The Dawn of Evangelion escrita por Goldfield


Capítulo 3
Levítico




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Levítico

Nevada, EUA, 1947

O coronel Willians odiava descer por aquela série de elevadores. Sabia que eram importantes – quanto mais fundo no subsolo, menores as chances de aquele complexo secreto ser descoberto – porém nada lhe tirava da cabeça que os engenheiros do Exército deviam ter um sério “complexo de toupeira”.

         A descida foi concluída num baque, a estrutura do elevador se encaixando à da plataforma no fim do fosso. Aquele fora o quarto ou o quinto que tomara até ali? Nem lembrava mais. Só sabia que estava prestes a acessar um dos últimos níveis das instalações, aquele que continha as coisas que mais deveriam permanecer longe dos olhares da população. As portas se abriram, e ele adentrou o corredor.

         Junto com dois guardas militares, aguardava-o um rapaz de jaleco e cabelos castanhos arrepiados, não devendo ter mais de vinte anos. Presumivelmente um cientista – e dos bons, pelo que o coronel ouvira. Verdadeiro prodígio, já vinha há algum tempo cedendo seu conhecimento aos mais escusos projetos do governo norte-americano. E aquele não seria diferente. Seria talvez o mais escuso de todos.

         - Boa tarde, coronel – saudou-o o pesquisador, soando estranho ao recém-chegado; já que, desacostumado a ficar no subterrâneo, não poderia afirmar que período do dia era sem fitar o céu. – Veio mais rápido do que pensei.

         - A situação exige rapidez, doutor Langley.

         - Recebi seus relatórios preliminares. Devo dizer que o que descreveu me pareceu no mínimo... intrigante. Ainda mais pela simbologia religiosa envolvida.

         - Chegou a alguma conclusão?

         - Conversaremos melhor em minha sala.

         O corredor era repleto de portas metálicas, sem qualquer indicação exterior do que abrigavam atrás de si. Alguém como Willians, novo ali, rapidamente ficaria perdido. Mas o cientista guiou-o, detendo-se diante de uma entrada em particular. Retirou uma pequena chave de um bolso do jaleco e usou-a para destrancá-la, abrindo caminho para que o militar entrasse primeiro. Logo depois, o pesquisador acendeu as luzes.

         - Fique à vontade.

         O recinto era singelo. Uma mesa de madeira no centro, repleta de pilhas de livros, onde por certo Langley vinha desenvolvendo seus estudos. Ao fundo existia uma estante de mogno com ainda mais volumes, uma escrivaninha de trabalho, máquina de escrever, cama, cadeiras... e um banheiro anexo. Aparentemente, o morador só deixava mesmo aquela improvisada casa para deslocar-se até o laboratório principal do complexo, no qual tinha mais recursos. Quanto a alimentação, provavelmente o serviam ali mesmo.

         - Entenda que a pesquisa que me requisitou está fora da minha área habitual de interesse – explicou o cientista, sentando-se. – Domino bem mais as ciências exatas e biológicas, e algumas vezes me arrisco em uma ou outra incursão nas humanas. Mas mitologia, religião, assuntos metafísicos... O senhor me deu uma bela lição de casa, coronel.

         - O que descobriu a respeito? – Willians não parecia muito propenso a jogar conversa fora.

         Langley apanhou uma pasta com a inscrição “Confidencial” em vermelho na parte da frente, atirando-a ao militar. Enquanto ele analisava o conteúdo, expôs o que sabia:

         - México, 1531. França, 1858. Portugal, 1917. Todas essas datas e lugares têm algo em comum com o que seus homens viram em Roswell, coronel. Uma figura feminina de manto banhada numa luz capaz de cegar. Aparecendo sob a forma de uma jovem em seus quatorze ou quinze anos, no presente caso, ou a adolescentes mais ou menos nessa idade, em outros. Todos esses eventos estão associados ao céu ou a artefatos a ele relacionados: uma jovem com a lua sob os pés, o sol caindo sobre a Terra... Algo vindo do céu. Assim como no Novo México. Aqueles destroços que encontraram.

