–Você sempre atrapalhou tudo!

–Nós poderíamos ter dado certo se não fosse você!

–Porque você teve que aparecer?

Senti os olhos inundarem mas mesmo assim os fechei. Balancei a cabeça tentando afastar tais palavras da mente.

–Você estragou tudo! - ela gritava. Também chorava, lágrimas de raiva.

Meu eu interno implorava para que eu berrasse de volta todas aquelas coisas que estavam presas em minha garganta, mas ao contrário disso, eu continuava a negar com a cabeça e olhos fechados com força.

–Eu queria nunca ter te conhecido - ele falou baixo, num tom de confissão que me dilacerou três vezes mais do que se ele tivesse gritado. Aquele garoto dono de olhos azuis me fitava como se eu fosse à culpada da caixa de Pandora ter sido aberta ou algo pior, algo como o novo Pokémon não poder ser comparado com o antigo.

E o que mais doía, porém, era eu me sentir assim culpada, como se a principal vilã daquela história, fosse a que deveria ser a mocinha: eu.

Abri os olhos repentinamente, tentava recuperar o fôlego ao mesmo tempo em que esfregava os nós dos dedos pelos olhos. Algo macio roçava em meu pé, imaginei que fosse mais um desses edredons que Matt adorava.

Foi quando um par de olhos azuis rompeu minha visão. Pulei da cama. Puxando lençol e tudo mais. Ele, do outro lado, parecia divertido, divertindo-se as minhas custas. Soltou um daqueles barulhos que eles fazem e sentou-se, ainda me fitando curioso.

Tinha que ser justamente azul? Um gato de olho azul? Era brincadeira do destino com a minha cara?

Soltou um miado baixo, ainda me olhando nos olhos. Aproximei-me um pouco, estendi minha mão para que ele cheirasse e me conhecesse, mas ele não era um cachorro e eu estava o tratando como um.

Então o que o gato fez foi olhar para minha mão durante um curto segundo e então inclinar a cabeça para minha mão estendida. Um pedido de carinho. Passei as mãos pelas suas orelhas e ele ronronou.

Meus olhos se encontraram com um porta-retrato que tinha no criado-mudo ao lado da cama, franzi o cenho, pegando-o entre as mãos. Eu me lembrava da foto. Não tinha como não lembrar.

–Junta logo vocês dois – berrava o homem de cabelos negros e grisalhos - E Marina, não bata no seu irmão. Será que vocês dois podem ficar 1 minuto parados sem brigar somente para tirar uma foto?

–NÃO! – Gritamos juntos,olhando-nos um para a cara do outro com um misto de surpresa e raiva.

Um flash praticamente cegou meus doces olhos juvenis.

–Ótimo, ao menos uma foto juntos. Já podem se matar agora.

E ali estava ela nas minhas mãos. A única foto que eu tinha com Matthew, muito cômica até, para ser sincera. Ambos nos olhando lado a lado. Eu usando uma bermuda dele que ficava do meu tamanho (apesar dele ser mais velho) e uma blusa do Scooby-Doo, parecia um garotinho, os cabelos soltos e curtos que batiam nos ombros, uma franja que quase cobria meus olhos e fazia um bico com a boca, irritada com tudo aquilo. Ri sozinha. Ele estava sempre melhor vestido, com uma camisa bem passada e arrumada e uma calça jeans, cabelos perfeitamente penteados e nossa única semelhança era o mesmo bico.

Devolvi o porta-retrato me perguntando como ele tinha o conseguido e vi outro, deveria ser recente, ele estava abraçado e com o queixo apoiado numa mulher de cabelos loiros que tinha um sorriso que quase lhe rasgava o rosto. Hum, deveria ser a namorada dele. Decidi parar de vasculhas coisas alheias e me espreguiçar, arrumei o cabelo num coque frouxo e dois minutos depois eu saia do quarto com o gato nos braços, acariciando suas orelhas enquanto ele ronronava.

–Não sabia que gostava de gatos – Matt me encarou enquanto eu adentrava a cozinha.

–E nunca gostei – dei de ombros, colocando o gato no chão que logo já estava nas pernas do dono. – E não sabia que você gostava.

–Digamos - ele sorriu envergonhado, tentando esquivar do gato que passava todo o corpo pelas pernas dele, inclinando a coluna, típica posição de gato. – Eu não sou o maior fã.

Franzi o cenho.

–Minha namorada – respondeu, colocando o prato de comida do gato debaixo da mesa. – Ela teve que se mudar e pediu para deixar Lionel, o gato dela, aqui. Era só durante um tempo – sentei numa das cadeiras. – Mas acabou que estamos a 1 ano e 3 meses juntos, Lionel e eu. Ele não é um gato comum - tentou justificar, apoiando-se na bancada, cruzando os braços e encarando enquanto o gato comia.

Coloquei o cereal na tigela, peguei o leite e a enchi. Meu estômago roncava.

–Quanto tempo eu dormi?

–O resto da tarde e a noite toda.

Quase engasguei com a colherada que levava a boca.

–Você anda aprontando? – perguntou num tom de voz paternalmente acusador.

–Desde quando você quer saber da minha vida?

–Desde quando você a intromete no curso da minha.

Respirei fundo, levando mais uma colherada a boca.

