Beastman escrita por Cicero Amaral


Capítulo 19
Capítulo 19




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/19747/chapter/19

Teen Titans não me pertence. Se fosse esse o caso, eu ficaria de pernas para o ar o dia todo... tirando talvez nas horas de escrever esta fic.

 

 

            Praça Central de Jump City

            Uma praça normal, com gramados e árvores, brinquedos para as crianças pequenas, e bancos para os idosos. Poderia se passar perfeitamente por qualquer outra das praças existentes no mundo, salvo por um detalhe: devido à sua proximidade para com a Prefeitura e demais edifícios cívicos, tal como a Biblioteca Municipal, ela nunca deixava de receber cuidados da Administração Pública. Seus bancos estavam sempre pintados, o chão, limpo, e as árvores, podadas.

            E, em uma das mesas de pedra dela, feitas para que as pessoas pudessem jogar xadrez ou damas, se desenrolava uma cena... peculiar.

            Um cavalo branco acabava de ser movido por cima de uma fileira de peões, ameaçando o centro do tabuleiro. O jogador que o comandava era um homem idoso, de cabelos brancos e meio gordo. Sua testa estava franzida e o rosto tinha uma expressão severa. Nem por um segundo, seus olhos se desviavam do tabuleiro.

            Do outro lado, um peão preto fez seu movimento inicial, avançando duas casas, colocando em perigo o mesmo ponto que o cavalo branco pretendia dominar. Era um adolescente que tinha feito esse movimento, e ele usava um uniforme preto e roxo, que contrastava com a cor verde de sua pele, cabelo e olhos. Assim como seu adversário, o garoto estava imóvel, com o olhar fixo no tabuleiro onde as peças de xadrez estavam dispostas.

            Para os passantes casuais, a peculiaridade da cena era o fato de um velho estar jogando xadrez com um garoto verde. E estavam bastante certos, pois não é todo o dia que se vêem pessoas de cores exóticas passeando pelas ruas. No entanto, para aqueles que freqüentavam aquela praça, era outra coisa que tornava a cena diferente. Não era a diferença de idade entre os jogadores. Não era o fato de o mais jovem deles ser Mutano, herói local e membro dos Jovens Titãs. Não... ver os dois debruçados sobre aquela mesa era um fato que vinha se repetindo diariamente, durante os últimos quatro meses.

            Na verdade, a perplexidade dos freqüentadores da Praça Central de Jump City tinha duas razões: a postura do jogador mais velho... e o silêncio do mais novo.

            Um número considerável de pessoas ali conhecia o Sr. Smith. E a primeira coisa que chamava a atenção era o sorriso esquisito dele. Era algo... difícil de definir. Talvez porque fosse sincero. Talvez porque desafiasse o estereótipo de “velho rabugento”, ou sabe-se lá o quê. No entanto, em uma coisa todos concordavam: nunca, jamais, um deles tinha visto o Sr. Smith SEM o seu sorriso.

            Até hoje. Até agora.

            Da mesma forma que as pessoas se sentiam... confusas... ante ao sorriso do velho, elas agora estavam apreensivas com a ausência dele. O quê, de todas as coisas, poderia ser tão grave, a ponto de deixá-lo parecido com um juiz, prestes a proferir uma sentença?

            O mesmo se aplicava a seu jovem amigo. Ninguém ali nunca tinha visto o Titã verde de boca calada. O silêncio repentino, em alguém que sempre estava se mexendo, falando alto, balançando os braços, era uma coisa anormal... errada.

            As peças continuaram a ser posicionadas no tabuleiro, até que chegou o momento em que não era mais possível movê-las. Como os exércitos que se encontram, e os soldados gritam insultos para os do outro lado, enquanto reúnem coragem para o horror da batalha.

            Os dois jogadores analisavam cuidadosamente as opções que tinham à sua frente. Quais peças deveriam ser tomadas primeiro? E quais peças deveriam ser sacrificadas? Como se antecipar aos movimentos do adversário?

