A Rosa de Vidro escrita por Rafnir


Capítulo 4
O Delator e o Segredo do Central Park




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E agora? O que eu iria fazer...?

Tudo bem, Jack tinha razão: a garota era realmente linda! Os cabelos vermelhos, a brincar na brisa outonal; os olhos verdes e oblíquos, num misto de tristeza e êxtase; o corpo fino e frágil, lindamente modelado sob o uniforme da escola, de um azul celeste e um branco astral... Praticamente uma ninfa de alguma roseira silvestre.

- E então, fale alguma coisa sobre você... Lynn, não é? Não quero passar a manhã inteira tagarelando sobre minha vida...

E esse era o ponto em que temia chegar. O que eu faria agora? Não poderia contar pra ela a "verdade", mas tinha de tomar cuidado para não ser pego em minhas mentirinhas brancas... Estava encurralado.

"Raios e trovões", bufei em minha cabeça. "Se ela não fosse tão linda eu conseguiria pensar com mais clareza...".

Ela olhava curiosa e desconfiadamente para mim. Eu tinha de dizer algo:

- Bom, se não se importa, que tal fazermos isso enquanto comemos alguma coisa? Até onde sei, nenhum de nós dois fez a... O almoço. Nenhum de nós dois almoçou ainda, isso.

Ela olhava, divertida. Quase como se estivesse tentando adivinhar o que se passava na minha cabeça... Bom, se ela pensar que eu estou assim por causa dela, ótimo.

- E então... Daria-me a honra de sua companhia no almoço?

- Adoraria. Sem contar que estou mesmo com muita fome!

Havia uma pequena lanchonete no zoológico, o que seria o bastante – ao menos para ela. Sentamos em uma mesa, ela fez o pedido dela e...

- O que vocês têm de verde aqui?

O garçon me olhou assustado, e Melissa me olhou rindo. Pude somente repetir a pergunta, sério, enquanto o pobre coitado gaguejava alguns pratos vegetarianos. Pedi minha "comida de coelho", como o rapaz havia chamado, e pude então prestar mais atenção em Melissa, que olhava perdida e desanimada para uma família que passava por nós, rindo e brincando entre si.

- Alguma coisa errada?

- Não é nada... Apenas me lembrei de algumas coisas... De casa.

Ótimo, uma oportunidade para voltar o foco da conversa para ela – e ela somente. Tinha de distraí-la o máximo possível, ao menos até que Charlie e os outros encontrassem um lugar para ela passar a noite.

- Os meninos disseram que você... Estava fugindo de casa. Posso perguntar por que?

- Ah... claro. Pode sim. Mas você já perguntou, não é? Ah, me desculpa, estou um pouco distraída agora...

- Não, tudo bem. Só não entendo porque alguém iria querer fugir de casa. Simplesmente não faz sentido pra mim...

E então ela me explicou tudo: desde a mãe, que falecera ainda jovem voltara para a Mãe Terra há alguns anos, até o ultimato que o pai dera algumas horas atrás. Me contou de sua solidão, de seu medo e de sua raiva. E, enquanto ela ia vomitando aquela infinidade de sensações e palavras contidas há muito tempo, percebi uma coisa que começava a acontecer, clara como as águas de um rio.

Eu estava me afeiçoando a ela.

- E é isso... Por isso resolvi fugir de casa. Faz algum sentido agora?

- Eu... Ah, claro, claro. Mas, veja bem: fugir de um problema não irá resolvê-lo. Você não devia correr de seu pai e se esconder por aí. Não, você deve enfrentar o problema de frente. Por mais que pareça difícil ou até impossível... E, se você nunca fez isso na vida, fico honrado em incentivar a sua primeira vez.

Ela pôs-se a olhar para mim profunda e atentamente. E, quando a garçonete apareceu com nossos pedidos, vi que os olhos dela estavam mais brilhantes e reluzentes do que antes.

"Ela está segurando o choro", pensei. Só não sabia ainda se aquilo tudo era uma coisa boa ou não...

- Olha, vamos fazer um acordo: você passa o dia aqui, comigo, e se até o por-do-sol eu não conseguir te convencer de voltar pra casa e tentar resolver seu problema, eu arrumo um lugar pra você passar a noite aqui...

Mas por que duendes eu estava fazendo uma coisa daquelas? Se ela não quisesse voltar, eu teria que...

- Obrigada. Muito obrigada mesmo, Lynn. Você e os meninos estão sendo grandes... Amigos. Fico grata...

Apesar de ter dito aquilo entre uma garfada e outra, foi a coisa mais sincera e mais tocante que ela disse em toda manhã. E, apesar de brincar com a minha comida (um prato de salada toscamente preparado), pude apenas sorrir para ela e agradecer com um aceno.

Mas ainda havia outras coisas a tratar...

- Bom, se você não se importa, eu tenho de... Ir ao banheiro. É, isso, o banheiro... Você pode esperar aqui?

Ela olhou confusa e surpresa. Sem saber o que dizer (ou fazer), apenas murmurou um "Claro" enquanto terminava sua refeição. Tive a impressão de que me acompanhava com os olhos quando a deixei sozinha...

Procurei rapidamente, entre as árvores mais distantes do parque, uma poça d’água. Com sorte, achei uma relativamente grande, e distante do caminho cheio de pessoas.

- Mello... Sou eu, Mello. Responda!

