For Amelie - 1a Temporada escrita por MyKanon


Capítulo 4
IV - Recordações da fraqueza


Notas iniciais do capítulo

Trecho em itálico - Recordações da Mel.



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Três meses atrás...

Ainda eram cinco da manhã, mas eu já estava acordada fazia tempo. Dormir tranquilamente pra mim já era impossível. Antes era só raro.

Por isso ouvi o toque baixo do telefone. Minha mãe tinha baixado no mínimo para que não me atormentassem mais, guardando somente pra ela aquela tarefa desagradável. Eu sabia que não era justo, mas eu já não agüentava mais os trotes. A linha nova estava demorando tanto...Ouvi-a se levantando e tirando o fone do gancho, mas não disse nada. Era assim que atendíamos agora. Se a pessoa do outro lado dissesse apenas “Alô”, nos identificávamos, caso fossem as costumeiras ofensas, simplesmente desligávamos.

Ela ficou quieta por uns dez segundos, e inesperadamente começou a sussurrar rápido e baixo para que eu não ouvisse:

_ Seu delinqüente desgraçado, você ainda vai ser preso! Pensa que é irrastreável? Um boletim de ocorrência me dá a sua localização e você vai pagar caro por isso!

Em seguida ouvi o som violento do telefone batendo contra a base. Em seguida eu ouvi os soluços discretos dela.

Não tive coragem de me mexer e ir falar com ela. Agora ela também estava sofrendo por causa do meu erro estúpido.Não sei quanto tempo se passou enquanto eu refletia sobre o dia em que contei pra ela. Como sempre, ela foi compreensiva e disse para que eu não me preocupasse. Afinal, com certeza teria experiências melhores. Eu já tinha certeza que não.

Ela me deu um beijo e saiu para trabalhar.

Esperei até que o som do carro estivesse bem distante para me levantar. Caminhei descalça pelo quarto até chegar à porta. Observei meu rosto no espelho enquanto passava por ele. Como em todas as manhãs, estava encharcado, e os olhos vermelhos. Não bastasse o meu sofrimento, tinha de sofrer pela minha mãe também.

Precipitadamente tomei aquela decisão. Eu sei que devia pensar mais um pouco, não era a melhor saída, pelo contrário, tornaria as coisas ainda piores, mas inicialmente eu só queria que tudo desaparecesse, incluindo o choro reprimido da minha mãe. Abri a porta de cima do armário e derrubei algumas caixinhas de analgésicos e antitérmicos que minha mãe guardava ali.

Vi uma vez no noticiário que muitos suicidas recorriam ao paracetamol, por ser um remédio de fácil aquisição e letal em doses muito altas.

_ Quantos serão necessários? - me perguntava doentiamente enquanto destacava os comprimidos da cartela. – Três... Seis... Nove... Doze.

Minha mão tremia descontroladamente enquanto separava os comprimidos. Porque parte de mim não queria fazer aquilo. Era a parte que ainda estava lúcida.

Então pra não correr o risco de me arrepender, lancei os doze comprimidos no fundo da garganta, seis de cada vez, e me obriguei a engolir. Desceram arranhando meu esôfago, e então suspirei fundo. Puxei uma cadeira e me sentei.

_ Mas o que estou fazendo...? – perguntei-me desolada.

Se eu tivesse acertado na dose, provavelmente morreria só amanhã. Então poderia até dar uma limpada na casa enquanto isso...

Tentei me acostumar com a idéia de não mais existir, enquanto todo meu corpo tremia de nervosismo. Mas o medo, o pavor e a culpa me invadiram sem que eu pudesse controlá-los.Minha parte lúcida lutou ferozmente contra minha parte autodestrutiva, e em função dessa briga não notei os acontecimentos intermediários, apenas o resultado. O gosto ácido na minha boca me despertou.

_ Três, seis, nove... Doze. – repeti a conta macabra, agora com o objetivo oposto.

Suspirei aliviada, havia conseguido me livrar dos doze comprimidos. Dei a descarga e lavei minhas mãos. Não me atrevi a olhar para o espelho. Tinha vergonha até mesmo de mim. A fraqueza mais ridícula que eu já havia visto. Eu havia sucumbido à provocações tão infantis como aquelas.

_ Mel... – a voz da minha mãe soou pesarosa e amedrontada na porta do banheiro.

Eu ainda estava ajoelhada ao lado da privada, apoiando a cabeça entre as mãos.Ela se abaixou e me encarou profundamente:

_ O que você fez...?

_ Está tudo bem mãe... Eu não fiz nada...

_ O que você fez Amélia Cristina?!

Me sobressaltei com a intensidade na voz dela. Não tinha como mentir.

_ T-Tomei doze comprimidos... Mas já vomitei todos eles mãe... Me desculpa...

A culpa tomou conta de mim, e foi só por isso que chorei. Minha mãe confiava em mim para ajudá-la a superar a morte do meu pai. Fazia pouco mais de um ano, e no entanto, lá estava eu tentando deixá-la também.

Ela me abraçou apertado e não disse mais nada. Em seguida me puxou até o carro e me levou até o hospital. Estava tão envergonhada que não tive coragem de protestar.

Enquanto não estava trocando as marchas, ela segurava minha mão com firmeza, para que eu não a deixasse novamente.

