Beastman escrita por Cicero Amaral


Capítulo 21
Capítulo 21




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Teen Titans, assim como aquela motocicleta Ninja que vi três dias trás, NÃO me pertence. Lamentável.

 

 

            A ala médica da Torre Titã, diferente dos corredores, era excepcionalmente bem iluminada. Não apenas havia uma abundância de lâmpadas acesas, mas também as paredes, pintadas de branco, ajudavam a refletir a luz, acentuando a claridade.

            Aquela sala era o local menos visitado da Torre Titã. Nenhum de seus residentes ia até lá sem motivo; aquele, apesar de sua aparência, era um lugar desagradável, cujo silêncio lhes lembrava que, a qualquer momento, a vida de herói que tinham escolhido... poderia cobrar um alto preço. Os dois jovens que se encontravam ali também costumavam pensar assim.

            Até hoje.

            Porque foi aqui, nesta mesma sala, em que ambos conseguiram algo... importante. Importante, necessário... desejado. Depois de tanto tempo, Mutano e Ravena finalmente tinham... um ao outro.

            Apenas após longos, abençoadamente longos minutos, é que ambos finalmente separaram os rostos um do outro. Ravena tinha uma expressão lânguida na face, e seus lábios tremiam levemente, como se quisessem... mais. Mutano, por sua vez, não tinha palavras para descrever o quão feliz estava se sentindo: como descrever uma sensação que ia além dos sentidos?

            Os dois adolescentes continuaram abraçados, a empata descansando a cabeça no ombro do metamorfo. Apesar da surpresa, apesar do coração batendo como se não houvesse amanhã, ela se sentia mais calma e tranqüila do que há muito, muito tempo. Desaparecidas estavam a incerteza, a angústia e a preocupação, seu lugar ocupado por contentamento, uma sensação de segurança, e uma serenidade... diferente daquela que conhecia. Parecia surgir sozinha, sem a necessidade de técnicas meditativas. Era agradável se sentir assim. Ravena podia sentir-se relaxando aos poucos, enquanto sentia dedos acariciando seu cabelo.

            Mutano nem estava mais pensando: estava contente demais para isso. Na verdade, estava até se contendo, para não fazer uma algazarra. E era difícil, visto que tinha acabado de realizar um sonho. Quem neste mundo ou em qualquer outro, podia se gabar de ter tanta sorte quanto ele? Quem?

            Então, após mais alguns minutos abraçado à empata, ele percebeu o peso dela aumentando mais e mais, ao mesmo tempo em que seu aperto parecia diminuir aos poucos. Olhando para o lado, viu que ela tinha caído no sono em seus braços. Sem perder tempo, o metamorfo pegou a jovem adormecida no colo, e depois colocou-a cuidadosamente, na mesma cama onde ele estivera pouco antes. E foi com grande satisfação, que ele notou que Ravena tinha trançado os braços em volta de seu pescoço, e, mesmo dormindo, parecia não querer largar.

            Após finalmente se soltar, ele ainda permaneceu um bom tempo na enfermaria, admirando a garota que amava. Ele nunca tinha visto ela dormindo antes, e tinha alguma dificuldade para acreditar no quanto ela parecia serena... contente até.

            O metamorfo ficou ali até ouvir um som de trovão, vindo de dentro da sua barriga. Subitamente faminto, dirigiu-se para a cozinha, sem demora. Era como se tivessem cavado um poço sem fundo em seu estômago. De fato, sentia-se capaz até mesmo de comer um dos (argh!) bifes do Ciborgue...

 

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            Os demais Titãs saudaram Mutano assim que ele chegou à sala comum. Após conseguir se soltar de Estelar e recuperar o fôlego, o rapaz verde não perdeu tempo em pegar um tablete de tofu tamanho família, para em seguida começar a prepará-lo, de várias formas criativas.

- Caaara, eu tô morrendo de fome. – declarou ele, se segurando para não atacar o tofu cru mesmo. – Parece que eu não como faz uma semana.

- Na verdade, Mutano, você apagou por quatro dias. – a voz de Ciborgue ecoou perto dele. – Se eu fosse você, agradeceria à Ravena e... MINHA NOSSA! O QUE É QUE É ISSO NA SUA CARA???

- Na minha cara...? – O metamorfo levou a mão esquerda até sua face, sem saber do que seu amigo estava falando.

            Péssima idéia. Mal ele encostara a mão na bochecha, uma dor lancinante tomou conta dele. Foi por muito pouco, que todas as panelas com tofu quente não foram para no chão.

- Ai ai! Aiaiaiaiaiaiai! – queixou- se ele, contorcendo-se como peixe fora d’água. – Mas o quê...?