            Um longo silêncio se instaurou, permeado de tensão, cálculos e dúvidas. O Sr. Smith chegou mesmo a ensaiar um movimento, mas, repentinamente, pousou o cavalo de volta em seu lugar.

- Sabe, garoto... tem uma palavra que define perfeitamente a situação na qual você se encontra agora. – Disse o idoso, olhando para seu jovem amigo.

            A reação de Mutano foi levantar o olhar, interessado. Antes de começarem a jogar, ele tinha explicado a seu idoso amigo o que tinha acontecido no cinema dias antes, na esperança de receber alguma ajuda ou conselho para seu drama. Uma palavra que resumia tudo? Eis uma coisa que valia a pena saber.

- Pequepê. – Foi a palavra que saiu da boca do velho.

- O-o quê? – O metamorfo julgara ter ouvido mal.

- Pequepê. – Repetiu o Sr. Smith, como se aquilo fosse óbvio.

- Pê... que... pê?!? Co-como assim? – Mutano estava surpreso demais para poder falar direito. – O que... o quê quer dizer com isso?

- Pequepê? É uma sigla, ora bolas. Veja bem, significa...

- Eu SEI o que significa! – interrompeu o Titã verde. – Eu só não... só não sei... entendo... argh!

            Sem saber o que dizer, Mutano calou-se. Tanto ele quanto o Sr. Smith permaneceram sentados em seus lugares, sem falar nada, pelo que pareceu ser uma eternidade. O metamorfo se perguntava o que o homem à sua frente queria realmente dizer: seria a sua situação tão desesperadora assim?

- Sabe, garoto, desde o momento em que te deixei na biblioteca, eu sabia que você iria me procurar de novo, eventualmente. – disse o velho, suspirando. – Mas esperava que esse “eventualmente” fosse levar ao menos uma semana, e que você não se esquecesse da lição mais básica que te dei.

- Lição básica? Cara, eu não esqueci de nada! Eu fiz tudo do mesmo jeito que você disse que devia! – Indignou-se o Titã verde, convencido de que estava ouvindo uma acusação injusta.

- Mutano, Mutano... – o Sr. Smith respondeu, paciente. – Lembra-se do dia em que nos encontramos? (Você esbarrou em mim perto daquela árvore, salvo me engano). Lembra-se da primeira coisa que te ensinei naquele dia?

            O metamorfo pensou um pouco.

- O poder da cultura? – O mais jovem dos Titãs jamais iria se esquecer do que tinha visto naquela tarde.

- Oooops. – O velho percebeu que tinha escolhido o exemplo errado.

- OK, a SEGUNDA coisa que te ensinei naquele dia. – Corrigiu ele, enquanto pensava “Saída pela esquerda”.

- Essa é fácil. – respondeu Mutano, sem sequer pestanejar. – tenho que fazer a garota se sentir segura.

- Repita.

- Tenho que fazer a garota se sentir segura.

- Mais uma vez.

- Ela tem que se sentir segura.

- De novo.

- Fazer ela se sentir segura. – Repetiu o metamorfo, já meio irritado.

- Como é que é? – O Sr. Smith estava com a mão dobrada em forma de concha, encostada à orelha, como quem precisa de auxílio para ouvir.

- Segura!!! – Mutano estava falando bem alto agora.

- EU NÃO OUVI!

- SEGURA! – O garoto verde gritou a plenos pulmões. – SEGURA, SEGURA, SEGURA! EU TENHO QUE FAZER ELA SE SENTIR SEGURA!

Então, o homem mais velho se recostou calmamente em seu banco, e perguntou de forma inocente, como se não tivesse outra emoção além de uma leve (bem leve) curiosidade:

- Então me responda, jovem. Você acha que, ao deixar sua paquera sozinha para falar com aquele fã-clube, a fez se sentir mais ou menos segura?

            Um bate-estacas de oito toneladas não produziria o mesmo efeito que essa lógica. Mutano quase pôde sentir o cérebro se arrebentando, à medida que absorvia essas palavras.