 

 

 _ Vou preparar alguma coisa pra gente jantar então. – disse sorridente enquanto passava por mim para deixar as coisas no quarto.

_ Deixa que eu preparo, mãe. Vai tomar banho e descansar um pouco.

_ Hum! Parece que estamos de bom humor!

Minha mãe se referia à minha aversão a cozinhar. Ela sempre elogiava meus pratos, porém eu preferia pagar pra não ter de me aproximar do fogão.

_ É só boa vontade mãe. E não abusa, senão eu mudo de idéia.

_ Quer saber, fui!

Ela quase correu para se safar do jantar. Eu não liguei, afinal, estava mesmo brincando. Eu ia fazer a janta de qualquer forma.

O dia terminou rápido. Isso só porque eu me sentia em paz e segurança em casa. Depois de nos mudarmos, me sentia tranqüila até demais ali naquele lugar. Lutei contra o sono para aproveitar o máximo que podia daquele silêncio e daquela solidão tão aconchegante do meu quarto.No dia seguinte teria de enfrentar aquela escola populosa e barulhenta novamente. Aquelas patys que me olhavam como a aberração da moda que eu era, e aqueles meninos desajeitados com o esporte querendo me acertar com uma bola. E claro, aquele que estava sempre me perseguindo.

E como era de esperar, mais rápido do que eu esperava, já estava desembarcando do tróleibus. Observei o fluxo de estudantes se movimentar em direção à avenida. Poxa, não parecia ser tão difícil atravessá-la, uma vez que a maioria das pessoas preferiam correr o risco a perder tempo na passarela.Eu ainda estava no meio do caminho tentando decidir entre o caminho mais curto e perigoso ou o mais longo e seguro, quando ouvi um assovio muito familiar, para minha infelicidade.

Fui em direção a avenida, se fosse mesmo quem eu pensava, ele iria pela passarela.

_ Mas você não aprende mesmo, não é Cris?

Droga, era ele mesmo. Olhei pra ele e forcei um sorriso sem emoção, e voltei minha atenção para o movimento intenso de carros.

_ Bom dia né!

Ele estava me cobrando um cumprimento. Eu tive vontade de dar aquelas respostas mau-humoradas bem clichês do tipo “Bom pra você! Grrr!” ou “O que que tem de bom?”, mas esse último eu tinha visto no Chaves, então ia soar engraçado...

_ Bom dia Cris! – ele exclamou.

Acho que fiquei muito tempo pensando em como ser mal educada e ele deve ter achado que dormi de olhos abertos.

_ Bom dia... – fingi ter esquecido o nome dele. – Desculpa, você é o...

_ Aahh, não acredito que já esqueceu! – fez-se de ofendido.

_ Foi mal.

Tornei a ignorá-lo para assistir o trânsito. Estava claro que eu não iria atravessar a avenida. Umas três turmas já tinham atravessado e eu ainda estava hesitando.

_ Vem, vamos pela passarela.

_ Pode ir, prefiro atravessar...

_ Tá, então vamos atravessar.

Que saco! Era pra ele me deixar sozinha!

_ Ahn, acho que vai demorar, então vamos pela passarela mesmo.

Eu ia passar mais tempo com ele esperando um intervalo bem grande e seguro para que eu atravessasse.

_ Como você pode ter esquecido, um grande herói grego...

Ele insistia em conversar... Eu simplesmente encolhi os ombros sem culpa nenhuma.

_ Aquele do calcanhar... – ele continuou tentando.

Eu continuei caminhando como se estivesse sozinha, tentando lembrar quais seriam as aulas do dia.

_ Ô louco! Vai dizer que não assistiu “Tróia”?

“Ixi, tem inglês hoje... O que será que veremos na gramática do 3º ano?”

_ Foi com o Brad Pitt o filme, vai dizer que não gosta do Brad Pitt??

“Não posso esquecer: ’Do’ é para 1º e 2ª pessoa do singular e todas do plural...”

_ Eu vi no cinema quando saiu, bem louco, com aquelas lutas... Estilo “300”... “300” você assistiu, não assistiu?

“E “Does” é para 3ª pessoa do singular. E do singular...”

_ Rodrigo Santoro só se queimou com aquele papel de “Xerxes” você também não achou?

“Nos verbos também, tem que acrescentar o “s” para 3ª pessoa...”

_ Até a voz dele modificaram, meu! – e riu.

“Raios!”

Será que ele não percebeu que eu não estava participando da conversa? E o pior, eu não consegui ignorá-lo completamente. Havia ouvido cada pergunta. E o pior, respondi mentalmente a cada uma delas. Paralelamente ao meu reforço de inglês... Mas ele não precisava saber, lógico.

Terminamos a passarela e iniciamos a subida para a os blocos. Putz, como aquela subida era cansativa. O Aquiles parecia acostumado, pois ainda tinha fôlego para falar sem parar. Ele realmente não se importou com a minha frieza. Então aproveitei para continuar repassando mentalmente algumas regras de inglês que eu insistia em esquecer.

Às vezes eu olhava pra ele pra saber se já estava com a expressão cansada, mas nem de longe parecia isso. É... Aquela seria uma longa subida.

Continua


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