            Nesse momento, Ciborgue colocou um espelho na frente do metamorfo. Foi ali que ele viu a marca vermelha e pulsante em sua bochecha esquerda. Uma marca em forma de mão.

- Ah, tá... – disse o Titã verde, lembrando-se da razão de aquela marca estar ali. – É que Ravena ficou meio brava por conta de toda essa parada...

- Tô vendo... – respondeu o homem metálico, ainda incapaz de tirar os olhos da cara de seu amigo. – Mano, não quero nem ver quando essa coisa começar a inchar...

            Mutano, porém, não estava nem um pouco preocupado com o estado de sua face. Primeiro, porque seu estômago estava praticamente urrando por comida. Segundo, porque ele acabara de se lembrar de uma coisinha:

-Guní. – o metamorfo tentou falar, com a boca simplesmente lotada de tofu e refrigerante. – Mmhf genh eg naganhgu?

            A resposta de Ciborgue foi um olhar de nojo, enquanto ele limpava as migalhas de comida que tinham sido cuspidas em seu revestimento.

- Uh. - O garoto verde terminou de engolir o que estava comendo. – Aí, cara, quanto tempo você disse que fiquei apagado, mesmo?

- Quatro dias. Quando eu finalmente cheguei ao lugar onde você estava, pensei que era tarde demais.

- Fiquei tão mal assim?

- Que que você acha? Aquele bicho te pegou num abraço-de-urso por quanto tempo? Dez segundos? Quinze? Você estava um lixo quando cheguei. Se não fosse a Ravena...

- É verdade, né. – Mutano respondeu olhando para o alto, sonhador, com um sorriso idiota no rosto. De repente, parecia que tudo o mais no mudo tinha desaparecido, exceto por uma imagem. Um rosto.

- ... se quer a minha opinião, essa  porrada que ela te deu foi mais do que merecida e... EI!! Você tá me ouvindo? – O homem metálico começou a sacudir o ombro do metamorfo.

- Hããã? – Sim, o Titã mais jovem ainda estava sonhando acordado.

- Caraca, verdinho! Desde que você saiu da enfermaria que tu tá esquisito. Tem certeza que o Overload não acertou seu cérebro também não? Tem que ser bom de mira para acertar uma coisa tão pequena...

            A provocação, no entanto, caiu em ouvidos surdos. Ciborgue, decepcionado, cogitou até desistir e deixar seu colega em paz... mas isso não era de seu feitio. Sorrateiramente, ele pegou duas tampas de panela, e estava prestes a bater uma na outra quando...

- Aí. – Mutano perguntou, subitamente. – Como foi que o Robin escapou daquelas pedras?

- Ele não te disse não? – Respondeu o Titã cibernético, escondendo as tampas de panela atrás de seu corpo.

- Não, a gente só trocou um “oi” depois que Estelar me largou. Depois vim direto comer. – explicou o garoto verde. – Cara, nem acredito que fiquei apagado por quatro dias!

- Agradeça à Ravena – repetiu Ciborgue. – Ela não saiu de perto de você nem por um minuto, durante todo esse tempo. Raios, Estelar quase precisou arrastá-la dali, para que a coitada aceitasse pelo menos dormir e tomar banho...

- É mesmo? Ela nem quis sair do meu lado? – O metamorfo parecia estar sonhando acordado de novo, com um sorriso que parecia prestes a dar a volta em torno de sua cabeça.

- Com certeza. Por mais que vocês não se dêem bem, ela nunca iria deixar... – o homem metálico começara a explicar, mas então viu, mais uma vez, a expressão de felicidade abobada no rosto de seu amigo verde. – Mutano, falando sério: você ESTÁ esquisito hoje.

- Deixa quieto, amigão. Eu vou lá na sala dar uma olhada no Robin.

 

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            À medida que se aproximava da sala comum, o Titã mais novo podia ver o sofá, e nele estava seu líder, com o braço direito engessado, descansando. Mutano nunca duvidara que Robin fosse capaz de dar um jeito em algumas toneladas de aço e concreto desabando; com certeza, foi só abrir o cinto de utilidades e tirar alguma bugiganga maluca dali de dentro.

- E aí, Robin? – perguntou o metamorfo, parando atrás do menino-prodígio, sem vontade de se sentar no mesmo sofá em que ele e Estelar se encontravam. – Qual foi o truque?

- Espuma de concreto. Endurece em contato com o ar, e é porosa o bastante para que uma pessoa respire através dela. – respondeu o menino-prodígio, sorrindo. - Cortesia da WayneTech.

- E o braço?