         - Com o que estamos lidando?

         - A jovem se identificou como Metatron. É um anjo do judaísmo, não sendo diretamente mencionado na Bíblia cristã. A Voz de Deus, seu mensageiro. Aquele enviado para transmitir a Vontade do Todo-Poderoso aos humanos.

         - Então...

         - Essa entidade, ou seja o que for, está tentando nos transmitir um recado há séculos, senhor. Talvez milênios. E nós, agora, temos a chance de descobrir o que é.

         Fez uma breve pausa e completou:

         - Ela é a maior prova de que há alguém lá fora. Deus, extraterrestres, não importa. Não estamos sozinhos. E talvez estejamos sendo observados por esses olhos há bastante tempo.

         O coronel suspirou. Informação demais de uma vez só, com certeza. E, ainda por cima, informação capaz de mexer com concepções de vida. A sua e a de outros bilhões de pessoas. Informação perigosa.

         - Está se esquecendo de um detalhe... – murmurou por fim. – A tal jovem que cegou nossos homens possui as mesmas feições de Mary Morgan, a adolescente desaparecida na região desde a suposta queda do artefato. O que sugere?

         - Não sei. Possessão, quem sabe. A entidade vinda dos céus pode ter se apoderado do corpo de Morgan de alguma maneira, usando-o agora como recipiente para se manifestar. Há precedentes nos casos que citei. De todo modo, ainda não podemos afirmar nada com certeza. Essa garota terá de ser estudada, assim como os estranhos pedaços de carne encontrados. Eles podem ter composto o organismo anterior da entidade, destruído na queda.

         - O mais espantoso é que Mary, ou Metatron, aceitou seguir nossos homens e embarcar no avião até aqui sem oferecer qualquer tipo de resistência – a afirmação aparentava perturbar o militar.

         - Apesar do contato inicial um tanto tumultuado, não acredito que ela esteja contra a humanidade, coronel. Vamos ouvi-la. Ela deve ter bastante a dizer...

*  *  *

O automóvel Ford negro seguia numa velocidade média pela estrada; Lorenz, que o dirigia, contendo sua pressa para não pisar ao máximo no acelerador – ainda que aquela fosse uma via isolada, sem tráfego de demais veículos. O sol reluzia na pintura impecável do carro, sua cor contrastando com o deserto ao redor. A doutora Soryu, no banco do passageiro, olhava pela janela perguntando-se se sua vida, dali em diante, acabaria se resumindo a paisagens áridas: a erma Palestina fora substituída pelo igualmente ermo Nevada.

         Num dado momento, sob a tarde quente e de tempo limpo, houve uma mudança no cenário. Ao horizonte surgiu a silhueta de um complexo de construções – as quais, tornando-se mais próximas, puderam ser identificadas como a estrutura de uma base aérea, destacando-se os amplos hangares. Mais alguns minutos de viagem e a estrada, num caminho sem saída, terminou junto aos portões do lugar, interrompida por uma guarita dotada de cancela onde alguns guardas militares mantinham vigilância. O coronel freou o veículo, ao mesmo tempo em que dois desconfiados soldados, embora a passos tranqüilos, aproximavam-se para averiguar os desconhecidos.

         - Boa tarde, rapazes – Heinrich cumprimentou-os sorrindo, como se fosse um velho amigo.

         - Perdidos, pessoal? – inquiriu um dos sentinelas, mascando chiclete.

         - Não, não. Sabemos bem para onde devemos ir. Podem liberar passagem, por favor?

         Os combatentes se entreolharam. Aparentavam não acreditar no que ouviam.

         - Senhor, esta é uma área militar restrita! – acabou explicando um deles. – Volte, por favor, se não quiser problemas.

