ofato- eu o reconheci imediatamente. Era meu dono, o mais velho dos irmãos.

Seu nome era Gabriel e ele parecia estar sofrendo muito.

Eu relinchei em reconhecimento e ele simplesmente me olhou com os olhos marejados, demorou muito tempo para ele conseguir se mover das sombras e deixar-se mostrar para mim, mas quando o fez senti suas mãos acariciando minha crina. Era agradável e melancólico ao mesmo tempo.

–Dookins, eu estou perdido.

Eu tinha certeza que a escolha de palavras aqui foi mal feita, na minha opinião ele estava completamente destroçado, mas quem era eu para dizer alguma coisa? O vocabulário equino se restringe a uma única palavra conhecida como relinchar.

Relinchei então para ele deixando claro que eu queria saber mais sobre o que ele estava falando.

As vezes eu penso que ele conseguia me entender, seus olhos castanho liquido me encararam como se tivessem medo de contar a historia toda e ao mesmo tempo queriam fazer jus a minha companhia. Era difícil de explicar.

Uma das éguas roncou em seu sono antes que ele falou:

–Eu vou fazer vinte e um anos. Era verdade, estávamos em dezembro de mil novecentos e oitenta e seis. Meu dono completaria vinte e um anos em duas semanas.

Eu coloquei minha cabeça perto dele e deixei que ele olhasse diretamente em meus olhos, naquele momento eu não sabia o que dizer, eu era certo de que aquela idade era especial para os humanos mas não tinha a minima pista de por que.

–Sabe- ele continuou dizendo mais uma vez como se tivesse lido meus pensamentos- os humanos finalmente são donos de suas vidas aos vinte e um anos. Relinchei feliz, finalmente tinha entendido um pouco das coisas. Mesmo que ainda ache os humanos estranhos por simplesmente pensarem que os filhos são suas propriedades eu era capaz de entender como era difícil a liberdade, muitos de nos não conseguíamos mais ver uma terra livre sem cercas e ficar contentes com isso. A personalidade que tínhamos era parecida, não sabíamos o que fazer com as escolhas adultas. Pobre como meu dono era ele não poderia ser igual a todos os mocinhos da cidade de Lima, ele não conseguiria ir a uma faculdade. Pelo menos ele poderia sair da fazenda agora que tinha vinte e um anos.

Eu bati minhas patas contra o chão duas vezes, a conversa ficaria mais profunda e eu sabia o porque. O pensamento de deixar a fazenda já tinha sido dito para mim há um bom tempo, mas agora a coisa era real e eu estava assustado da mesma forma que ele. O filho mais velho entendeu o antigo sinal e abriu a porteira para permitir que eu saísse.

O ar da noite batia sobre meu pelo e nos dois caminhávamos lado a lado como se fossemos da mesma especie, ele não estava me conduzindo para lugar nenhum e apenas demos uma volta no estabulo até que chegamos a uma colina. A velha colina onde o homem que me ganhou no poker foi enterrado.

Gabriel olhou para a lapide com uma expressão solene. Por muito tempo eu desejei saber ler as letras que eles inventaram, eu realmente queria saber o que escreveram para um homem chamado de bondoso por metade da cidade. Ninguém nunca leu os dizeres escritos em pedra na minha frente, eles apenas ficavam ali olhando as letras com uma cara melancólica ou com um semblante de alguém marcado para morrer.

Meu dono parecia ser a segunda opilação. Ele ajoelhou-se e passou os dedos pelas letras gravadas na pedra enquanto as lagrimas corriam livremente por seu rosto. Eu simplesmente observei tudo com o respeito que deveria ser mostrado.

Meu dono realmente parecia arrasado.

–Oh papai- ele começou a falar em uma voz muda, eu tenho certeza de que se eu fosse um humano não ouviria nada do que ele estava dizendo. Não eram as intenções dele fazer seus pensamentos públicos de qualquer maneira- O que devo fazer? Eles são apenas crianças e eu mal sou um adulto...

Ele ficou em silencio e deixou seus olhos se fecharem para receber a resposta dentro de seu coração. Foi apenas nesse momento que eu percebi o que ele estava querendo dizer, o menino Gabriel não estava preocupado com seu futuro, com ser adulto ou com não poderia ir para a faculdade e ser um trabalhador como a maioria das pessoas. Ele estava em um dilema porque não queria passar o resto de sua vida vendo seus irmãos serem espancados por sua mãe- se é que ele a chamava assim- ele estava com medo de sair e deixar os gêmeos em mãos erradas.

Olhei para o céu enquanto ele estava esperando por uma resposta que talvez sempre esteve junto a si. As vezes os seres humanos me impressionam. De fato nenhum animal poderia dizer que eles eram diferentes do menino Deus, pois, como ele mesmo disse: a única diferença entre os homens e ele é o pecado. Para mim os três meninos criados nessa fazenda não tinham pecado algum, eles certamente fariam mais do que o próprio messias se continuarem a ter fé.

–Sabe Dookins- ele provavelmente não teve nenhuma resposta, pois quando voltou a falar tinha a cara muito amassada de quem não conseguia dormir há meses- Clairie nem ao menos fala com ele...- Gabriel fez uma pausa abrupta aqui, sua voz era uma mistura entre a dor e a raiva e eu não precisava nem de voz. Eu sabia de quem ele estava falando: a mãe dele não falava com seu filho do meio- eu sei que os médicos disseram que ele vai ficar retardado para o resto da vida e que ele pode morrer engasgado com um pedaço de pão, mas isso não justifica o silencio dela. Jimmy também é seu filho.