- Ah, isso? – Robin não parecia preocupado. – Faltou espaço para a espuma cobrir a mim e aquele garotinho, então uma parte acabou ficando de fora. De qualquer modo, está tudo bem agora. Ravena já curou a maior parte da fratura.

            Nesse instante, Mutano decidiu que não faria mal se sentar na outra ponta do sofá, e passou por seus dois colegas, estranhando o fato de Estelar não ter dito nem uma única palavra. E, no momento em que se sentou, viu uma coisa que o surpreendeu.

- Cara! O que foi que aconteceu com você?!? – Espantou-se ele, ao ver Robin com o torso todo engessado.

            A reação do casal sentado na outra ponta do sofá foi... estranha, para dizer o mínimo. Estelar, vermelha como um tomate, levantou-se e saiu praticamente correndo da sala. E o menino-prodígio, por sua vez, parecia sem jeito de responder. Apenas mais tarde, depois de se certificar de que sua namorada não estava por perto, é que ele se inclinou na direção do metamorfo e sussurrou:

- Abraço tamaraneano... quando Estelar me tirou daquela pilha de entulho, ela estava feliz da vida...

- Deu pra notar... – Respondeu o Titã mais jovem, concordando.

 

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            Ravena abriu os olhos devagar, para se acostumar à claridade sempre presente na ala médica da Torre. Achou estranho não estar cercada pela penumbra de seu próprio quarto, mas isso, curiosamente, não a estava incomodando. De fato, a empata se sentia tão despreocupada, tão relaxada, que, antes mesmo de se dar conta disso, fez algo completamente inédito para ela.

            Respirou fundo e se espreguiçou, antes de levantar.

            Não, Ravena não estava com as sensações que normalmente acompanhavam seu despertar. A preocupação em não perder o controle estava ausente, bem como a sensação de que algo terrível estava prestes a acontecer. Nem mesmo seu maior receio, o perigo de Trigon retornar para uma vingança, estava ocupando qualquer lugar em sua mente agora.

            De fato, enquanto subia para a cozinha, o único pensamento presente em sua mente era o de ser uma pena, não haver tantos dias bonitos como este.

-... RAVENA! – Alguém gritou quase que no ouvido da empata.

- O que é? – Perguntou ela, virando-se na direção da voz. Nem fora capaz de se assustar, distraída como estava.

- Pô, finalmente! – um Ciborgue muito agitado estava a seu lado, falando alto e gesticulando de forma exagerada. Já tô te chamando pela quarta vez e você nada!

- Então que tal você ir me dizendo, enquanto vou à cozinha e preparo algo para comer? – Ravena respondeu, sem se deixar afetar pela atitude pouco educada de seu colega.

            Essa resposta deixou Ciborgue intrigado. Normalmente, a empata dava respostas do modo mais lacônico possível, e quase nunca deixava a porta aberta para que a conversação continuasse. Além disso, e mais importante, era a forma como ela tinha falado. Era difícil dizer exatamente o quê, mas não era o tom de voz habitual dela; era como se, de repente, a voz de Ravena tivesse ganhado uma vibração extra, como se estivesse ficando diferente do som que ele estava acostumado a ouvir.

            Uma vez na cozinha, o Titã cibernético observou sua amiga preparar uma refeição para si, e, mais uma vez, considerou que havia algo... diferente ali. Alguma coisa em sua postura, ou na forma como ela estava, bem, ESCOLHENDO o que iria comer. Não que isso fosse errado, claro, mas não era algo que ela costumasse fazer. Com a exceção de chá, e os seus mundialmente famosos waffles, Ravena parecia considerar todas as outras comidas apenas como fonte de nutrição, e olhe lá...

            E foi só quando a empata se sentou para comer, que ele se lembrou que tinha algo para perguntar.

- Aí, Ravena... você não acha que pegou meio pesado com o cabeça-de-alface?

- Como assim? – Questionou ela, sem realmente entender a razão da pergunta.

- Sabe, concordo que ele seja descuidado, e que a gente precise dar uma chacoalhada nele de vez em quando, mas aquilo? Aposto que vai deixar uma marca e...

- Ciborgue! – interrompeu a empata. – Do que é que você está falando.

- Ora, Ravena. - O adolescente metálico respondeu como se fosse óbvio. – Daquele tapão que você deu na cara do coitado! Precisava de tudo aquilo?

            E então algo estranho aconteceu. O rosto da adolescente assumiu imediatamente uma expressão sonhadora, e ela ficou meio que olhando para baixo, como que perdida em um devaneio.

- Ah... aquilo... – Respondeu ela a meia voz. Sua mente estava longe dali agora, perdida naqueles momentos que se sucederam ao tapa.