Depois de algum tempo, pude enxergar o rosto velho e enrugado do gnomo, irritado com alguma coisa. Depois de um breve suspiro, ele disse:

- Sim, estou ouvindo... O que aconteceu? Você já está atrasado para nossa refeição... Foram aqueles garotos, não foram? Eu sabia que...

- Escuta, Mello, nós temos uma emergência... Eu só vou poder voltar à noite, ou talvez nem isso... Apenas controle os outros aí e garanta que fiquem bem até eu voltar.

O gnomo reagiu com surpresa e temor. Com certeza não esperava uma coisa daquelas – nem eu esperaria.

- Mas... O que houve? Raramente você fica o dia inteiro fora, e quando faz é porque...

- Isso mesmo, Mello: temos um "Delator" em mãos. Você sabe o que fazer...

- Eu... Sim senhor. Farei o que for necessário. E Lynnoral... Tome cuidado.

À medida que o rosto assustado e cansado de Mello desaparecia, levantei-me, limpando as calças sujas de barro. "Delator" era um termo que nós usávamos para não levantar muitas suspeitas em caso de emergências.

Basicamente, queria dizer que havia risco de invasão ou descoberta da existência do "outro lado" do Central Park. De certa, forma era isso mesmo... Ainda que certos detalhes fossem inteligentemente omitidos na ocasião.

Ao voltar, vi Melissa brincando com algumas crianças que estavam por perto. Era de fato uma menina adorável, meiga e gentil – mas tinha algo de sombrio e deprimente no fundo dos olhos dela.

Foi então que, além de me afeiçoar a ela, passei a me identificar com ela.

- Tudo bem? Aconteceu alguma coisa? Você parece sério...

As crianças, vendo que seus pais estavam partindo, despediram-se e saíram às pressas. E eu tinha até o final da tarde para convencê-la a voltar pra casa...

- Não, nada de errado. E que tal se nós andássemos por aí? Visitar o zoológico do Central Park, e depois quem sabe...

E a tarde se passou numa sucessão lenta e melodiosa de momentos ótimos. Melissa tinha o dom de adocicar até mesmo as coisas mais enfadonhas e corriqueiras de minha rotina – a razão, creio, porque essas coisas não deviam ser tão chatas assim para ela.

Passeamos, corremos, pulamos e brincamos – demos liberdade a nós mesmos para sermos as crianças que nunca fomos. E depois da tarde mais maravilhosa de minha vida, já de volta ao ponto onde nos vimos pela primeira vez, vimos os últimos raios do sol sobre as folhas das árvores.

Estava na hora.

- Bom, Lynn... Foi ótimo. Sério, gostei muito de passar a tarde com você... Você me fez pensar, sabe.

Finalmente, meus esforços estavam dando algum resultado... Mas não poderia colocar tudo a perder agora.

- Vou voltar pra casa e resolver meus problemas, como você sugeriu. Mas tem uma condição... Ou melhor, duas.

Estava demorando pra isso acontecer... Não se pode ganhar todas, afinal

- Pois bem, sou todo ouvidos. Quais são suas condições?

- A primeira: quero passar as tardes aqui com você, sempre que possível. E a segunda... Quero saber por que você mora nas ruas... Ou melhor, no parque.

Felizmente ela estava sorrindo no momento, pois não viu minha cara de medo e apreensão. Aquilo estava ficando arriscado demais... Mas eu não podia simplesmente mandar ela pra longe, poderia?

- Bom, quanto a passar as tardes aqui, sem problema algum, seria uma honra e um prazer passá-las em tão agradável companhia. Sobre seu segundo pedido... Está ficando tarde, então... Amanhã conversamos sobre isso. Algum problema?

- Nenhum. Estarei esperando ansiosa...

- E eu também, minha cara. Vá em paz, Melissa, e até breve.

Ela foi andando tranquila pelo caminho de pedras, antes de se virar uma última vez e soprar um beijo no ar. Finalmente, fazendo uma curva acentuada, desapareceu do meu campo de visão.

- Agora entendi porque você não foi almoçar hoje...

Se eu não conhecesse o péssimo costume de Mello de aparecer subitamente, teria levado um susto e tanto. Ele me olhava de lado, sentado no topo de um dos bancos de madeira, com um sorrisinho afetado por debaixo da barba espessa.

- Ora Mello, por favor: era um "Delator", afinal... Uma ameaça em potencial. E você sabe como essas coisas são. Simplesmente tive de garantir que ela não entraria lá...

Mello concordou, cansado. Deixou os olhinhos passearem perdidos e desinteressados em redor, até que olhou com curiosidade para um ponto qualquer no chão:

- Olha só, parece muito com...

- Lynn, desculpa voltar assim de sopetão, mas eu esqueci a minha...

E meu sangue simplesmente congelou. Mello estava sentado, os olhos esbugalhados para Melissa. E ambos, assustados e pegos de surpresa, apontavam para a mesma coisa no chão: uma mochila verde, de tamanho médio. A mochila de Melissa – que ela quase esquecera para trás.

Ambos gnomo e menina então olharam para mim, como que querendo uma explicação – qualquer que fosse. E, depois de várias eras de confinamento e cuidado absoluto, um "Delator" havia quebrado – consciente ou não de seus atos – a barreira entre o mundo humano e o "nosso" mundo – meu e de Mello e de todos os outros.

Gaia, mãe de todas as coisas viventes... Como vou sair dessa enrascada?

Uma humana acabou de descobrir o "Segredo" do Central Park. E eu não tinha a mínima idéia do que fazer...


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