Bati minha ferradura no chão seis vezes com raiva. Se tinha uma coisa estranha na humanidade era essas pessoas que eram conhecidas como médicos; ao invés de ajudar a fazer com que os outros tenham uma melhor qualidade de vida eles assustavam as pessoas que tinham parentes ou eram diferentes da maioria. Nos animais não somos muito subjetivos, seguimos um instinto comum a todos e vivemos em uma igualdade quase irritante mas pelo menos sabemos respeitar as raras diferenças que existem entre nos. Se tivéssemos uma singularidade como a dos Homo sapiens certamente seriamos pacíficos para com os diferentes tipos de diferenças e não ficaríamos querendo que todos sejam como a grama em um campo verde.

O jovem me acariciou. Era como se ele soubesse exatamente o que estava pensando.

Silencio voltou mais uma vez e nos dois ficamos ali debaixo de um cobertor de estralas prateadas cada qual pensando no que poderia fazer para resolver essa situação. Claro que eu nunca poderia chegar para o garoto e dizer coisas que um pai deveria dizer a ele, nem ao menos dizer que não vale a pena continuar vivendo ali. Eu ainda sou um cavalo acima de tudo e os cavalos não deixam seus sentimentos entrarem no meio dos dilemas alheios, para nos as pessoas devem descobrir suas respostas sozinhas.

Não era porque eu estava muito a vontade para expressar meus sentimentos de ódio pela mulher dona da fazenda ou porque tinha um desejo avassalador de proteger os dois meninos de auras quentes que eu iria deixar-me meter em algo que não era meu.

Não fiz mais nenhum barulho de reconhecimento ou de entendimento, não relinchei e nem mesmo bati minhas patas no chão. Simplesmente esperei por meu mestre para voltar ao estabulo.

E foi o que fizemos.


Duas luas haviam se passado desde o nosso ultimo encontro. Ao que parece Gabriel ainda não teve nenhuma resposta para o que estava enfrentando e os meninos estavam cada vez mais presos dentro de casa. Os rumores que as ovelhas diziam eram verdadeiros e eu sabia que Jimmy estaria muito longe de ser visto por qualquer outro animal agora que ele tinha quebrado algo precioso dentro da casa.

Ninguém poderia saber o que ele tinha quebrado: as galinhas insistiam em dizer que era um espelho, os patos e os bois pensavam que era um aparelho eletrônico e algumas éguas diziam que deveria ser algo muito menos interessante do que tudo isso e que a mulher o tinha preso dentro de casa simplesmente por ser ruim. Eu era muito inclinado a acreditar nas fêmeas de minha especie.

Foi nessa noite que Gabriel apareceu para mim pela segunda vez.

Ele parecia um barril de esterco. Literalmente. Meu amo tinha chegado ao estabulo tao rápido, com tanta presa para conversar com alguém que nunca poderia entender, que ele tropeçou em uma parte não muito feliz do feno e acabou muito, mais muito sujo de excrementos equinos.

A única coisa que ele fez em relação a isso foi esfregar o conteúdo de seus olhos. Quando as outras éguas o viram vindo na minha direção assim, imundo como ele estava, elas sussurraram para mim que ele definitivamente iria precisar de uma cavalgada. Eu também.

Foi somente depois de um tempo- quando ele finalmente se aproximou de mim e pós a mão em meu pelo negro lustroso- que pude perceber que ele tinha lagrimas nos olhos. Bem, eu realmente poderia lambe-las, mas eu não o faria com o estado imundo em que ele estava. Pela primeira vez na vida eu não me inclinei para ele subir em minhas costas. Bati minha ferradura no chão indicando que queria sair e acompanha-lo e ele abriu a porteira para que eu o guiasse.

Quando chegamos ao lago do outro lado da fazenda eu praticamente o empurrei para dentro das águas e entrei logo em seguida para dar a impressão de solidariedade. Me sentia sujo apenas de estar na presença dele. Graças a Deus Gabriel tomou meus gestos como confortadores.

–Eu nunca pensei que um dia eu fosse dizer que minha própria mãe é uma bruxa.

Escolhas delicadas de palavras para iniciar a conversa. Eu tinha de dizer isso a ele. Para um garoto de vinte anos Gabriel definitivamente sabia se expressar de uma maneira a não demonstrar seus sentimentos. Por mais que ele tenha sido usado a ver calado sua própria mãe espancando- oh sim, todos nos sabíamos o que ela era capaz de fazer- seus próprios irmãos ele jamais usaria um palavrão ou qualquer outra coisa depreciativa. Era de admirar e todos os animais que estavam por aqui há mais de dez anos sabíamos que ele tinha ficado assim depois da morte de seu pai, o antigo Gabriel era, quando era filho único de um casal alegre e tranquilo, um menino mimado e chorão que usava o coração em seu rosto. Agora ele estava cada mais distante de ser uma criancinha que chora por tudo.

Relinchei em afirmação. Era completamente plausível o que ele estava para dizer, ninguém pensaria em ter uma pessoa norteadora de sua vida destroçada de sua imagem. No caso dele a mulher tinha literalmente se transformado da água para o barril de bosta de pombo.

Ele deu um grande suspiro e esfregou-se para livrar tudo o que tinha ficado grudado nele mas mantinha os olhos castanhos em mim. Era impossível desviar deles, sua justiça bondade afloraram da pior forma possível, o que tinha feito ele evoluir como pessoa aos custos de uma vida potencialmente feliz.