         - Oh, entendo... – o sorriso do coronel desapareceu. – Eu só poderia entrar com autorização, correto?

         - Supondo que o senhor tivesse algum assunto atrás desta cerca, ainda assim precisaria de uma senhora autorização – afirmou outro dos guardas.

         Lorenz suspirou, enquanto Lianna continuava a observar tudo atônita. Fosse lá qual recurso o alemão utilizasse agora, sua expressão levava a crer não gostar de usá-lo. Ela esperava de tudo, até mesmo o velho sacar uma Luger e alvejar os norte-americanos até a morte... mas não. Apenas perguntou aos vigias, sem perder a calma:

         - Vocês têm uma linha de telefone nessa guarita, não?

         - S-sim... – gaguejou um dos militares, já espantado pelo fato de o visitante presumir isso.

         O sorriso voltou ao semblante de Heinrich, maior do que antes.

         - Ligue para 1-3-0-8-0 – pediu.

         Os soldados tornaram a trocar olhares, imaginando que tipo de ardil, ou blefe, poderia ser aquele. Hesitaram por vários instantes, até que um dos guardas resolveu tomar a iniciativa e entrou na guarita, sendo possível vê-lo pela janela apanhar o receptor de um telefone. Os demais permaneceram do lado de fora, vigiando o automóvel. Temiam que o velho fosse um espião ou coisa pior, então todo cuidado era pouco.

         Do carro, Lorenz e Soryu puderam fitar o rosto do vigia que fazia a ligação empalidecer, tremer, a boca se abrir... para pouco depois murmurar palavras apressadas e sua mão direita bater continência – ainda que quem fosse que estivesse do outro lado da linha não conseguisse ver a saudação. A seguir deixou quase correndo a guarita, debruçando-se ofegante junto à janela aberta do Ford ao lado do assento do coronel.

         - Perdoe o transtorno, senhor. Vamos liberar caminho. Faça boa visita.

         - Obrigado, rapaz.

         A cancela se abriu e o veículo acelerou base adentro, os soldados retomando sua rotina como se nada houvesse acontecido. Lianna ficou olhando para trás, confusa, antes de indagar:

         - O que fez?

         - Pedi que ele ligasse para um dos secretários pessoais do presidente Truman – esclareceu Heinrich. – Com isso obtivemos a autorização.

         A arqueóloga já começava a se acostumar com aquele tipo de coisa. A organização do coronel devia ser mais poderosa que qualquer governo do mundo, ao que parecia. Ou então ela só possuía conexões com as pessoas certas...

         Enquanto o carro avançava pelas fileiras de hangares, os dois puderam ver um avião de carga se preparando para pousar na pista da base. Soryu logo o reconheceu: vira uma aeronave exatamente igual, com o mesmo número de identificação, decolar de Tel Aviv há alguns dias.

         Trazia os Manuscritos do Mar Morto.

*  *  *

- Eu não admito! – berrando, o coronel Willians deu um sonoro soco na mesa. – Já não admito a presença de um chucrute nazista nesta base, mais ainda que ele tome parte nesta operação!

         Diante do militar norte-americano, Lorenz, acompanhado de alguns soldados das instalações, mantinha-se calmo. Ao seu lado, Lianna, como vinha sendo costume, não sabia como reagir, apenas assistindo atônita aos acontecimentos. Eles vinham se dando de uma maneira mais rápida do que poderia assimilar. E tudo que realmente queria era ver a filha...

         - A guerra já acabou, senhor Willians – respondeu Heinrich. – Esse tipo de vocabulário é completamente desnecessário.

         - Quem foi o imbecil que autorizou a entrada desse bandido? – o superior questionou a seus homens.

         - Não pude evitar, ele recebeu uma permissão direta da Casa Branca! – justificou-se o mesmo rapaz que havia falado ao telefone na guarita.

