Tormenta De Máquinas escrita por davifmayer


Capítulo 5
Capítulo 5 Verdades




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/190800/chapter/5

“A liberdade não tem preço, a mera possibilidade de obtê-la já vale a pena.” Isaac Asimov

5° Verdades

            Um jovem de pele escura e de modos rápidos e vigorosos observava o monitor com um sorriso nos lábios carnudos. Ele era alto, ombros largos, com um cabelo escuro bem aparado e olhos castanhos esverdeados. Vestia um uniforme negro, com um emblema no peito e no braço: um caça de metal enfiada num crânio humano.

            No monitor, ele via uma jovem numa câmara escura sentada numa poltrona de uma aeronave. Diante dela, uma enorme tela se estendia mostrando uma paisagem desértica avançar como se sobrevoasse sobre ela. Entre suas coxas, uma haste metálica do tamanho do seu antebraço se pronunciava, e nele alguns botões vermelhos. Esta, ela segurava com as mãos e controlava o vôo que se descortinava pela tela. Estava na sala de treinamento de pilotagem de avião.

            Haviam se passado oito meses desde que os refugiados de Atlantika chegaram à cidadela de Éden.

            Eddard e Antônio foram para a forja. Este último tentou novos contatos com Melissandra, procurando uma reconciliação, pelo qual ela rechaçou todas as aproximações dele. Já a garota passou os últimos meses treinando para ser um “ases”, guerreiros do ar, sobre a tutela de Jabez, filho de Abraão. O regente mandou o filho ensinar Melissandra a pilotar. Desde então se tornaram próximos e ela, avidamente, abraçou os treinos e os desafios, também como forma de esquecer as tristezas.

            Jabez falou num microfone:

            - Muito bem, cabelo de alga. Vou colocar as vespas contra você. Não me decepcione ou vou te dar um cascudo.

            Do monitor, o instrutor viu a aluna acenar positivamente com a cabeça.

            - Ótimo. – disse ele e digitou algumas teclas no teclado a sua frente. – hora da diversão!

            ***

            Duas horas depois do treino saiu uma Melissandra de riso radiante. Olhou para seu instrutor, que estava diante dela com os braços cruzados sobre o peito musculoso.

            - Muito bom. Conseguiu noventa e oito por cento de efetividade. Mas não é em testes como esse que deve provar seu valor. Amanha é o dia da prova e você tem tudo para passar com louvor.

            - Sim senhor.

            - Ora, cabelo de algas. Não me chame de senhor. Lembro-me bem que fez aniversário no mês passado. Não sou tão velho quanto você.

            - Obrigada por tudo senhor.

            - Faz isso para me provocar, né? – e deu um cascudo nela.

            Ela sorriu com as duas mãos na cabeça dolorida.

            - Vamos comer alguma coisa. Colocar um pouco de carne nesses seus ossos secos.

            - Ossos secos? – esbravejou ela gargalhando. – tome isso, e isso...

            E deu socos no ombro de Jabez e este correu para o refeitório.

            Chegaram ao refeitório às gargalhadas, empurrando um ao outro. Do outro lado, Antônio observou os dois com olhar sério. Baixou a cabeça e voltou a comer sua sopa. Melissandra parou de brincar ao ver seu antigo companheiro. Triste e isolado. As conversas e diversões das outras pessoas não pareciam afetá-lo. Das vezes que tentara conversar com ela, ela o cortara ou evitava conversas desnecessárias. Não passavam de estranhos. Contundo, toda a noite sentia os olhos azuis de Antônio sobre si, sobre o seu coração, como uma paixão reprimida. Sentiu um novo cascudo dado por Jabez e ela acordou do devaneio.

            - Sempre fica assim quando vê o seu amorzinho. – brincou ele apertando o nariz dela.

            - Sai! – ela o empurrou de leve. – e ele não é meu amorzinho.

            - Ora. Todo mundo percebeu como você olha para ele... Parece que tudo desaparece ao seu redor.

            E era mesmo... Pensou Melissandra cingindo as sobrancelhas. Ela riu contrafeita.