–Nao foi Jimmy quem quebrou a vitrola velha dela- há então tinha sido isso, os patos estavam certos- foi Cas.

Eu poderia prever o que ele diria a seguir. Sim eu estava coreto, a mulher tinha culpado o único filho que não sabia falar por pura vontade de aplicar uma punição nele. Os dois meninos eram muito parecidos, mas apenas um idiota poderia confundi-los. Sua postura, jeito de andar e de se portar eram completamente diferentes. Cas era o menino cego, que vivia tropeçando nos tapetes que a vadia insistia em manter mesmo sabendo que não era bom ter em casa de gente cega. Ela tinha batido no outro filho simplesmente porque ela os confundiu, mesmo depois que o próprio anjo da quinta feira disse que tinha sido ele ela continuou dizendo coisas do tipo “Você faz, ele paga”. Que especie de mãe faz uma coisa dessas?

–Que especie de mãe faz uma coisa dessas em Dookins? Ele tinha lido os meus pensamentos mais uma vez- Eu sei que ela sempre foi uma pessoa autoritária, mas ela nunca tinha sido assim comigo...

A voz dele tinha descido uma oitava no final. Então era isso, pensei. Ele se sentia culpado por ter sido bem criado enquanto seus irmãos que eram apenas onze anos mais novos sofriam de maus tratos e negligencia. Minha suspeita era d eque alem da culpa ele sentia uma raiva por isso.

Anjos não gostam de ver os outros sofrerem, principalmente os anjos como ele que se dedicavam a amar o próximo.

–As vezes eu penso que a vida deles seria melhor se eles não tivessem nascido.

Nesse momento eu dei um coice nele. Por mais compreensível que era sua linha de pensamento- ora, a mulher tinha pirado depois de perder o marido e tinha recebido uma recompensa de duas crianças defeituosas logo depois- nunca achei que as coisas se resolveriam por esse caminho, não era ignorando o fato que ele iria ser vencido. Essas crianças certamente teriam um futuro muito melhor em uma outra família que os amassem e respeitassem independentemente de como eles vieram ao mundo, mas, infelizmente, não tinha sido isso o que aconteceu e não é justo matar as pessoas dentro de você. Se um cavalo acha que não vai ganhar a corrida ele não ganha não importa o quão rápido ele seja.

Meu dono foi arremessado para o outro lado do lago e depois, quando ele voltou para mim nadando ele parecia ser a pessoa mais envergonhada do mundo.

Nenhum de nos voltamos a nos ver por mais seis luas.


–Eu amo meus irmãos.

Foi assim que tudo começou. Era nosso primeiro encontro para falar sobre os problemas da vida durante o dia e estávamos indo para a cidade comprar algumas coisas importantes para a fazenda. Eu estava selado como um cavalo de troia com uma cela muito bonita e adornada e Gabriel usava suas roupas mais chiques. Certamente ele iria encontrar Natasha no caminho.

Muitas coisas poderiam ser desenvolvidas depois dessa declaração, mais ele permaneceu calado. Algo me dizia que ele tinha dito isso em voz alta pela primeira vez- sim, todos nos sabíamos que a mulher não permitia ninguém falar de amor na casa- e que tinha sido editada de novo e de novo na cabecinha dele durante toda a noite.

Essa tinha sido a noite depois da primeira fuga de Jimmy, a primeira grade fuga.

O menino aparentemente era mais esperto do que os outros davam-lhe credito. Ele realmente queria fugir das garras da mulher.

Infelizmente ele tinha se machucado no processo. Correr para alem das cercas da fazenda não era uma escolha muito alegre. O pequeno menino de aura dourada tinha sido encontrado por um vizinho mais morto do que vivo. O outro menino de cabelos pretos parecia completamente perdido em preocupação, ele tinha sido o primeiro a desenvolver laços afetivos com Jim afinal, eles eram gêmeos que dividiam parte da alma.

Esperei por quase um dia para que Gabriel reunisse seus pensamentos mas ele não o fez.

Voltei para meu estabulo cheirando aos sacos de açúcar que carreguei.


Na outra noite eu ouvi passos mais não me levantei de minha posição curvada- sim, nos não nos deitamos pois se abaixarmos nunca mais subiremos- os passos eram muito diferentes dos de meu mestre, eram descoordenados e vinham acompanhados de um calor que não é calor, mas algo que preenche o coração. Era Jimmy.

Eu era mais do que feliz em saber que ele estava vivo. Tinha arranhões por todo o seu corpo e uma mancha feia em seu rosto que o deixava com um olhar um pouco mais assustador do que deveria. Por que eu escrevi um pouco? Deixe-me dizer, ver um menino humano com uma aura enorme como a dele por si só é algo assustador.

Não demorou muito para que ele se aninhasse no feno ao lado de meu corpo.

Ele parecia miserável.

Em suas mãos havia um caderno com folhas em branco, essa era a primeira vez que eu o vi com um desses e não poderia jamais imaginar qual uso ele faria para ele. O garoto não conseguia nem ao menos andar direito, não falava, não comia comidas solidas mesmo tendo dentes e outras coisas mais. O silencio que se fez foi grande, eu pude ver que outros cavalos estavam finalmente quebrando sua indiferença e olhando para nos, eles estavam tao curiosos sobre as ações de Jimmy quanto eu era, parecia que ninguém queria quebrar a magica, como se se piscasse os olhos ou balançasse a cauda ele iria sumir de nossa frente. Sendo assim todos no estabulo ficamos calados.