         - Um homem na sua posição não deveria chamar o presidente de imbecil, coronel... – apesar de sereno, Lorenz lançou a afirmação de forma sarcástica.

         Willians bufou, esfregando o rosto. Estava claramente forçando a se controlar. Caminhou ao redor da mesa. Encostou-se nela. Seria uma longa noite.

         - Não estou querendo assumir o comando, e sim propondo uma parceria entre seu governo e o grupo que represento – explicou Heinrich. – Vocês conseguiram a máquina, mas sem o manual de instruções. E é isso que eu ofereço.

         - Em troca de ter livre acesso à “máquina”, não é? – deduziu o norte-americano, incomodado.

         - Onde está a garota?

         - Em quarentena. Isolada. Até descobrirmos como lidar com ela.

         - Não deveriam trancafiá-la. Se ela é mesmo quem diz ser, eu não ficaria muito feliz com esse tipo de tratamento...

         Willians arregalou os olhos. O que exatamente aquele velho sabia? Devia haver mais informantes nas Forças Armadas do que sequer imaginara um dia...

         Súbito, a porta da sala se abriu. Um jovem de jaleco entrou. Justamente quem o coronel da Força Aérea menos queria ver com aquelas pessoas estranhas ali...

         - Vocês são os proprietários da carga que aquele avião na superfície acabou de trazer? – indagou o recém-chegado.

         - Exato – confirmou Lorenz. – Ainda não fomos apresentados...

         - Doutor Richard Langley – e apertou a mão do ex-nazista. – Pesquisador deste complexo.

         - Um de nossos melhores cientistas – Willians concluiu ser hora de ceder. – Participou do Projeto Manhattan.

         - Sim! – confirmou o rapaz, saudando com entusiasmo a doutora Soryu.

         Esta manteve uma expressão facial fria, enquanto replicava:

         - Parabéns. A arma que ajudou a criar matou meu marido e cerca de duzentas mil outras pessoas.

         Langley retraiu-se. A bomba atômica era mesmo cercada de infâmia.

         - Enfim, não pude deixar de me espantar com a riqueza arqueológica do material, embora eu não entenda disso... – desviou o assunto.

         - Nós ainda precisamos decifrar seu significado – revelou Lorenz, voltando sutilmente os olhos para Willians. – Nesta base.

         O alvo da afirmação, por um momento, pareceu acuado. Tirou os braços da mesa, respirando com dificuldade. Ensaiou um passo rumo ao alemão... mas acabou se dirigindo, ao invés disso, até a porta, exclamando enquanto se afastava:

         - Preciso dar alguns telefonemas!

         E saiu.

         Os visitantes, Langley e os demais soldados permaneceram em silêncio no interior do recinto, aparentemente incertos sobre o que falar. Apenas Heinrich mantinha uma expressão confiante, como se tudo aquilo já estivesse previsto há bastante tempo.

         - Está trabalhando com os destroços da queda no Novo México, doutor? – o velho logo perguntou.

         - Oh sim, sim – respondeu sorrindo. – Por enquanto estamos analisando a consistência do material. Tentando reconstituir... o organismo a que pertencia.

         - Acredito que os manuscritos nos ajudarão a elucidar esse ponto. Estão interligados, tenho certeza. Não pode ser coincidência duas descobertas tão importantes para o destino da humanidade ocorrerem tão próximas... eu diria quase simultâneas!

         - Confio em seu trabalho. Não nos desaponte.

         Langley assentiu, ainda que um tanto relutante. Em seguida, incomodado pelo clima pesado na sala, retirou-se – sem antes fazer um sinal para que os guardas o acompanhassem. O grupo ganhou o corredor, fechando a porta. Lorenz e Lianna ficaram sozinhos. E ela não podia falar que isso a agradava.

         - Acha que consegue decifrar toda a mensagem contida nos pergaminhos? – ele inquiriu.