            Esse comportamento, por parte da empata, deixou Ciborgue meio sem saber o que pensar. Quando fora a última vez em que a tinha visto desse jeito mesmo?

- Sabe, Ravena... – perguntou ele enquanto coçava a cabeça, confuso. – O Mutano ficou com essa mesma cara, quando eu perguntei a ele sobre aquela marca no rosto dele...

- É mesmo? – Questionou a jovem, que tinha achado aquela informação muito agradável... e tinha uma boa idéia do porquê.

            Foi então que o Titã metálico desistiu de continuar a conversa. Ele conhecia muito bem esse jeito de falar, bem como o olhar de peixe morto, e se fosse qualquer outra pessoa nesse estado, ele saberia muito bem qual a razão por trás de tudo. Mas Ravena? Ravena E Mutano? Naaaah. Sem chance.

 

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            Foi no meio da tarde que Ravena decidiu sair um pouco da Torre. Na verdade, aquele horário estava reservado para meditação, mas a empata se sentira compelida a deixar essa atividade para mais tarde: estava excepcionalmente difícil esvaziar a mente hoje, e, além disso, um certo rastro empático parecia estar implorando para ser seguido. Sempre estivera ali, mas apenas hoje é que seu apelo se tornara... difícil de ignorar.

            Ela não estava realmente prestando atenção para onde ia, mas não se espantou nem um pouco, ao perceber que seus passos a tinham levado para uma pequena praia rochosa, ali mesmo na ilha. Uma praia com uma rocha maior, onde estava sentada uma pessoa. Um rapaz de pele verde.

            Ela viu que sua aproximação tinha sido percebida. Mutano não tinha saído do lugar onde estava, e nem mesmo se levantado, mas, sorrindo, voltara o olhar para sua direção. Ravena ainda não sabia como se comportar, ante a intensidade daquele par de olhos fixos nela. Sentia-se exposta, encabulada, com vontade de se esconder debaixo de capuz e sumir... mas, apesar disso, sentir o olhar do metamorfo sobre si, daquele jeito, era... muito, muito bom.

- Oi... – cumprimentou o garoto verde, no momento em que a empata se sentou ao seu lado. Seu rosto ainda ostentava um olhar abobado, como alguém que acabara de ver a coisa mais linda do mundo.

            Ravena não respondeu imediatamente. Estava de cabeça baixa, e esfregava uma mão na outra, nervosamente. Havia algo que queria perguntar, mas, ainda assim, ela hesitava, como se temesse a resposta que poderia receber. Somente quando o metamorfo se aproximou mais ainda, é que ela finalmente deixou sair a pergunta que atormentava sua mente.

- Mutano... hoje de manhã... aquilo que me disse... você... você estava realmente falando sério?

            A razão que levara a empata a fazer essa pergunta era uma só. Insegurança, e ela reconhecia isso. Ravena sabia muito bem a resposta para sua própria pergunta. Nesta mesma manhã, pouco depois de o metamorfo acordar na enfermaria, ela não apenas sentira, mas tinha praticamente se alimentado com o sentimento que ele nutria por ela. Era quente, convidativo... acolhedor e confortável, e, ao mesmo tempo, sólido como o granito. Sim ela sabia o quão sérias foram as palavras dele, mas ainda assim, precisava de confirmação. De outra forma, como ter certeza de que tudo aquilo era real e não sonho?

            E a resposta de Mutano foi dada de uma forma... inesperada. A adolescente esperava que ele jurasse em nome do tofu, ou que se levantasse, estufasse o peito e dissesse um monte de baboseiras num sotaque francês falso, mas não. Seu primeiro gesto foi esticar o braço esquerdo, e pegar a mão direita dela na sua. A empata não costumava ligar para cores, mas, naquele momento, a combinação entre verde e cinza, de seus dedos entrelaçados, parecia simplesmente... perfeita.

- Claro que sim. – declarou o metamorfo, enquanto beijava as costas da mão dela. – Nunca se esqueça disso.

            O jovem casal, de mãos dadas, permaneceu sentado na rocha por algum tempo, apenas desfrutando um da presença do outro, e daquela paisagem de tarde ensolarada. Porém, isso logo se tornou... insuficiente. Ambos sabiam perfeitamente o que estava prestes a acontecer, quando Mutano começou a se aproximar mais e mais. E a adolescente, encabulada, hesitou por apenas um instante, antes de se permitir ser beijada novamente.