Naquela noite eu não tinha sido o único que tinha visto ele pegar em sua outra mão um lápis velho mais apontado, o cheiro de carbono misturado com o que um dia foi uma arvore encheu o ar e eu olhei diretamente para os longos dedos da criança. Nem em um milhão de anos eu poderia acreditar que o que meus olhos estavam vendo era verdade. Diante de mim, e de um grupo de testemunhas equinas, e de mais doze de minha especie o menino riscava o papel branco com uma sutileza impressionante como se fosse um daqueles escribas do antigo Egito.

Se eu fosse um pouco mais critico no dia poderia ter pensado que ele realmente era um anjo em nova carne. Os anjos geralmente vem com dons para seu reconhecimento posterior. Há anjos para as artes, a musica e muitas outras coisas. Para mim não havia maior prova de que ele era uma pessoa muito alem do que sua carne revelava do que naquele momento.

De fato, o menino que o medico alegava ser capaz de morrer comendo o alimento sagrado estava diante de meus olhos amendoados desenhando um quadro de minha própria imagem. Se eu não soubesse quem eu era certamente poderia pensar que o cavalo ali era um alfa, um daqueles que eu queria ser. Fiquei feliz em saber que eu era realmente tao bonito e atlético assim.

O que mais me impressionou? Ele arrancou o desenho do caderno assim que terminou de retoca-lo e estendeu a mãozinha no ar para que o sopro do destino o levasse a qualquer lugar.

Ele voltou para a casa grande logo depois disso e mais uma vez eu não consegui dormir.

Foi somente dois dias depois que eu percebi o que aquele desenho poderia fazer para uma pessoa.


A figura depressiva e arrasada de meu mestre estava sentada em cima de uma pedreira enquanto observava um dos empregados arar a terra. Ele poderia fazer algo melhor do que qualquer um dos seus homens e eu sabia disso porque as plantas se alimentam do tipo de amor e carinho que meu dono deixa passar por seus poros. Ele é capaz de plantar em um tijolo se assim desejar, mas eu duvido que ele saiba disso.

Os sacos negros embaixo dos olhos mostravam que alem de infeliz ele não dormia há muito tempo.

Faltava pouco menos de uma semana para ele completar vinte e um anos. Eu estava apreensivo para saber que tipo de mudança iria acontecer nesse meio termo e queria servir ao máximo a ele mesmo sem poder falar. Naquele momento eu pude ouvir um carro estacionar ao longe mas não dei nenhuma atenção especial. O semblante de meu mestre sugeria que ele estava para falar algo importante e eu queria ser todo ouvidos.

Ele suspirou profundamente como se estivesse preso debaixo d'água por muito tempo e soltou as palavras de uma forma leve:

–Eu não sei como cuidar deles.

Aquilo era um eufemismo. Na verdade ninguém sabia, nem a mãe deles nem qualquer outra pessoa daquela fazenda. A única razão para o menino Castiel ter aprendido a escrita cheia de pontinhos no papel foi por que uma das copeiras da casa grande tinha um irmão que morava em uma daquelas cidades ricas desse pais que é cego. Se não fosse por isso ninguém poderia imaginar como o menino poderia aprender as coisas antigas que ele tanto amava.

Era muito claro naquele momento que isso era um obstaculo muito grande para meu amo. Ele tinha os olhos negros por causa dessa realização- que deveria ter sido feita muito antes se querem saber- e se por acaso ele estivesse cogitando fugir com seus irmãos para qualquer outro lugar menos essa cidade ele deveria pelo menos ter uma minima ideia de como cuidar deles.

Mais uma vez eu cheguei a acreditar que ele estava lendo meus pensamentos:

–Foi Jenny, a empregada que auxilia a cozinheira, que ensinou para Cas a ler o Braille- ele dizia isso com um ar de auto-piedade, essa era a milésima vez que ele usava esse tom- eu nem sabia o que era isso. Eu vi em um filme que os cegos podem aprender, mas eu não sei como ensinar, não sei como chegar a alguém que saiba, não tenho dinheiro e nem um emprego e não posso deixa-los sozinhos. Ele estava quase histérico quando ia falando cada sentença. E eu sabia que o pior ainda estava por vir.

–E Jimmy? Eu não posso deixar uma criança de onze anos cuidar de outra. Eu não sei o que ele precisa, não sou paciente- eu poderia discordar veementemente disso- e... ele vai ficar assim a vida inteira, ele exige muito cuidado, não vou, não poderei deixa-lo sozinho, então como vou trabalhar? E... eu continuo com essa sensação de que se alguém descobrir que tenho dois menores sob minha asa vão querer tira-los de mim. Ele disse a ultima parte em uma voz sussurrada que poderia ser imperceptível para a audição humana.

Eu o olhei com pena enquanto meu mestre colocava suas mãos em sua cabeça e chorava silenciosamente. Agora eu sabia suas intenções, ele queria dar uma melhor qualidade de vida para os dois meninos e não tinha a minima ideia de como fazer isso. Ele era um pobre lagarto no meio da neve e não tinha apoio nenhum de ninguém alem de um cavalo que apenas poderia relinchar e bater suas patas no chão. Aquilo era realmente repugnante.

Antes que eu chegasse a fazer alguma das coisas citadas acima o homem que tinha saído do carro que não estava prestando muita atenção chegou perto de nos. Ele era um xerife e imediatamente sacou a estrelinha brilhante de sua carteira. Eu nunca saberei o que aquela coisa tem de tao especial para fazer as pessoas surtarem. Humanos são muito estranhos.