            - Vamos comer logo. O que falta é juízo em sua cabeça.

            Antônio terminou sua refeição, levou o prato para uma mesa onde tinha uma pilha de pratos sujos e desceu pelo elevador manual. À medida que descia, aprofundando-se mais na montanha, a temperatura aumentava. Quando as portas subiram com um pequeno estrondo, ele viu luzes amarelas dançarem sobre as paredes. Entrou na forjaria escutando sons de martelos contra metais, metais vivos de fogo sendo despejados na água a chiar, emitindo fumaças quentes. Chegou numa bigorna de metal, seu local de trabalho, e sentou-se num banco de madeira. Com um pano sujo, limpou a testa e ficou a contemplar o fogo no forno à frente. O amarelo vivo e selvagem a lamber o ar com uma fúria inconstante.

            - Está muito pensativo esses dias, garoto. – disse uma voz branda e profunda.

            - O que esperava velho? A mulher que eu amo fica em cima daquele cara como uma abelha na colméia. Ela até voltou a sorrir...

            - Ora... Não se deve abater por isso. – Eddard puxou uma cadeira e sentou.

            Antônio levantou os olhos para ele e o encarou. Por mais que visse, ainda não se acostumara com a visão dele sem a capa.

            Eddard era máquina do peito esquerdo até a mão esquerda. Do antebraço até a mão direita, idem. Um dos olhos fora substituído por uma chapa metálica contornando praticamente o lado da cabeça toda, substituindo os ossos que perdera. Do que sobrou de pele, cicatrizes cinzas e vermelhas horrendas a marcar o corpo bronzeado e definido. Os cabelos negros que sobrou na cabeça caiam sobre o único olho azul, frio e metódico. Era feio e difícil de continuar a ver por muito tempo.

            Antônio baixou o rosto.

            Eddard cruzou os braços e o encarou em silêncio por um momento. Até que falou:

            - Quero contar minha historia, Tony.

            Tony voltou a olhar o velho enfiado em partes robóticas. O laranja do fogo refletia o metal negro que o revestia. Olhos curiosos, o jovem se inclinou em direção ao velho, para escutá-lo melhor e não perder nenhuma informação.

            - Sinto que esse meu corpo não durará muito. Não posso guardar esse terrível segredo comigo. Enquanto viver, prefiro que não compartilhe com mais ninguém o que será dito aqui. Quando morrer, o ódio deles me seguirá até o tumulo. Assim eu acho...

            Ele tirou uma foto colorida e amarrotada de tanto dobrar e entregou ao seu ajudante. Este pegou e observou. Um casal sorrindo e um pequeno jovem na frente deles. O homem de terno e gravata, a mulher com um lindo vestido lilás. Ela estava grávida, não mais que seis meses. O homem depositava uma mão no ombro do garoto, também sorridente, roupa social e gravata.

            - Eu, minha esposa, o Usurpador e você.

            Aquilo foi um soco no estômago de Antônio. O chão pareceu desaparecer sobre os seus pés, e um tênue dedilhar frio parecia massagear suas tripas.

            - O que disse? – perguntou Antônio não acreditando.

            - Foi isso mesmo que ouviu. Com todas as letras. – falou um envergonhado Eddard, olhando para o chão.

            Antônio apenas o encarava. Uma vontade súbita de agarrá-lo e enche-lo de socos. Mas estava estranhamente calmo. Devolveu a foto e aguardou que o velho prosseguisse.

            - Era dono de uma das indústrias mais promissoras do mundo. A indústria bélica. Aonde houvesse uma guerra em algum continente, lá estava o nome de nossa família “Indústrias Stark.” Exércitos de vários países nos procuravam em busca de novidades e eu, com o meu intelecto, forjava armas cada vez mais poderosas, que matavam centenas com apenas um apertar de botão. Era feliz. As conseqüências dos meus atos ainda não tinham chegado a mim, de fato.