- Mas... mas eu... eu só queria... só tava tentando... – Ele gaguejou indeciso, de orelhas caídas, incapaz de articular uma frase completa.

- Sim, eu sei. – interrompeu o velho, que agora parecia exausto. – Você só foi até elas pedir para que te deixassem em paz, que queria dedicar atenção só para a sua princesa (você já me disse isso, não disse?). Mas por acaso parou para pensar no que se passava na cabeça DELA?

            A forma como o metamorfo arregalou os olhos deu ao Sr. Smith a resposta que ele esperava. Ou seja, não. Evidente que não.

- Veja bem, Mutano... você foi até o fã-clube tentar garantir que pudesse ficar a sós com sua garota. O problema aqui não é o que você fez, mas o que ela PENSA que você fez.

            O Titã mais novo permaneceu calado, enquanto o homem à sua frente recuperava o fôlego.

- Meu caro, a visão que ela teve, foi de você flertando com um bando de desfrutáveis (e o que é pior), MAIS bonitas do que ela, MAIS cheirosas do que ela, mais... hmmm... (qual é a palavra mesmo?) – Ele fez um gesto com as mãos, tentando indicar “abundância carnal”. - ... Bem, você sabe. Ora, diante de uma cena dessas, evidente que ela ia se sentir insegura!

            “Flertando” e “desfrutáveis”, duas palavras que, para o metamorfo, já deviam ser velhas na época do faraó Ramsés II. Mesmo assim, ele guardou para si essa consideração, pois tinha algo muito mais importante para falar agora.

- Mas cara! A Ra... ela não é uma menina como outra qualquer! Ela é, tipo, toda séria, quase nunca dá um sorriso, e sempre, SEMPRE pensa antes de agir! Puxa, ela nem... nem lê aquelas... revistas de menina que a gente vê penduradas nas bancas! – Mutano tinha colocado mais ênfase na última frase, como se ela, por si só, fosse explicação o suficiente.

            E então o Sr. Smith fez o bate-estacas cair novamente:

- E isso a torna menos mulher, por acaso?

            O pobre garoto abriu a boca para falar, mas descobriu que não conseguia mais fechá-la. Descobriu também que não tinha o que responder, ante ao fato irrefutável que lhe fora apresentado. Desanimado, não conseguiu evitar baixar a cabeça, a ponto de apoiá-la na nessa de pedra da praça, bagunçando as peças do xadrez.

- Mas o que realmente me intriga. – considerou o Sr. Smith após alguns momentos. – É a extensão e intensidade da reação de sua amiga.

- Como assim? – Perguntou Mutano, confuso. O fiasco no cinema não tinha acontecido porque ele deixara Ravena ficar insegura?

- Sejamos justos, garoto. Você cometeu um erro naquele cinema, é verdade, mas isso NEM DE LONGE justifica o comportamento posterior dela. Eu esperaria que ela ficasse emburrada, e que você tivesse que manter a mão-boba dentro do bolso, mas isso... eu nunca tinha visto nada parecido com isso antes.

            A visão do velho apreensivo, com o queixo apoiado nas mãos, o olhar perdido em algum ponto do tabuleiro, fez o pequeno facho de esperança que o metamorfo ainda tinha tremeluzir perigosamente.

- Então acabou? É isso o que me resta fazer agora? Desistir? – Perguntou o Titã vede, amargurado.

            Essa pergunta fez o homem mais velho desviar o olhar para ele. Por um momento, pensou estar diante da mesma criança confusa e perdida, com quem tinha trombado meses antes.

- Mutano. – O tom de voz do Sr. Smith era mortalmente sério. – Nada, absolutamente NADA do que eu disser aqui, tem valor, diante da resposta que você vai me dar agora. Você QUER desistir?

- Não. – Não havia qualquer sinal de dúvida ou hesitação na resposta.

- Então pronto. Se a sua decisão já foi tomada, que dúvida ainda pode restar?