O homem estava falando sobre alguma coisa muito estranha. O que pude me lembrar era que alguém estava roubando tinta pela cidade e eles queriam ver quem era.

Meu mestre tinha deixado de ficar vigilante com o policial. Ao que parece latas de tinta também tinham sido roubadas na fazenda e meu mestre foi acompanhar o homem para o galpão onde o homem que me comprou guardava seus materiais. Eu sabia que tinha muitas e muitas latas de tinta ali e fiquei impressionado em não saber que elas haviam sido roubadas, o estabulo não era muito longe do celeiro e se havia especie mais fofoqueira de todos as galinhas seriam premiadas. Pelo silencio das aves eu poderia dizer que nem elas sabiam.

Aquilo era estranho. As galinhas nunca deixavam de reparar nas coisas...

ignorando o fato de que o ajudante do xerife estava comentando como era estranho ter um cavalo acompanhando-os como se o animal estivesse sabendo de algo que eles não sabem. Bom eu realmente sei de muita coisa que eles não sabem, por exemplo o doido que roubou a bandeira do apis da delegacia de policia era mesmo um dos trabalhadores dessa fazenda... não que eu seria disposto a falar isso de qualquer forma. Eu vi a cara de espanto dos dois adultos quando viram que o material inteiro do galpão dessa fazenda tinha sido roubado. Eles perguntaram a Gabriel por que ele não falou com eles antes, meu mestre apenas balançou seus ombros.

O dia acabou com os dois policiais perguntando para todo o mundo da fazenda se alguém tinha visto um homem de cabelos loiros e tamanho tal. Parecia que eles nem sequer sabiam se era mesmo assim que o cara olhava. A única coisa boa disso tudo foi que meu mestre tirou a cabeça de seus pensamentos tortuosos, ele parecia estar muito interessado em quem tinha roubado as coisas de seu pai.

Para meu desgosto ele acabou me montando e correndo para as outras fazendas ver o que ele poderia achar. Eu odiei cada momento de tudo, era uma coisa estranha para mim ser colocado em uma situação em que eu estaria perambulando pela cidade grande, eu nunca gostei dali e nunca vou gostar... Felizmente Gabriel conseguiu descobrir que uma pessoa que passava pela rua tinha visto um homem correr com uma ou duas latas de tinta. Eu acabei sendo obrigado a seguir a direção desse homem.

Entramos em uma velha fazenda de um homem rico que quase nunca saia de casa. Para mim aquele era o ultimo lugar que eu queria estar. Aquilo trazia lembranças que nem mesmo eu pensei que tinha, lembranças do tempo em que eu não morava no estabulo dos Novaks. Era assustador.

Entramos no terreno desconhecido e percebemos que a casa era o ultimo lugar que o tal cara da tinta deveria estar. A casa estava lastimavel e ninguém morava ali há anos. Meu amo não quis entrar com medo de aranhas, mal sabia ele que enquanto ele arrodeava a casa para ver se tinha algum lugar menos destruído eu conversava com uma. A simpática aranha me disse que o homem morava em um galpão atras de um rio há muito, mas muito tempo. Na minha cabeça toda uma historia de tragedia familiar e de vingança com uma bela dama morrendo apareceu, era a única coisa que poderia explicar um homem rico morar em um galpão, sem contar no estado da casa.

O menino loiro me arrastou para o lugar.

–Tem alguém ai. A voz dele tremia como se estivesse em um daqueles filmes de horror. Eu me posicionei próximo a ele só no caso.

Um barulho muito alto pode ser ouvido. Gabriel estava quase saindo do lugar mal assombrando quando o tal homem apareceu. Ele era quase tao lastimável quanto sua própria casa.

Cabelos sujos que poderiam ser loiros, olhos castanhos escuros, pele completamente suja de tinta multicolorida e sacos negros debaixo dos olhos. Ele parecia ser um cara muito simpático apesar de tudo.

Meu mestre deu vários passos para trás e o homem também. Aquilo era ridículo. Um tinha medo do outro.

–Desculpe, eu não quis... Gabriel era quase a imitação perfeita de uma ovelha assustada, exceto pelo fato de que uma ovelha assustada não consegue nem pensar.

Sem mais nem menos o homem começou a chorar.

A minha vida estava cada vez mais estranha. Eu poderia pensar que logo em seguida uma fada iria aparecer e me transformar em um humano.

Gabriel era mais confuso do que eu. O menino estava tao sem ação que eu tive que fisicamente envolver o homem loiro em meu calor, isso poderia ser um abraço se nossos corpos fossem pelo menos compatíveis. Ele mexia no meu pelo delicadamente e a única coisa que eu consegui pensar era se a tinta seria muito difícil de largar. Não me levem a mal, eu não estava muito a fim de ser afagado por um cara estranho que roubava tintas.

–Você está bem? Finalmente alguém criou coragem para dizer algo! Me afastei imediatamente da figura pálida.

Foi pior.

O homem entrou em um monologo sem fim explicando quem era ele (que por sinal era um pintor famoso que eu mesmo poderia me lembrar de ter ouvido falar em algum ponto de minha vida...) e como ele tinha sido covarde com sua vida, tinha perdido a confiança de sua mulher por causa de jogo- o que tem esses jogos humanos? Eles sempre fazer as pessoas perderem algo, exceto o poker que foi bom para mim- que nunca mais tinha conseguido desenhar e que era um idiota esperando para ser preso porque nada disso fazia sentido.

Pelo menos ele tinha dito algo certo. Ele terminou seu discursos longo com o seguinte:

–A vida quer coragem! Coragem. Você tem que lutar por aqueles que ama e viver sua vida sem jogos. Coragem garoto.