–Eu nunca fui de beber, ok? Eu só... – Lionel subiu em cima da mesa, quase me fazendo cair da cadeira. Seus olhos azuis me fitaram. – Esse gato tem o olho azul...

–Certeza? Achei que era laranja – ele falou sarcástico.

Ignorei o comentário. Eu era uma pessoa madura para uma simples conversa com meu meio-irmão mais velho, não é? Né?

–Não espero nada de você, tudo bem? – tratei de esclarecer as coisas. Afundava alguns cereais com a colher, revirando-os na tigela. – Não pense que eu não noto que você não quer minha companhia. Eu sei muito bem disso, não sou idiota.

–Hey hey – Matt ergueu as duas mãos, um sorriso irônico nos lábios. – Eu não reclamei de nada.

Rolei os olhos. Como se eu não vesse.

–Só me conta o que aconteceu – falou com a voz mansa.

Arrisquei a olhar em seus olhos. Quando Matt tinha virado tão homem ao ponto de parecer paternal?

–Você vai achar que é infantilidade – dei de ombros.

–Nunca irei saber se você não me contar – arrastou a cadeira de metal, sentou-se e inclinou o corpo pra frente, apoiando as mãos espalmadas na mesa de granito. – Eu não sou tão mal assim.

–Não sei se você se lembra – limpei a garganta, ajeitando-me na cadeira. – Daquela minha amiga... Desde pequena andávamos juntas, acho que papai deixou que eu a levasse para umas duas reuniões de família, o nome dela é...

–Gabriela – Matt completou, bebericando da sua xícara.

–É – franzi o cenho, estranhando. – Ela mesma.

–Loirinha, pequena, um sorriso perigoso e uma voz fina – ele descreveu.

Meu queixo caiu.

–Ela não passava despercebida – justificou – Parecia uma boneca, daquelas que meninas como você não tinham. Além do que, você nunca teve muitas amigas.

–Ok Matthew – resmunguei, enfiando mais uma colherada na boca.

Matt sorriu torto como se desculpasse, dando mais um gole em sua xícara. Ele bebia café preto, o cheiro impregnava praticamente todo o apartamento.

–Continua vai – ele pediu, fazendo uma careta de desculpa – Não interrompo mais.

Supri o desejo de jogar uma torrada em sua cabeça e apenas mastiguei o pão crocante.

–Deve ter reparado também que ela sempre teve tudo o que queria – falei de boca cheia, bebendo do Nescau que estava na xícara do Mickey. – Sempre – frisei. – Eu só demorei a ver isso.

Fitei o conteúdo da xícara, esperando que de lá evaporasse todas as soluções para meus problemas em forma de Chapolin Colorado. Mas nada veio.

–Eu nunca pensei que ia me decepcionar tanto com uma pessoa que julgava conhecer tão bem – falei num suspiro. – Do mesmo modo que eu nunca imaginaria que um cara que eu conheci a menos de uma semana ajudaria a me deixar dessa forma.

Pude ver Matt formar uma careta, mas logo depois ele se recompôs, engolindo em seco.

–Esse cara...

–E ainda tem ele – revirei os olhos – O qual eu pensava que era primo dela, mas esse tempo todo eu andava sendo a barreira do casalsinho quase incesto.

–Mas esse cara...

–É um idiota – interrompi mais uma vez.

–Eu notei isso – resmungou. E quando ele ia falar eu o cortei novamente.

–Diego...

–Diego? - franziu o cenho. Consenti rapidamente e ele bebeu um gole grande do café.

–Meninas como eu não foram feitas para se apaixonar pelo cara perfeito, somos nós que ficamos com os errados de fábrica, os drogados, bêbados...

–Mah, eu...

–Mas ele parecia ser aquele sabe? – Respondi em tom choroso – Eu nunca imaginei que eu, logo eu. A garotinha que gostava de Pokémon, a esquisitinha da turma, a que batia nos garotos, a anomalia. É, a anomalia! – abaixei os olhos, brincando com os dedos para não mostrar minha vergonha – Eu me apaixonaria. Você acha que isso faz sentido, Matt?

Ele demorou alguns segundos para responder.

–Talvez demore até que ele entenda que justamente a anomalia é tudo que ele queria ter ao lado.

Dei um gole na caneca do Mickey. Era exatamente o que eu gostaria de ouvir naquele momento. Prendi um sorriso bobo de quem estava feliz pelo o que ouviu.

–Se eu fosse ele acho que faria o mesmo que ele fez. – Repeti, porque em partes era verdade e já em outras partes eu gostaria de ver melhor esse lado de Matthew que eu nunca cheguei a conhecer, mas o qual eu já considerava estranho.

–Para de ser dramática que eu não vou ficar ameaçando de morte um garoto. – Ele arrastou a cadeira para colocar a caneca na pia.

ESSE SIM! Esse era o Matthew que eu sempre conheci. Gargalhei, jogando uma torrada em sua cabeça.

–Nem pense em sujar o chão da minha casa, a diarista só vem nas terças e sextas.

–Deixa de ser certinho, Matt – revirei os olhos. Não conseguindo ver, porém, que a torrada voltava ao seu ponto de partida e um pouco mais certeira.

–Só para não deixar barato – falou em tom infantil.