         - É uma tarefa árdua. Precisarei consultar guias para as várias escritas envolvidas, e só até o momento já identifiquei sete. Não sei se posso fazer sozinha, coronel. Eu recomendaria o recrutamento de mais especialistas, principalmente em paleografia...

         - Não temos esse luxo, doutora. Quanto menos pessoas envolvidas nisto, melhor. Não queremos que se torne público.

         A ruiva respirou fundo. Dava-lhe calafrios contrariar aquele homem, porém não via muita opção:

         - Sendo assim, tenha em mente que a tradução completa pode levar meses. Talvez anos.

         Heinrich riu, dando um tapinha num de seus ombros:

         - Você tem três semanas.

         Em seguida deixou-a, Soryu tendo em sua companhia apenas o pensamento de que, realmente, não tornaria a ver Minna tão cedo...

*  *  *

         - O senhor fez bem em autorizar a entrada do coronel Lorenz na base em Nevada, senhor presidente. Acredite, ele é confiável. Ajudará a guiar os passos de seu país nesta hora de cautela.

         Harry Truman, presidente dos EUA, ergueu os olhos para o aterrador japonês diante de si. Não sabia quem havia permitido sua entrada no avião – o Douglas C-54 que desde a guerra vinha servindo como “Força Aérea Um”, a primeira aeronave oficial do chefe do país – e não sabia se mandaria fuzilar ou condecorar o sujeito, caso o descobrisse. Apesar de o visitante ser extremamente suspeito, ainda mais por pertencer a uma nacionalidade que até pouco antes estava em guerra com a América, tinha modos cordiais – além de saber muito mais do que um estrangeiro deveria saber sobre os assuntos internos dos EUA. Seu superior, o tal ex-nazista Lorenz, devia ser indivíduo poderoso. Eles estariam realmente dispostos a ajudar o governo diante do estranho incidente em Roswell, ou então aquela era uma tentativa de o Eixo se reerguer que até o momento vinha dando terrivelmente certo.

         Mesmo se Truman quisesse expulsar aquele oriental do avião, não poderia. Estavam em pleno vôo. E, até pousarem, sabe-se lá o que ele poderia fazer caso se recusasse a cumprir suas ordens. Mas, de todo modo, o presidente começava a acreditar nele. Começava...

         - Senhor... como é mesmo seu nome?

         - Rokubungi, senhor presidente – o japonês lembrou-o.

         - Muito bem. Isso tudo de que me falou, sobre pergaminhos encontrados na Palestina, e a possível relação com o achado no Novo México... Sou batista. Tenho fé em Deus e essa crença é perpetuada há gerações em minha família. Entenda se eu disser que essa teoria abala um pouco minhas concepções religiosas... assim como as de todo este país.

         - Entendo perfeitamente.

         - O senhor é budista?

         - Ateu.

         Truman piscou. A si aparentava algo contraditório alguém que não acreditava em Deus defender o misticismo em cima dos tais Manuscritos do Mar Morto, porém continuou, temeroso de que apontar a incoerência lhe custasse a vida:

         - Acreditava que, a partir de agora, a maior ameaça contra a América viesse pelo comunismo e a União Soviética... Mas pode mesmo Deus estar contra nós? O Juízo Final estar próximo?

         - Ainda temos de estudar os manuscritos e a garota encontrada em Roswell para ter certeza disso. De todo modo, no entanto, é válido que seu país se defenda. Que crie subsídios para isso. A organização para a qual eu e o coronel Lorenz trabalhamos agirá em conjunto com os Estados Unidos. Somos parceiros na busca pela Verdade.

         - Mas... o que é essa “Verdade”?

         Rokubungi não respondeu. Suspirando, Truman voltou os olhos para a pilha de papel diante de si. Compunha o texto de uma lei que o japonês lhe trouxera, alegando ter sido elaborado pela organização à qual pertencia em parceria com alguns senadores norte-americanos. Releu o título:

ATO DE SEGURANÇA NACIONAL DE 1947

         Já havia examinado o conteúdo quase por completo. Entre outras medidas, aquele ato rearranjava as Forças Armadas, instituindo o cargo de Secretário de Defesa, e incrementava o aparato de informação do país, criando uma nova organização chamada Agência de Inteligência Central... ou “CIA”.