            Era um prazer inédito para a empata, saborear aquele momento sem preocupações, sem qualquer medo. Se sentir despreocupada, segura... protegida. Agora, ela quase (quase!) podia entender porque Estelar parecia estar sempre tão feliz. Santa Azar, se sentir amada era algo tão... tão... maravilhoso! Ia ser muito fácil se acostumar com isso.

            SPLLOOOOSHHH!!!!!

            Mutano e Ravena, encharcados, irritados e assustados, se separaram para poder olhar para o alto. Um balde d’água? Então algum desaforado tinha tido a coragem de jogar um balde d’água (fria, ainda por cima) nos dois?!? Entretanto, ao olhar para o alto, ambos viram que as janelas da Torre Titã estavam fechadas. Além disso, como acabavam de lembrar, as muitas janelas da Torre Titã não abriam, com exceção daquelas localizadas nos quartos. E isso significava apenas uma coisa: quem quer que tenha decidido jogar água nos dois era abusado o bastante para fazer isso bem perto deles. Quase que ao mesmo tempo, a empata e o metamorfo voltaram seus olhares para o nível do solo.

            Apenas para ver algo que nunca teriam sido capazes de antecipar.

            Nas águas da baía se desenrolava um fenômeno... curioso, para dizer o mínimo. A poucos metros dos dois, a água do mar parecia estar sendo espontaneamente jogada para o alto, em vários jatos e ângulos, que faziam daquilo uma imitação quase perfeita de um chafariz. De fato, haviam vários jatos d’água que eram emitidos a partir de um ponto comum, no mar, e eles se moviam com sincronia exemplar. Além disso, as muitas gotículas de água suspensas no ar interferiam com a luz daquela tarde, fazendo com que um arco-íris aparecesse, bem em cima do casal estupefato. Com toda a certeza, era aquilo que tinha derramado água neles.

            Mutano, surpreso, não pôde evitar de ficar parado, com um sorriso bobo na boca, admirando a beleza do espetáculo que se desenrolava diante de seus olhos. Ele não sabia de onde aquilo vinha, e na verdade, pouco se importava.

            Ravena, por outro lado, estava vendo outra coisa. Não tinha prestado a mínima atenção para cores e formas, mas na base do “chafariz”, naquilo que estava impelindo a água para o alto. E ela estava horrorizada com o que estava vendo ali.

            Logo abaixo do nível da água, havia um sifão negro. Um sifão feito de energia negra.

- Ah, não... nãonãonãonãonão. Não!

            Naquele mesmo instante, ela se virou e começou a andar para longe. Tinha se esquecido! Não lhe era permitido sentir! Ela precisava sair dali, precisava sair de perto de Mutano, imediatamente. Antes que alguma tragédia acontecesse.

- Rae, aonde você tá indo? Não quer mais ver? – Perguntou o metamorfo, quando percebeu que ela estava se afastando.

- Preciso ir. – Ela respondeu, sem demonstrar qualquer emoção na voz.

            A forma como ela respondeu, assim como o caminhar, rápido e duro, mostraram ao Titã verde que havia algo errado. Muito errado.

- Rae, o que é que tá havendo? – Perguntou ele, caminhando logo atrás dela.

- Preciso ir. – Repetiu a empata.

- Ravena, me diz o que é que está acontecendo! – Mutano exigiu, segurando-a pela mão.

- Me solta, Mutano! – A empata protestou. Sua voz estava anormal. Parecia... desesperada, quase em pânico.

- Não! – se ele tinha alguma dúvida, esta acabava de se dissipar. Alguma coisa estava errada, e, pelo visto, Ravena pretendia se fechar mais ainda, fingir que nada havia acontecido entre eles... fugir, em outras palavras.

- Estou falando para você me soltar! – Ameaçou ela, com os olhos brilhando em uma luminosidade branca.

- Não! – respondeu o metamorfo, agora prendendo a garota pela cintura. – Não até você me contar o que é que está havendo!

            Mas ela não se dignou a responder. Meramente se concentrou um pouco, e se teleportou de volta para seu quarto. Uma vez lá, no entanto, a pressão em sua cintura mostrou-lhe que seu plano de fuga não tinha sido bem-sucedido. De alguma forma, Mutano tinha sido trazido junto.

            Existe algo que precisa ser dito sobra a capacidade de teleportação de Ravena. Não é teleporte DE VERDADE. Um verdadeiro teletransporte envolve dissipar suas moléculas em um dado lugar, para depois reagrupá-las em outro. Na verdade, o que a empata fazia era movimentar-se através das dimensões, abrir portais. Era como se pegasse um atalho, para chegar a outro ponto no espaço. E era essa a razão pela qual Mutano, agarrado a ela, viera junto.