- É que... – o metamorfo estava revelando seus temores. – Acho que, na verdade... não vai adiantar nada... depois do que aconteceu lá naquele cinema... parece que ela também tomou a decisão dela... né?

            O Sr. Smith pensou um pouco. Normalmente, ele preferiria deixar Mutano descobrir essa informação sozinho, mas, por outro lado, a situação por ele descrita tinha muito pouco de “normal”. E, além disso - pensou ele – Se tivessem me dito isso quando eu tinha 16 anos, teriam me poupado tanta dor-de-cabeça...

- Olha, garoto... tem UMA coisa que eu posso te dizer com cem por cento de certeza. – e, após ver que tinha chamado a atenção de seu jovem amigo. – Aí tem.

- Tem o quê? – Às vezes, Mutano se perguntava se, quando ficasse velho, ia acabar pegando esse hábito chato de falar por charadas.

- Essa garota de quem você tanto fala... bom, não posso precisar, mas ALGUMA COISA ela sente por você. – Disse o velho, cautelosamente.

- JURA??? – empolgado, o metamorfo saltou em cima da mesa. – CARA! CÊ TÁ FALANDO SÉRIO???

            O Sr. Smith meramente fez um gesto, indicando ao garoto verde que se sentasse novamente. Precisou esperar uns bons cinco minutos, até que ele finalmente se acalmasse e obedecesse.

- Olha, rapaz, quando uma menina não está a fim, quando ela realmente não quer nada com você, ela deixa isso bem claro. Ela te dispensa logo de uma vez, te manda... (qual é a palavra?) passar... pastar...

- Passear. – Completou Mutano.

- Exatamente. Se a sua Ra-sei-lá-o-quê (Raquel? Rasmira? Não entendo porque você não me diz o nome dela...) tivesse realmente te rejeitado, COM CERTEZA não aceitaria seu convite para ir ao cinema. Ela teria feito qualquer coisa, inventado qualquer desculpa, mas não iria.

- Mas então por que ela...? Questionou o adolescente, querendo uma explicação para a reação de Ravena.

- Não tenho certeza absoluta. – foi a resposta. – Mas acho que ela está passando por algum tipo de dilema, ou está sofrendo algum tipo de pressão em casa. Talvez o pai da moça (ou talvez a mãe) não aprove um namoro com você, ou talvez sejam as amigas colocando minhocas na cabeça dela... não sei.

            Isso, raciocinou o Titã mais novo, fazia sentido. Ele conhecia muito pouco do passado da empata, mas sabia que o que de mais próximo que ela tinha de uma família (salvo os Titãs, claro), eram os monges de Azarath e a tal da Azar, que a tinham criado e ensinado a controlar seus poderes. Ele não tinha certeza, evidentemente, mas lhe parecia bastante provável que eles não gostassem de ver Ravena sentindo coisas... qualquer coisa. Pelo menos, agora ele tinha uma explicação para o comportamento dela...

- Mas como é que eu vou saber que toda aquela briga, na verdade, não era ela me dando um fora? – A dúvida manifestou-se através dessa pergunta repentina.

- Mutano, disso você pode ter certeza: a gente SABE quando foi dispensado. Se tudo aconteceu da maneira como você me disse...

- Aconteceu. – Confirmou o metamorfo. Ele tinha contado todo o ocorrido para seu amigo mais velho, e tinha conseguido se manter fiel aos fatos, descrevendo cada detalhe exatamente conforme o ocorrido. Não fora fácil manter a cabeça fria ao falar, mas isso era algo que precisara ser feito.

- ... Então repito: aí tem. Se ela tivesse feito tudo aquilo só para te fazer pedir as contas, você não estaria aqui agora. Sim, estaria magoado, estaria com raiva, decepcionado, etc. Mas definitivamente não estaria com dúvidas. Além do mais, pelo que você disse, teve uns momentos em que ela mais parecia estar angustiada, não nervosa. O que foi que ela disse mesmo? “Por que você está fazendo isso comigo?” Isso não me parece atitude de menina que quer ver alguém pelas costas.