         Só precisava de sua assinatura.

         O presidente fitou o misterioso nipônico uma última vez... e, com a caneta que segurava em sua mão direita, deu aval à proposta.

*  *  *

No princípio, havia, no Jardim do Éden, os Frutos da Vida e do Conhecimento...

Lianna suspirou, quase se deixando desabar sobre a ampla mesa de trabalho, repleta de manuscritos abertos. Mais de um dia de trabalho e mal traduzira uma frase inteira. Além de árdua e extensa, a tarefa tornava-se ainda mais complicada devido a dois fatores: o primeiro era o prazo minúsculo exigido por Lorenz, algo que chegava ao status de absurdo. O segundo consistia no fato de que uma arqueóloga habituada a viagens e pesquisas de campo pelo mundo dificilmente operava bem numa instalação subterrânea, onde não podia ver a luz do sol ou sentir o ar fresco da noite.

Um terceiro motivo se somou aos outros quando a porta da sala se abriu. Alguém vinha conversar e com isso atrasar ainda mais seu progresso. Postergando também, com isso, seu reencontro com a filha...

- Quem é e o que quer? – ela questionou sem voltar a cabeça para os passos atrás de si.

- Boa noite, doutora – respondeu uma voz jovial, quase infantil. – Vim ver o que a senhora tanto faz fechada aqui neste lugar.

Soryu virou-se um tanto surpresa. Uma criança, ali? Sem entender, observou uma garota adolescente, de quatorze ou quinze anos, aproximar-se da mesa e sobre ela se debruçar com um olhar cheio de curiosidade. As pupilas foram a primeira coisa que atraiu a atenção da alemã: eram vermelhas. Não fosse esse estranho detalhe, tudo mais na menina parecia normal: os cabelos loiros estavam presos em duas marias-chiquinhas e sua pele era bem clara. Vestia uma camisa listrada em azul e branco sob um suspensório marrom, calças de igual cor e pequenos sapatos pretos. Podia ser filha de algum vigia ou cientista, mas ainda assim se mostrava uma incrível irresponsabilidade deixá-la vagar assim por uma base ultra-secreta.

- Hei, cuidado, ou vai rasgar os manuscritos! – preocupou-se Lianna, afastando alguns deles da garota sobre o móvel. – Quem é você? Não deveria estar aqui!

- Mas foram seus amigos que me trouxeram para cá! De Roswell. Espero que aqueles homens que queimaram os olhos ao me ver não estejam zangados...

A doutora ergueu-se da cadeira num sobressalto, derrubando um pergaminho no chão. Tremendo, passou a afastar-se da adolescente rumo à porta, como se estivesse diante de um fantasma.

- V-você é Metatron? – indagou, imaginando se conseguiria chamar ajuda antes que aquele ser tentasse algo.

- Sim, sou eu. Seu amigo Heinrich me tirou daquela câmara e permitiu que eu andasse pela base. Não se preocupe, doutora. Não irei machucá-la.

- O que você quer? – Lianna ainda não se achava convencida.

A entidade no corpo de Mary Morgan tornou a focar sua atenção na mesa de trabalho. Examinou com os olhos os manuscritos por um momento, sem tocá-los. Então se virou para a arqueóloga e falou, sorrindo:

- O Gênesis Apócrifo. Então é verdade. Finalmente o encontraram.

- Gênesis? – a doutora franziu o cenho.

- Sim. A verdadeira origem deste mundo. Diferente do que está nos livros sagrados de vocês. Os lilim adoram ouvir os fatos pela boca de quem não os testemunhou...