Ele nem ao menos parecia se lembrar de que estávamos ali. Ele virou as costas para nos e voltou para a escuridão de onde tinha saído.

Se alguém me perguntar o homem tinha perdido a sua mente. Bem longe.

Eu pensei que poderíamos voltar para a fazenda depois dessa loucura. Infelizmente eu estava muito errado. O meu amo voltou-se para onde o cara loiro tinha sumido e resolveu brincar de espião.

Segui-o infeliz.

–EU não CONSIGO FAZER ISSO!

O grito doeu fisicamente em mim. Meu mestre não encolheu, agora que ele sabia que o cara era inofensivo ele não demonstraria medo nenhum, e nos fomos correndo para o final do galpao onde podíamos ver varias e varias pinturas na parede feitas com a tinta roubada. Eu pude notar que para um pintor famoso ele apenas desenhava bolas, e malfeitas.

Se você quer um quadro pintado aqui posso dizer que tinha geoides azuis, verdes, vermelhos e qualquer outra tentativa de desenhar um circulo em qualquer outra tinta a sua escolha. Era estranho como parecia bonito e confuso ao mesmo tempo. Me fez lembrar o estado mental do próprio Gabriel.

O homem começou a chutar uma lata de tinta e derramou o liquido laranja berrante no chão. Ele estava a beira de lagrimas e se eu pudesse falar certamente perguntaria se ele já tinha ido a sua sessão de ECT* hoje.

Ele começou a chorar copiosamente e o menino que chamo de mestre o abraçou.

Eles ficaram assim por minutos a fio.

Quando o idiota loiro parou de chorar meu mestre se afastou dele e perguntou a pergunta que não quer calar:

–Você não consegue desenhar círculos? O tom dele era solene muito estranho para a própria sentença.

O pintor enterrou a cabeça nas mãos. Eu pude ouvir seu sussurro. Sim, ele não conseguia desenhar círculos.

Mais uma vez o silencio seguiu. Demorou muito para Gabriel fazer uma outra pergunta:

–O que os círculos tem de mais?

O homem abriu a boca pegando ar e pude antecipar um outro monologo gigante vindo. Pelo menos esse era um pouco interessante. Nunca iria entender realmente bem o que ele disse mais ao que parece os círculos são os desenhos que representam o eu. Quando alguém desenha um ela está com seu EGO- o que é isso? Uma outra palavra humana usada por um especialista- integrado e se diferencia do mundo, ou seja, tem consciência de que ele é um ser humano e que outros humanos existem fora dele. Uma coisa muito estranha de se saber mas mesmo assim era melhor do que ouvir ele falar sobre sua épica tragedia familiar, eu nunca quis deixar meu amo ouvir coisas desse tipo. Ele ainda era muito jovem.

Falando em meu amo. Ele ficou pensativo o tempo inteiro e depois sorriu como um louco. Cheguei a pensar que a loucura é contagiosa.

Ele olhou para mim e começou a murmurar em uma voz pequena;

–Consciente de si e do mundo... É isso. Jimmy sabe que nos existimos!

Nunca pensei que poderia ter ímpetos assassinos, mas ouvir algo tao ridiculamente obvio quase me fez matar o menino. Claro que Jimmy sabia que os outros existem. Ele é diariamente espancado por alguém que certamente não é ele. E pelo que eu vi dois dias atras eu poderia dizer que ele pode até mesmo ser consciente da física quântica e átomos se exitando. Ora, para alguém que tinha dois anos de idade ele desenha extraordinariamente bem.

O homem loiro, cujo nome era Frederick Harris, inclinou a cabeça para o lado direito em um silencioso pedido. Ele queria saber quem diabos era Jimmy e eu achei que ele realmente merecia saber pois ele tinha exposto toda a sua tragedia conjugal para nos. Gabriel por outro lado não estava muito afim de falar sobre seu irmãozinho, ele arrastou os pês no chão com a cabeça baixo e começou a dar o discurso rápido tipo: “Ele é meu irmão do meio, ele tem retardo mental, eu o vi desenhando círculos amarelos em uma agenda telefônica...” não é preciso comentar que ele começou a chorar e a historia que era para ser curta e sem emoção acabou por se transformar em um dilema adolescente com lotes de drama e de auto-piedade.

Harris ouviu tudo com muita atenção e mais uma vez abraçou meu amo.

–Eu acho que é melhor você sair de casa.

–Com que dinheiro?

Meu mestre estava realmente em um humor deplorável. Ele tinha finalmente encontrado uma pessoa que estava dizendo a ele as coisas certas- que por sinal era exatamente as coisas que eu queria dizer a ele se tivesse voz- mas estava fazendo de tudo uma tempestade em um milharal. Eu sei que para se viver no mundo humano o dinheiro é um imperativo, mas eu tinha total fé no garoto de olhos ambar e sabia que se ele desejasse o mundo poderia estar em seus pês. Hum... talvez isso seja um exagero, mas estou definitivamente empolgado aqui. Eu tinha encontrado um humano legal que diz exatamente o que estou pensando.

Agora foi a vez do homem de ficar ali em um silencio mortal deplorável. Os dois tinham que tomar algo para a autoestima. Aquilo tudo estava me enjoando.