            Mutano, à medida que o Sr. Smith falava, sentia a chama da esperança se acender novamente em seu peito: trêmula e incerta no início, mas agora, grande e poderosa como um incêndio florestal.

- Acha mesmo? – A voz do adolescente estava pastosa: ele não conseguia desfazer o sorriso que estava estampado em seu rosto.

- Não garanto nada, mas sim, acho que... – O idoso tentou responder, mas calou-se ao ver se amigo dançando de alegria ali do lado, alheio a tudo que se passava à sua volta.

            Ele observou-o por alguns instantes. Era-lhe prazeroso ver a alegria de seu jovem amigo; conhecia-o bem, e sabia que era um bom rapaz. Mas, por essa mesma razão, não podia permitir que ele criasse expectativas elevadas demais. Ainda restava algo a ser dito. Algo importante.

- OK, garoto, chega de cantoria. – Chamou o Sr. Smith pela primeira vez.

            E não obteve resposta.

- Ainda não acabamos a conversa, jovem. – Ele tentou pela segunda vez.

            Sem sucesso.

- Mutano! – Gritou o velho, tentando, pela terceira vez, chamar a atenção do Titã verde.

            Mais tarde, ele se perguntaria o porquê de ouvir o canto de grilos, em plena luz do dia.

            Suspirando, O Sr. Smith esticou o braço, para alcançar sua melhor aliada contra a falta de atenção do Mutano: a Disciplina.

            WHACK! WHACK! WHACK!

- Ai! Ai! Ai! – protestou o metamorfo, esfregando o cocoruto doído. – Cara! Será que dá para parar de me bater com essa vara!

            A resposta que obteve foi a Disciplina apontando para o banco, convidando-o a sentar-se, coisa que ele fez sem demora.

- Garoto, você está se esquecendo de um detalhe essencial. Um relacionamento é um trabalho para duas pessoas. – declarou o homem mais velho. – O que quer que esteja incomodando sua garota (não importa se é o pai, a mãe, as amigas, ou qualquer outra coisa), ELA é que vai precisar decidir se te acha mais importante que tudo isso, ou não. Você não pode carregar tudo nas costas.

- Alguma coisa ela tem que fazer por você.

 

-----------------------------------------\\---------------------------------------------------\\-----------

 

- Preciso fazer alguma coisa. – pensou Ravena. – Mas o quê?

            Já fazia várias horas desde que ela deixara Nevermore, e a vasta maioria desse tempo fora gasta com meditação intensa. Esforço necessário, primeiro porque a empata precisaria de calma e concentração para fazer o que pretendia, e segundo, porque no mundo real, suas emoções poderiam causar estragos, se não fossem devidamente controladas.

            O grande dilema que a empata enfrentava não era sobre O QUÊ fazer, mas COMO fazer. Para que, talvez, seu relacionamento com o membro mais novo da equipe voltasse ao normal, ela teria que fazer algo. E, provavelmente, esse “algo” teria que ser excepcionalmente grande, ou surpreendente. E Ravena não fazia idéia de como realizar nada disso: se havia uma habilidade que lhe faltava, era traquejo social.

            A empata ainda tinha alguma dificuldade em... entender o que estava fazendo. Durante quase todo o seu tempo de permanência com os Jovens Titãs, ela considerara Mutano como pouca coisa além de uma fonte incessante de interrupções, barulho e piadas sem graça. Porém, devido a eventos recentes, a empata descobrira que, diferente do que tinha imaginado por anos a fio, NÃO desejava que o metamorfo a “deixasse em paz”. Muito pelo contrário.

            O problema é que, devido ao... erro... cometido por ela na noite anterior, era pouco provável que o Titã verde aceitasse sequer olhar em sua direção novamente. E isso, Ravena detestava admitir, a preocupava. Na verdade, ela não conseguia nem suportar essa idéia. A mera... possibilidade... de ele decidir voltar para onde quer que tenha estado na última madrugada... a enchia de...