- E você testemunhou a Criação? – mais segura, além de intrigada, Soryu voltou a se aproximar. – Você estava lá?

Metatron mais uma vez se voltou para os pergaminhos. Apanhou justamente aquele que a doutora até então traduzia. E, abrindo-o diante de si, passou a lê-lo em voz alta como se a mistura de escritas antigas a si fosse o dialeto mais natural:

- No princípio havia, no Jardim do Éden, morada de Deus, os Frutos da Vida e do Conhecimento. Foram concebidos no Éden por Deus, aquele que em muitos era um. Deus se manifestava pelo povo chamado Nephilim. E através dos Nephilim fazia cumprir sua Vontade.

Fez uma pequena pausa para verificar se Lianna prestava atenção. A ruiva estava completamente fascinada. Metatron prosseguiu:

- Do Éden, veio ao mundo primeiro o Fruto da Vida. O guardião desse Fruto, nomeado por Deus, era Adão. A partir de Adão, que plantou as sementes do Fruto, nasceram os primeiros habitantes do mundo, chamados Anjos. Seres perfeitos e eternos por terem origem do Fruto da Vida, mas arrogantes perante Deus. Diante da afronta, Deus impôs um castigo aos Anjos. Enviou do Éden o Fruto do Conhecimento, para que ele também frutificasse. Quando o Fruto veio dos céus e sua árvore criou raízes no mundo, do solo brotou a Lua. E o poder que emana de Deus permitiu que a Lua pairasse junto ao mundo, no firmamento, para que nunca fosse esquecida a punição dada aos Anjos. A guardiã do Fruto do Conhecimento foi nomeada por Deus como Lilith. E de Lilith, que germinou as sementes, surgiu uma nova vida no mundo: os peixes nas águas, as aves no céu, os antílopes nas estepes, as árvores no campo e o homem em sua espécie, imagem e semelhança de Deus. A geração dos Anjos tornou-se maldita, sendo banida do mundo junto com Adão, seu criador. Mas, criado a partir do Fruto do Conhecimento, o homem também se tornou arrogante por achar-se tão sábio quanto Deus. A punição que sua espécie recebeu foi uma névoa sobre seus olhos que a impedia de ver o Fruto da Vida, ainda plantado no mundo. E sem poder dele provar, o homem nunca conseguiria se tornar perfeito e eterno como os Anjos.

Lianna sentou-se, sem ar. Reação esperada de alguém que ouvia pela primeira vez a verdadeira história da criação da Terra, contada por um ser transcendental que realmente entendia do assunto.

- O homem, cego para o Fruto da Vida, ficou assim preso à sua condição de homem, incapaz de avançar como outrora o peixe se tornara rã e a rã se tornara lagarto – continuou a garota. – Mas na arrogância provocada pelo sabor do Fruto do Conhecimento, o homem acabará encontrando, mesmo às cegas, Adão e sua descendência. E da guerra que se desencadeará, o homem poderá ao fim contemplar a Deus, origem de tudo, em sua gloriosa plenitude.

Metatron parou de ler. O texto do manuscrito terminara.

Perplexos, os olhos de Soryu deixaram Mary e se voltaram para todos os outros pergaminhos na mesa. Aquele fora somente o primeiro. Apenas uma incursão tímida à real face da Verdade.

- Essa última parte... – oscilou a alemã, gesticulando ansiosa. – Sobre reencontrar Adão e seus descendentes... Isso é uma profecia?

- Sim, é – a menina sorriu. – Boa parte do Gênesis Apócrifo é composto de profecias. É aí que entra minha missão. Sou a oportunidade de redenção dada a Deus ao homem. A luz para romper a névoa que bloqueia seus olhos. Eu, Metatron, desde o início dos tempos, venho tentando mostrar a vocês, lilim, o verdadeiro caminho para o encontro com o Criador.

Após um profundo suspiro, completou:

- Creio que agora finalmente conseguirão me ouvir.


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