            O ser humano por natureza é feito de sentimentos conflitantes, é feito de ódio, amor, vingança, maldade, bondade... Tantos sentimentos que se confundem entre si. E, através disso, obtinha um lucro exorbitante ante a fraqueza e as desgraças da humanidade. Minha fortuna foi manipulada e construída em cima de muito sangue inocente, fazendo guerras e destruindo a paz. A paz era prejuízo para mim e minhas industrias, que se espalhavam pelo globo monopolizando a guerra.

            Eddard respirou fundo e continuou:

            Meu primogênito, Ricco Stark era tão inteligente quanto eu. Com sua geniosidade, criamos mais armas de tecnologia avançada, superando até as minhas. Seu lar era o laboratório, seus amigos eram os robôs que criava. O contato com os familiares e amigos desapareceu, e ele vivia para o trabalho e para os I.A’s. Inteligência Artificial. Achei aquilo notável, e não via, ou não queria ver, no que meu filho estava se transformando.

            Quando ele completou dezoito anos, já era uma mente brilhante no mundo acadêmico. Uma mente brilhante cheia de maldade.

            Liz Stark descobriu a gravidez. Foi a minha felicidade renovada. Viajamos para o interior dos Estados Unidos e deixei as Indústrias Stark na mão do meu herdeiro. Não sabia o que esperava ainda, mas foi tão rápido que ninguém esperou e ninguém superou o primeiro ataque maciço das vespas metálicas e os caranguejos espinhentos. Um ataque coordenando e perfeito que neutralizou todas as defesas do exercito americano e o deixou subjugado em poucos meses. Digno da genialidade de Ricco Stark. Ele havia criado a sua I.A. mais poderosa e longe de erros. A Ômega. Ela tinha controle sobre as principais tecnologias, coordenava os ataques, averiguava estatísticas de pericia e a capacidade combativa dos inimigos. Todas as vezes que entrou em atrito com os inimigos, saiu vitoriosa. É o inimigo mais mortal que os humanos enfrentarão no dia D, depois do Usurpador, é obvio. Depois de Ricco Stark.

            Fui à sede das industrias Stark, acabar com a chacina que o meu próprio filho estava cometendo. Mas ele não me considerava mais como um pai. A Ômega tinha feito a cabeça dele contra mim, possuindo parte do corpo dele, e fui rechaçado das industrias que eu mesmo criei. O que vê agora é o que restou depois do encontro com Ricco.

            Consegui sobreviver, e consegui voltar até Liz. Mas ela, ao saber da mudança do filho, ficou tão transtornada que começou a entrar em trabalho de parto. Através da dor dela, você nasceu Tony. Um bebê lindo e frágil, num mundo violento e horrível.

            Os mares secaram em batalhas travadas. Tão violentas que ilhas foram destruídas e o próprio oceano secou. Ricco teve serias baixas de máquinas, mas ainda estava em vantagem contra o resto das nações. Elas se voltaram contra ele, e todas elas ele subjugou.

            Cidades refúgios e cidadelas de guerra eram construídas em locais improváveis, longe de centros urbanos, onde a presença das máquinas era grande.

            Fugi. Fugi com a consciência de que tive minha parcela de culpa em ter criado um monstro e não ter feito nada para impedi-lo. Em fechar meus olhos e não poder me virar contra meu próprio filho.

            Abandonei você de certa forma. Não queria que tivesse um irmão como o Usurpador e um pai horrível como eu. Mas entenda... Tudo o que fiz foi por amor. Sempre tentei protegê-lo.

            Tony levantou os olhos cheios de lágrimas.

            - Pai... – disse ele com a voz embargada de emoção. – enquanto houver um homem no trono de máquina...

            - Não haverá proteção em nenhum lugar do mundo. – completou Eddard.

            Tony e Eddard se abraçaram longamente.

            - Perdoe-me filho... – sussurrou o pai.

            - Não há nada a perdoar, pai. Temos que destituir meu irmão e devolver a esse mundo a esperança.

            - Sim. É isso que temos que fazer.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Espero que gostem.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Tormenta De Máquinas" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.