- Não. Não, isso não vai acontecer novamente. Eu não vou deixar. – Pensou Ravena, esfregando uma mão na outra, como se não soubesse o que fazer com elas.

            Qual a razão para a empata pensar assim? Era algo que a acompanhava há várias semanas. Era uma sensação. Um... sentimento.

            Poderoso o bastante para fazê-la realmente desejar a companhia do metamorfo.

            Capaz de fazer seu coração se acelerar, cada vez que se lembrava das duas últimas vezes que ele batera à sua porta. Da intensidade com que ele a olhara, em ambas as ocasiões. E do beijo que, por medo e insegurança de ambos, quase... apenas quase... acontecera.

            Enfim, era um sentimento forte o bastante para compelir Ravena, mesmo sem compreendê-lo, mesmo sem ter certeza do que aquilo poderia ser, a fazer algo que ninguém, ninguém, jamais esperaria. Fazer o que fosse necessário para que Mutano não desistisse dela.

            Só que, a empata constatou pela décima vez naquela tarde, ela não tinha a menor idéia de algo que pudesse fazer. Algo que funcionasse.

            E é por isso que Ravena estava neste lugar agora: o quarto cor-de-rosa de Estelar.

            Um lugar onde Ravena tinha estado muito poucas vezes, e nunca antes por vontade própria. Mas agora, porém, ela não tinha muita escolha. Havia uma série de objetos que a empata precisava, e ela sabia que podia encontrá-los aqui. Sentia a consciência um pouco pesada por invadir o quarto de sua amiga sem permissão, mas, por outro lado, tinha absoluta certeza de que a tamaraneana não se importaria. Pelo menos, não se soubesse a razão pela qual estava aqui.

            Examinando o ambiente à sua volta, a jovem conseguiu localizar aquilo que procurava. No alto de um dos armários, estava uma grande cesta de vime, um dos poucos objetos cuja cor contrastava com o rosa onipresente.

            Usando seus poderes, a empata baixou a cesta até a altura de seus olhos, E foi com uma careta de desgosto, que ela retirou três dos objetos ali guardados, antes de devolver a cesta a seu devido lugar.

- Ainda não acredito que estou fazendo isso... – Resmungou ela ao se teleportar de volta para seu próprio quarto, com sua carga muito bem escondida por baixo da capa.

            Demorou um bom tempo até que Ravena criasse coragem para olhar novamente para os três itens que tinha tirado do quarto de estelar, e agora se encontravam em cima de sua cama. Três revistas.

- É bom que isto valha a pena. – Disse a empata, olhando cautelosamente para os primeiro volume, como se ele de repente pudesse saltar e mordê-la. Em sua capa, estava escrito:

BELEZA:

Idéias de cabelo e maquiagem.

            Ela quase arremessou a revista longe. Quase.

            Passou então para o segundo volume, esperando que talvez, e apenas talvez, não lhe provocasse a mesma náusea que o primeiro. Nesta estava gravado, em letra estilizada:

PLUMAS + PAETÊS= LUXO

            Ela quase se perguntou se não era melhor desistir de tudo naquele mesmo instante. Quase.

            Sacudindo a cabeça, como que para se livrar da visão que acabara de ter, ravena largou a revista entre as outras duas, e dirigiu seu olhar para a terceira. Viu então que ela não era diferente das demais; a capa tinha um desenho que só podia pertencer a um conto de fadas, e o título não fazia por menos:

Eu, meu Príncipe e um Castelo.

            A empata quase achou essa revista tão ruim quanto as outras duas.

            Quase.

 

------------------------------------\\------------------------------------------\\-------------------------

 

            Crepúsculo.

            O Sol acabou de se esconder sob o horizonte, deixando para trás um céu com cores únicas. A leste, um púrpura com tons gradativamente mais escuros, nos quais as primeiras estrelas da noite exibiam seu brilho, timidamente. E a oeste, dominava o laranja-avermelhado que sempre seguia o pôr-do-sol, misturando-se às águas do oceano, fazendo que o mesmo parecesse irromper em chamas.

