–Faltam só sete dias para a colheita, Clove! Cara, esse é meu ano. – disse Cato sem me olhar enquanto decapitava um boneco com uma espada. Legal ele me chamar de "cara". Eu já estava acostumada.

–Você está bem animado não é? – eu disse, atirando uma faca num boneco.

–Claro! Eu treinei minha vida toda para isso, e estou prestes a conseguir.

–Pois é. Nós vamos treinar muito essa semana.

–Nós? Você não está pensando em...

–Não Cato, não vou me voluntariar, é precaução você sabe! Toda semana de colheita eu treino mais. Nem sei por que todo ano você pergunta. Meu Deus, parece até que é burro.

–Haha, engraçadinha. - ele deu uma risada sarcástica - Acho bom mesmo. Não quero te matar! – disse completando em um tom de brincadeira.

–Ai ai, se eu fosse para os games com você, você não teria a menor chance.

–Ah é? – ele soltou sua espada e veio correndo até mim. Pelo primeiro momento achei que ele fosse pegar a faca de minha mão e segura-la no meu pescoço só pra se mostrar mais forte, o que seria típico de Cato, mas ele não fez isso, ele me empurrou para o chão, se certificando de que não bati as costas com força e começou a fazer cócegas. Cócegas.

–CA... PARA... HAHAHAHAHHA. PARA CATO. – finalmente consegui falar.

–Já parei pequena. - falou ainda rindo da minha cara - Ainda diz que eu não teria a menor chance? – arqueou uma de suas sobrancelhas.

–Claro. – e recomeçaram as cócegas.

Eu ainda me lembro quando conheci meu melhor amigo. Eu tinha oito anos e estava na floresta atirando minhas facas, quando fui buscar uma delas – que depois de um arremesso ficou presa num tronco de árvore - avistei um garoto loiro treinando com uma espada com o dobro do tamanho de seus braços, mas ele conseguia se virar, ou melhor, sua habilidade era incontestável. Eu fiquei observando, de trás da árvore mesmo, seus movimentos precisos. Depois de algum tempo, a faca que peguei caiu no chão, fazendo um barulhinho na grama. Curvei-me para pegá-la. Ele me viu.

–Eu realmente não queria te atrapalhar, desculpa. – eu disse sem olhá-lo.

–Você vem sempre aqui, baixinha? – odiei quando ele me chamou assim. Eu sou pequena mesmo, sempre fui pequena, não tenho muitas esperanças de crescer. Qual o problema?

–Sim, eu sempre venho aqui, mas não me lembro de ter te visto nenhuma vez. – disse num tom de raiva.

–Ah sim, eu sou novo por esse lado da floresta mesmo. – disse, me ignorando totalmente – Eu só estava procurando um lugar para treinar sossegado, mas vejo que aqui não é bem o ideal. Mas enfim, meu nome é Cato, e você como se chama?

–Clove. – fui curta e breve, ainda meio nervosa.

Nós nos encaramos por alguns minutos, mas éramos novos e acabamos rindo com a situação.

–Então você tem habilidade com facas? – disse ele, passando os olhos pela a faca em minha mão, pelas várias outras presas em meu cinto e por último para as duas em minhas botas.

Eu abandonei meu jeito nervosinho e com a faca já pronta em minha mão e atirei num esquilo numa árvore alta a alguns metros de nós. O esquilo desabou no chão. Cato ficou boquiaberto.

–Isso responde sua pergunta? – eu disse.

–Uau, isso foi incrível.

O sol começava a se pôr no horizonte, era minha hora de ir. Fui até o esquilo, peguei minha faca suja de sangue e saí andando em direção à cidade.

–Foi bom te conhecer Cato, espero te ver do novo. – disse, já bem longe dele. Depois daquele dia nos tornamos inseparáveis.

Senti as cócegas pararem.

–Cansou? – eu disse.

–Olha que eu faço de novo hein?! – ele falou gesticulando com as mãos.

Do nada, como uma bomba, me veio ao pensamento: Eu estava no centro de treinamento desde as nove horas da manhã e já era quase madrugada. Pensei em como metade da minha vida foi naquele lugar.

–Já pensou no que faremos depois que ganharmos os jogos? – perguntei a Cato.

–Como assim minha pequena?

–Sabe? Eu estava pensando... Metade da nossa vida foi nesse lugar, cortando, decepando, estragando bonecos sem vida, é só isso que fazemos fora as poucas horas na escola. Se você ganhar os Jogos Vorazes esse ano o que você vai fazer com o tempo livre?

–Ficar com você! Vou cuidar de ti pequena. Você não vai precisar se arriscar a entrar nos jogos depois do ano que vem. Nós vamos dormir a tarde inteira no enorme sofá de uma casa na Vila dos Vitoriosos. – disse dando risadas.

–É sério, Cato. Se você ganhar...

–Eu vou ganhar.

–Tudo bem. Quando você ganhar. O que você vai fazer?

–Sei lá! Posso trabalhar produzindo armamentos ou treinando Pacificadores.

–É uma opção.

–Mas bem senhorita Clove-estraga-felicidade-das-pessoas. - estranho - Semana que vem na colheita? Você vai me aplaudir muito né?

–Não. – falei naturalmente.

–Não? – perguntou confuso.

–Não!

–Por quê?

–Porque eu vou gritar como louca, pois finalmente você vai parar de me encher o saco com essa coisa de Vila dos Vitoriosos.

–Que profundo!

–Pois é.

Passou pela minha cabeça a possibilidade de ser escolhida. A colheita funciona assim: Um cara todo azul da capital – que eu nunca lembro o nome – vem para o nosso distrito e sorteia um garoto e uma garota para serem oferecidos como tributos – quem quiser pode se oferecer também - e lutarem até a morte nos Jogos Vorazes. Bem, só uma pessoa pode sobreviver. Na maioria dos distritos ir para os jogos é quase que suicídio, sendo que apenas no distrito um, no dois e no quatro as pessoas treinam para ir pra lá. Na maioria das vezes somos nós, desses distritos, que ganhamos – é por isso que somos chamados de carreiristas ou profissionais.

–Cato.

–O que pequena?

–Se eu for sorteada?

–Você não vai!

–Se eu for?

–Por favor, Clove. Enfia nessa sua cabeça que eu não vou deixar nada de ruim acontecer contigo. Ta entendendo? Nada. Enquanto eu estiver vivo, você está protegida. – eu sorri.