            A jovem, no entanto, ainda não tinha desistido. Desesperada para escapar do metamorfo, começou a se teleportar ao acaso, sem ao menos pensar aonde é que poderia estar indo. Por um microssegundo, eles se viram na Ponte de Jump City, no Grand Canyon, no Memorial Lincoln, no Deserto de Atacama, na sala comum da Torre Titã, um lugar esquisito que só tinha branco, o topo do Monte Rushmore, entre outros.

 

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-Ôôô, Ciborgue? – Robin perguntou, largando o controle do videogame.

- Que foi? – O adolescente metálico respondeu, sem tirar os olhos da tela do televisor.

- Você viu o mesmo que eu vi?

- Mano, eu só vejo que agora estou com uma volta de vantagem sobre você.

- Ciborgue... foi só por um instante, mas eu juro que vi o Mutano agarrando a Ravena.

            O carrinho azul, tão logo essa frase acabara de ser pronunciada, iniciou uma manobra absurda, como se seu motorista tivesse perdido o controle. Momentos depois, nada restava dele, além de uma pira de chamas.

- Como. É. Que. É? – O Titã  cibernético mal podia acreditar que seu líder pudesse ter usado um truque baixo como esse, só para não perder a partida.

- Você ouviu o que eu disse. Por um segundo, eu vi Mutano agarrando a Ravena pela cintura. Foi bem ali! – Declarou o menino-prodígio, apontando para um canto da sala.

- Mutano agarrando Ravena? – Questionou Ciborgue, com incredulidade evidente em sua voz. – Robin, você pode me mostrar exatamente onde eles estavam quando você os viu?

- Bem aqui. – Foram suas últimas palavras, antes de se posto a nocaute por um dardo tranqüilizante, disparado por seu colega de metal.

- Amigo Ciborgue, o que significa isso? – Perguntou Estelar, que tinha acabado de chegar à sala.

- Me ajuda a levar o Robin para a enfermaria, Estelar. – respondeu ele, tranqüilo como quem fala de um assunto corriqueiro, como o clima. – Ele estava tendo alucinações de novo... acho que andou mexendo novamente naquela máscara velha do Slade.

- Ah, sim. – respondeu a tamaraneana, enquanto transportava seu inerte namorado para a ala médica. – Creio, amigo, que seja a hora de destruirmos aquele vil artefato.

- É. Acho melhor mesmo.

 

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            A seqüência de saltos dimensionais só terminou quando não restavam forças para que Ravena continuasse. Ela e Mutano se encontravam no topo da Torre agora, cansados demais para se mover.

- Rae... – Mutano, sem fôlego, perguntou pelo que julgava ser a centésima vez. - O que é que está acontecendo?

            A empata não pôde conter um suspiro de insatisfação ao ouvir isso. Como se não bastasse ela ser forçada a se lembrar da triste realidade que era sua natureza, ser forçada a desistir do que de mais precioso ela agora possuía, o metamorfo ainda teimava em dificultar as coisas. Será que ele não percebia o quanto era doloroso para ela fazer isso? Renunciar a tudo, e fingir que nada jamais havia acontecido?

- Vir aqui... foi um erro. – disse ela, sem olhar para o rosto do garoto à sua frente. - Isso não pode acontecer novamente.

- O QUÊÊÊ??? Mas... mas por quê?

- Será que você não entende, Mutano? – Ravena perguntou. - Não viu o que aconteceu ali na praia?

- Não, o quê? – e, após um instante de recordação. - Peraí. Por acaso você tá falando do chafariz?

- Meus poderes. – respondeu a adolescente, com amargura em cada entonação de sua voz. – Eu não devo... não posso sentir nada.

- Rae, que bobagem é essa? Claro que você pode!

            A empata esfregou as têmporas com os dedos, nervosa. Ela quase tinha se esquecido, da capacidade que o metamorfo tinha de ser irritante.

- Não, Mutano. Eu. Não. Posso. – Ela falou devagar, controlando-se para não acabar gritando. – Meus poderes se descontrolam sempre que eu sinto alguma coisa! E isso faz com que as coisas se quebrem, explodam ou derretam! Quer correr esse risco, de todo o dia poder se machucar, ou pior?

- Sem hesitar. – Ele respondeu meio surpreso, como se a resposta que dera fosse completamente óbvia.

            Ravena precisou respirar fundo, antes de responder. De fato, suprimir suas emoções era uma tarefa impossível, com o metamorfo por perto. Nesse exato instante, ela estava, ao mesmo tempo, furiosa e comovida com ele. Furiosa, por ele conseguir dizer uma burrice tão grande como a que acabara de dizer; e comovida, por ele proferir palavras... tão lindas assim.