            A Torre Titã destacava-se contra as últimas luzes naturais do dia, um ponto de refer6encia que ninguém jamais poderia confundir.

            Incluindo o grande pássaro que pousava em seu topo agora. Um enorme condor, com uma envergadura de quase três metros, acabava de dobrar suas asas. O animal então pareceu encolher, retorcendo-se sobre si mesmo, para em seguida esticar-se, estabilizando-se na forma de um rapaz.

            Mutano permaneceu exatamente onde pousara, olhando para lugar algum, até que a noite estendesse seu manto negro sobre Jump City. Estava ciente do quanto a última forma que usara lembrava um abutre, e isso lhe parecia estranhamente adequado. Porque seu ânimo agora se parecia muito com o de um pássaro comedor de carniça.

            Lembrou-se do ânimo com que tinha deixado a praça central, e o porquê dele se esvair como água da chuva.

- Alguma coisa ela tem que fazer por você.

            O metamorfo precisara de quase todo o vôo, do centro da cidade até a Torre, para absorver essa mensagem. E ela não era nada boa. Significava que, não importa o que ele fizesse, não importa o que ele... e até mesmo ela... sentisse, nada disso adiantaria, a menos que ela... Ravena... decidisse fazer algo por um relacionamento... por ele.

            E aí é que o problema estava. Mesmo que a empata, TALVEZ, sentisse alguma coisa por ele... iria ela aceitar esse sentimento, e, ainda mais importante, agir de acordo com ele?

- Heh. Aposto como é capaz dela meditar uma semana inteira e, no final das contas, dizer que é melhor ter uma dor-de-dente... – Mutano falou baixinho, para ninguém em particular.

- Não acha que está sendo um pouco injusto, amigo?

            O metamorfo ouviu claramente a voz de estelar ecoar atrás dele, assim como tinha percebido sua aproximação. A princesa alienígena tinha um cheiro diferente de qualquer coisa que ele já tivesse sentido antes.

            No entanto, ele não se virou, e nem lhe respondeu.

- Acha mesmo que nossa amiga Ravena preferiria dor física à sua companhia? – Perguntou Estelar, sentando-se na beirada da Torre.

            Mutano sentou-se ao lado da tamaraneana, mais ainda evitando olhar para ela.

- Tenho essa impressão, às vezes.

- E isso alguma vez mudou a forma como você a vê, amigo Mutano?

- Jamais. – respondeu o Titã verde. E, após um momento, ele suspirou. – Há quanto tempo você está sabendo?

            A princesa tamaraneana não respondeu imediatamente. Em vez disso, levantou os olhos para o céu, onde já era possível enxergar a miríade de estrelas noturnas.

- Em meu planeta, existe uma palavra. – disse ela. – Uma palavra para quando se busca a felicidade de outrem, independente de dificuldades ou obstáculos. Você sabe para qual palavra de seu idioma ela é traduzida?

            Mutano não respondeu à pergunta. Não precisava. Em vez disso, contentou-se em manter o olhar fixo em algum ponto perdido no horizonte.

- Amigo Mutano, Ravena realmente gosta de você e valoriza sua amizade. Muito, muito mais do que aparenta.

- ... Mesmo?

- Jurei jamais revelar a conversa que nós duas tivemos algum tempo atrás.

- Ah.

- Mas, por outro lado. - disse Estelar, com um sorriso maroto no rosto. – Não fiz nenhum juramento que me impeça de revelar as conclusões que tirei a partir daquela conversa...

            Os dois continuaram no telhado por um longo tempo, conversando em voz baixa. Apenas depois, muito depois, é que soaram palavras que realmente poderiam ser ouvidas:

- Então... – Mutano perguntou para sua amiga. – Então ela REALMENTE sente alguma coisa?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Beastman" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.