Ele disse em uma voz murcha para meu mestre sem fazer contato com os olhos vivos dele:

–Eu seria muitíssimo disposto em te ajudar, não gosto de ver esse tipo de situação- nesse ponto eu tinha certeza de que ele tinha sido abusado por seus pais. Eu sou um bom ouvinte e sempre sei quando as mocinhas da roça não são mais virgens e perdem sua flor com o homem que deveria protege-las... no entanto ele não acrescentou nada a esse assunto- mas eu não tenho uma única pintura para quitar minhas dividas, quanto mais para pagar um voo para São Francisco.

Eu tinha certeza que se nesse momento nada tivesse acontecido meu mestre perguntaria o por que de São Francisco, por que o cara tinha pensado nessa cidade que era considerada a mais louca do pais... infelizmente para a curiosidade do jovem uma coisa milagrosa aconteceu nesse exato instante. O papel que a dois dias tinha sido desenhado por Jjimmy Novak, o mesmo Jimmy que não sabia andar ou falar direito e que era espancado por sua própria mãe tinha voado para aquele galpão e, juro por Deus, caído exatamente não mãos do pintor falido.

O homem ficou sem ação, como se estivesse impactado pela beleza do desenho. Ele não tinha palavras assim como eu. Gabriel apenas ficou em silencio esperando para ver o que tinha feito o homem mudar completamente de semblante.

Ele teve que esperar até que Harris estivesse fazendo uma dança Kabuki para ver por si mesmo.

–É ISSO, É ISSO HAHHAHAHAH!

O jovem parecia não ver muito no desenho. Ele poderia dizer que era muito bonito e que tinha sido feito com uma precisão dos infernos mas ele não poderia nem ao menos imaginar quanto um desenho daqueles valia.

Ele pegou meu mestre pela mão e os dois começaram a dançar uma especie de valsa da vitoria. O pintor começou então a explicar ao jovem seus planos.

–Isso é a minha salvação, para mim e para você! Esse quadro é tudo o que eu almejei desenhar esse tempo todo. Olhe para ele ele é rico de vida. VIDA! É ISSO!

Ele se ajoelhou no chão, começou a rezar em uma voz agradecida e depois pegou o pincel que estava em suas mãos e desenhou um circulo. Um verdadeiro circulo. Eu me lembro que ele gritou algo em alemão depois disso e beijou meu mestre na bochecha.

Eu poderia dizer que Gabriel ainda não tinha entendido nada. Eu também não.

Alguém teve a coragem de perguntar:

–O que tem de mais esse desenho no pedaço de papel? Alem de trazer de volta sua confiança eu digo...?

O homem loiro destruído diante de mim há poucos minutos tinha mudado completamente, seus olhos brilhavam com um tipo de fogo que nem os espíritos mais sombrios poderiam tirar. Ele estava definitivamente revigorado. Tinha se transformado em um novo homem e tudo por causa de um desenho meu.

Ele olhou para os olhos de âmbar liquido e disse com um sorriso que poderia fazer a lua ficar com vergonha de seu brilho:

–Esse desenho no pedaço de papel como você chama- ele estava em um humor de palavras difíceis- pode ser o seguimento de minha carreira. Talvez esse pedaço de papel possa valer sozinho um bom dinheiro pela sua qualidade gráfica, mas se eu acrescentar aqui- ele apontou para um canto lateral da folha- a minha assinatura ele certamente vai valer no minimo cinco mil dólares.

Os olhos de meu amo foram grandes como pires;

–Cinco mil dólares? Naquela época essa quantia era muito, muito mesmo.

Por alguma razão estranha o homem loiro pegou o pincel de tinta que tinha acabado de usar e colocou uma mancha laranja no nariz de Gabriel. Ele ainda tinha os olhos em chamas e o sorriso de lua.

–Eu acho que isso é o suficiente para fazer uma boa mudança para a Califórnia, não?

Gabriel estava atônito. Ele conseguiu usar a manga de sua camisa para limpara a tinta do nariz e eu poderia ver que ele ainda tinha algumas perguntas na ponta da língua:

–Mas e você? O que vai ser de você?

Harris simplesmente olhou para meu amo com um olhar de ferro e disse em uma voz de quem tinha bastante fé;

–Ver esse desenho me fez voltar a desenhar- ele apontou para o circulo- agora eu já estou pronto para voltar a fazer o que sempre fiz.

Eu tinha minhas dividas, era uma diferença muito grande um circulo na parede de um quadro de mulher nua ou coisa assim. De alguma certa forma a confiança do homem me fez parecer impossível que ele não conseguiria. Era como se o tempo de martírio dele tivesse acabado.

Meu amo sorriu pela primeira vez em dias.

Eu sabia que agora as coisas estariam caminhando para um desfecho perfeito e livre d espancamentos e tudo o que eu queria era contar essa historia aos quatro ventos.

Meu amo ainda não estava satisfeito:

–Então, por que São Francisco?


Era escuro como qualquer outra noite. E frio como qualquer noite de inverno.

Eu estava silencioso como qualquer outro cavalo de minha raça e tinha os dentes brilhantes em um sorriso como se não houvesse uma data melhor para o que estava prestes a fazer.

Aquele dia deveria ser relembrado por muito tempo e é isso o que estou fazendo contando essa pequena historia para vocês.

Era meia-noite de um dia muito especial.

Aquele era o dia que meu amo completaria vinte e um anos.

Eu estava prestes a ir comemorar com ele.

Ouvi sons de passos e dessa vez não me assustei, o ladrão de tintas não era e nunca tinha sido uma ameaça. Ele era, por falta de palavras melhores, o melhor amigo que os meninos daquela fazenda já tiveram.