- Mas eu não. Nunca me perdoaria se... – Ela começou a responder, mas, com um gesto, Mutano a interrompeu.

- Ravena, eu não faço você feliz? – Perguntou ele, que começava a ter dúvidas, sobre se esse papo de “não poder sentir” era mesmo a única razão para a empata rejeitá-lo.

            Mais uma vez, ela se viu forçada a encarar uma pergunta para a qual não estava preparada. Qual seria a verdadeira resposta, após o passado turbulento de ambos?

- Eu não sei o que é felicidade, Mutano. Não de verdade. – ela respondeu cautelosamente. – Mas... se for parecido com aquilo que você estava sentindo hoje de manhã... que estava sentindo ainda há pouco... – mais uma pausa: era possível até provar a tensão presente no ar. – Então sim, você me deixa muito feliz.

- Ravena, a gente pode dar um jeito... – disse o metamorfo, segurando as mãos da empata nas suas. – Aposto que a gente consegue superar essa...

            Dizer que a jovem não se sentiu tentada, diante da determinação daquele homem à sua frente, teria sido uma grande mentira. Mas ela precisava ser forte: por mais que quisesse ceder, não podia se arriscar a, um dia, vê-lo ferido ou pior, por sua causa.

- Desculpe, Mutano... mas eu não posso. – Respondeu ela, soltando as mãos dele e se afastando. Sentia que carregava todo o peso do mundo no coração, mas não podia se dar ao luxo de fraquejar.

            Magoado, o metamorfo viu a empata caminhando em direção à escadas, para longe dele. Então, era assim que ia ser? Mal havia começado, e já iria acabar?

- Você tá é fugindo, Ravena! – gritou ele, em parte por despeito, e em parte por desespero, mesmo. – E você só tá fazendo isso porque está com medo!

            Havia alguma coisa na voz dele, e na acusação de covardia, que a empata simplesmente não conseguiu engolir. Um instante depois, estava cara a cara com Mutano mais uma vez, respondendo no mesmo tom:

- Claro que eu tenho medo! Acha que foi simples tomar a decisão que acabei de tomar? Acha que eu gosto disso? Acha que é fácil viver sempre com medo de destruir tudo à minha volta? De ferir as pessoas próximas? Amigos?

- Mas Ravena. – a voz dele estava num tom muito mais macio agora. – Por acaso medo não é uma emoção, não?

            Ela já tinha sido atordoada antes. Explosões, quedas, rajadas de energia, impactos de todos os tipos, ataques mentais, tudo. Mas nada, absolutamente nada, jamais exercera tamanho impacto sobre ela. A empata ficou como que paralisada, incapaz até mesmo de respirar adequadamente, enquanto o metamorfo continuava a falar:

- Pô, Rae, você vive dizendo que não pode sentir, que seus poderes isso, que seus poderes aquilo... mas você sente do mesmo jeito! Aí fica morrendo de medo que alguma coisa exploda, e aí enterra tudo lá no fundo, finge que nada aconteceu, e não só fica acumulando tudo até quase ter uma crise, como faz tudo isso por causa de uma emoção que você mesma diz que não devia estar sentindo! Ou que deveria estar é controlando! Ou sei lá!

            Ok, a descrição feita pelo metamorfo era um pouco exagerada, mas ainda assim, essencialmente correta. Ou pelo menos, Ravena não conseguia encontrar um argumento para dizer que ele estava errado.

- Qual era aquele ditado mesmo? – Mutano parecia estar falando para si mesmo agora. – “Não terei medo. O medo é a morte da alma. O medo é o assassino pequeno que traz...” traz o quê mesmo? Obli... Obe... ah sim! “O medo é o assassino pequeno que traz a obliteração. Não permitirei que o medo passe através de mim ou por sobre mim. Aonde o medo passou nada restou. Apenas eu permaneço”. É, acho que é isso.

            E, pela segunda vez naqueles últimos cinco minutos, Ravena sentiu como se sua cabeça fosse um gongo atingido com muita força. Aquilo que o Titã verde acabara de recitar era a Litania Contra o Medo, que se encontrava no livro Duna, um calhamaço de mais de mil páginas. O fato de ele ter lido um livro como esse, sem figuras, com letras miúdas e uma leitura difícil, era algo que desafiava sua noção de normalidade. O que dizer então, do fato de ele ter lido com atenção, o bastante para se lembrar daquela passagem?

- Rae? - A voz do metamorfo arrancou-a de suas divagações.

- Hã? – respondeu ela, ainda atordoada.

- Você não tem nada a dizer, não?

- Eu... eu não sei... os monges sempre me ensinaram... Azar...