O homem loiro estava sendo acompanhado por meu mestre e carregava um de seus irmãos nos braços como se a criança fosse um pequeno tesouro. Eu não tinha nenhuma duvida de que se um dia ele soubesse que era justamente aquele menino que tinha salvado sua vida ele poderia realmente ser um tesouro para o homem. Jimmy dormia silenciosamente nos braços do pintor e desconhecia o que estávamos fazendo, mas eu tinha certeza de que ele já tinha visto aquilo em seus sonhos, afinal ele era realmente um anjo.

O outro menino estava acordado com os olhos leitosos bem abertos mas era carregado também pelo seu irmão. Castiel tinha uma confiança solene no que o mais velho do cla estaria a fazer e não perguntou uma única vez se era seguro. Ele não precisava de segurança maior do que a que já tinha. Sua auro brilhava nos meus olhos e eu tinha uma certa certeza de que era ele que iria ser um grande historiador como ele sempre quis ser. Agora eles poderiam ser o que desejassem, agora eles estavam indo para longe, bem longe da mulher que os impedia decrescer.

Meu amo afagava os cabelos negros do menino e tentava faze-lo voltar a dormir. Era impossível. Ele queria estar acordado para presenciar a mudança de vida, ele queria estar acordado para entrar no pássaro grande e senti-lo deixando aquela terra e ter certeza de que as coisas estariam melhores agora. De uma certa forma eu sabia que o menino que gostava de ler ficaria acordado o tempo todo até pisar os pês em terreno desconhecido.

Meu mestre me tirou do estabulo e me selou com a cela vermelha que ele usava para impressionar Natasha, eu sabia que ele perderia a menina mais bonita que ele já tinha visto, mas eu poderia dizer que um dia ele ainda encontraria o verdadeiro amor.

Eu relinchei em reconhecimento e em seguida fiz o que era mais próximo de um abraço. Era claro que nunca mais nos veriamos.

Naquela noite as lagrimas não só sairam dos olhos da criança de onze anos.

Depois que ele colocou os dois gêmeos de auras quentes em cima de mim meu mestre abraçou seu amigo e o agradeceu por tudo. Eu não posso me esquecer de dizer que Harris realmente tinha voltado a desenhar e em pouco tempo tinha quitado todos a suas dividas e construído uma casa mais bonita no lugar dos escombros velhos. Ele estava de volta ao mercado.

Houve uma rápida troca de palavras entre aqueles dois;

–Não se esqueça: Pine Street, lá você vai encontrar uma antiga galeria de arte e uma mulher loira esperando por vocês. Mara é uma antiga amiga minha que é assistente social evai ajudar em tudo o que for necessário. Você tem dinheiro suficiente para comprar uma mansão e viver por duas semanas sem se preocupar, mas eu recomendo que arranje um apartamento modesto e se foque em ajudar seus irmãos. Vá a todos os especialistas que puder.

–Eu irei! Isso era uma promessa, eu poderia sentir seu cheiro.

Naquela noite Gabriel foi o ultimo a subir em minhas costas. Todos os seus movimentos eram determinados e não demorou muito para que ele pegasse as rédeas e me mandasse correr par ao aeroporto. O sol resplandescente tinha beijado o horizonte quando os três entraram e eu não tinha como saber o que ia acontecer a seguir. Eu apenas sabia que aquilo er ao começo de uma grande jornada.

Relinchei feliz ao ouvir o som do avão partir para seu destino.

Aqueles três mereciam lugar melhor do que uma fazenda desconhecida no interior de lugar nenhum. Eles eram cheios de vida eu não precisava ser humano para saber que o destino tinha outros planos para cada um deles.

Para o menino de olhos âmbar eu desejava toda a sorte do mundo e que ele continuasse com essa paixão que tinha. Sua força moveria montanhas e ele conseguiria aliados para ajuda-lo quando o peso em seus ombros ficasse muito difícil de segurar sozinho. Ele não precisava s epreocupar, apenas precisava ter fé.

Para o menino cego eu desejava que ele conhecesse as historias, nas mais variadas formas e dos mais variados povos. Ele poderia conquistar naçoes com seus pensamentos e seu jeito incrivel de deduzir. Para uma criança de onze anos ele era inteligente acima da media e se desejasse conhecer mais coisas que conhecesse. Ele merecia cada uma das descobertas que a historia humana poderia proporcionar.

Não consegui pensar nada que pudesse desejar para o menino de aura brilhante. Ele já tinha tudo.

Ele iria fazer com que a fé jamais saísse dos olhos do meu mestre.

Porque a vida é assim. O que ela quer de cada um de nos é coragem. E a coragem para Gabriel estava na forma de duas pequenas crianças. Eles iam mante-lo seguro e afastariam todos os seus medos, pois ele não precisava ter mais duvidas. Ele era um ótimo irmão mais velho.

Ele amava cada um de seus irmãos. E tinha coragem para enfrentar a vida.

Ele tinha feito vinte e um anos afinal. Tinha se tornado um adulto. Eles tinham toda uma vida pela frente.

Voltei para a minha fazenda feliz.

Era uma madrugada como qualquer outra. Exceto pelo fato de que o ar exalava coragem.



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Notas finais do capítulo

NOTAS:
ECT- Eletro-choque terapia. Era comum na época.
Sobre os círculos- Vem d evarias teorias psicológicas. Winnicotti, psiquiatria... não gosto de escrever sobre psicologia por causa do sigilo, mas isso pareceu-me perfeito aqui. Sim, é uma passagem muito curta, foi por isso que a coloquei.
Mandy
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