- Ravena, nem VOCÊ sabe direito o que é que esses seus poderem fazem. Aposto que a tal de Azar também não sabia com o que estava lidando.

- E daí?

- E daí que ela provavelmente deve ter decidido sacrificar a sua felicidade, a correr o risco de ver Trigon passeando aqui neste universo!

            A empata chegou a abrir a boca para protestar, mas calou-se. Isso era, de fato, a cara de uma decisão que Azar tomaria. Sem hesitar.

- Ravena, tudo o que eu peço é que você tente. – falou Mutano. – Você precisa sentir suas emoções se quiser controlá-las. Puxa, só um pouquinho a mais de cada vez, por que não?

            A adolescente nada respondeu, pensativa. De fato, aquilo que ele dissera fazia sentido... muito sentido. Mas seria realmente possível? Haveria alguma esperança para ela?

- É por isso que eu quis que você visse aqueles filmes, Rae. – continuou o metamorfo, envolvendo a empata sem seus braços. – Sabe, mesmo que não dê para controlar completamente, se você soltar só um pouquinho de cada vez, não tem problema, tem? Melhor que ficar prendendo tudo que nem panela de pressão...

            Ravena se aninhou no braços de seu colega. Agora, finalmente entendia o porquê de ele insistir tanto nesse assunto.

- Você está certo. – disse ela. – Estou com medo.

            Então Mutano segurou-a com mais força. Ele não permitiria que ela continuasse a se sentir assim.

- Se a gente trabalhar junto, Rae, consegue dar conta de qualquer coisa. – e então, em um tom de voz infinitamente mais sério. – De qualquer forma, eu te digo isto: não vou desistir de você, não importa o que aconteça.

            E foi nesse instante que a decisão de Ravena foi tomada. Se aquele homem, que a segurava nos braços, estava disposto a tudo por ela, se ele estava disposto a encarar todos os obstáculos que estivessem à frente... como ela poderia fazer menos?

- Eu vou tentar. – A empata falou cautelosamente, mas, na verdade, queria dizer que, fosse possível ou não, iria dar um jeito de conseguir.

            Ao ouvir essas palavras, Mutano quase... inflou. E extravazou a alegria com um abraço quase tão apertado quanto aqueles que Estelar costumava dispensar. Ravena estava quase sufocando, mas esse desconforto era mais do que compensado, pela quantidade maciça de felicidade que irradiava dele.

            Em breve, o aperto de urso relaxou. No exato momento em que a empata viu um rosto verde, aproximando-se do dela.

- Agora não, Mutano. – disse ela, afastando o rosto dele com ambas as mãos. – Preciso meditar antes de começar a sentir coisas sem perder o controle.

- Aw, Ravena...!

- Agora não, Mutano. – Repetiu a empata, empurrando-o com um pouco mais de firmeza.

- Só unzinho...! – O metamorfo insistiu, balançando as sobrancelhas. – Deixa, vai!

- Não.

- Aaah.

            Apesar dessa recusa, ambos voltaram de mãos dadas para o interior da Torre. Caminharam juntos até a porta do quarto da empata, onde ela se virou para se despedir até a manhã seguinte.

            Não teve a chance de fazer isso. Antes de proferir uma única palavra, o metamorfo, sem qualquer aviso, já a puxara para junto de si mais uma vez, e a beijava com uma paixão ainda mais intensa do que na última vez. E, enquanto sentia seu corpo pressionado contra o dele, e dedos passeando por seu cabelo, algo... diferente... aconteceu. Não, não era a presa que arranhava levemente seu lábio inferior. Tampouco era a estática, espalhando arrepios em todo seu corpo. Não era nem mesmo aquela sensação de estar flutuando, como se não estivesse realmente ali.

            Naquele instante, Ravena sentiu como se tivesse ocorrido uma explosão de... cor-de-rosa.

            Mesmo de olhos fechados, ela pôde ver, por um instante, uma luz cor-de-rosa ocupar sua vista.

            E, mesmo sabendo ser impossível, poderia jurar que sentira o gosto da cor rosa. O cheiro dessa cor.

- Eu não tinha te dito que hoje não? – perguntou a adolescente alguns minutos depois, quando eles finalmente se soltaram. Tinha tentado, e falhado miseravelmente, em conter um súbito impulso, de ficar sorrindo que nem boba. – Alguém podia ter nos visto!

- A culpa é sua. – respondeu Mutano, descarado. – Quem mandou ser tão linda? Eu tive que roubar um beijinho...

- Você não tem jeito, sabia?

- Eu sei! – Respondeu ele, com um sorriso que deixava todos os dentes à mostra. - Não é o máximo?


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