Innocence escrita por AngelofSyn


Capítulo 1
Capítulo 1




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Era o dia do meu décimo sexto aniversário. Nesse dia, decidi fugir de casa. Apetecia-me. Enfiei dois pares de jeans, meia dúzia de t-shirts e roupa interior numa mochila e saltei pela janela. Meti-me no comboio das onze e um quarto, cujo destino desconhecia, e por volta da meia-noite e meia dei por mim numa gare com um aspecto bastante antigo e misterioso. Apesar das horas, havia ainda imensa gente na rua que, mesmo sendo escura e fria, era movimentada e cheia de luzes e sons que abafavam o véu enigmático que cobria aquela estranha cidade. Ouvia-se o som de vozes joviais, vozes monocórdicas, vozes femininas e masculinas, jovens e velhas, vozes roucas, gastas e cansadas, vozes graves, agudas e vozes melódicas que pareciam cantar cada palavra com entusiasmo. Ouvia-se os carros a passar em torno da grande praça e o vento, mais uma brisa quente do que uma ventania, chocava nas folhas maduras, amarelas e vermelhas, a cair dos castanheiros, produzindo um som de chocalho. Era uma orquestra urbana, onde um som se destacava... Um som ainda mais musical que as vozes, os carros ou o vento. Um som doce com notas de uma açucarada melancolia que saía das cordas de uma guitarra acústica. Olhei à minha volta, procurando a mão que, com tamanha gentileza, percorria aquelas cordas nostálgicas. Fechei os olhos e confiei nos meus ouvidos e, mais importante, nos meus instintos. Vagueei pela praça sem grandes certezas nem esperanças, o coração a palpitar-me no peito como pipocas. O som estava cada vez mais próximo. Eu estava de olhos fechados. O meu tacto por entre a multidão. Fui parar mesmo junto da fonte de som. Abri os olhos.

         Que desejo de nunca os ter aberto…

        Sentado no chão, de pernas cruzadas, com uma guitarra cor de pinho nas mãos, estava um jovem rapaz de cabelos pretos, caídos sobre os seus largos ombros. Parecia alheio ao movimento da rua, enquanto os seus longos e finos dedos fluíam no braço da guitarra como um rio que corre para a foz. Veloz e feroz. Tinha aquela assustadora gentileza que só aos artistas é concedida. Levantou a cabeça e olhou-me bem nos meus olhos, esboçando um leve sorriso que, apesar de terno e caloroso, possuía morbidez, intensidade, desafio. Olhou para a guitarra e começou a tocar uma canção que me era familiar. Parou de tocar por breves instantes e pôs-se de pé. Estendeu-me o seu braço musculado e tatuado, e olhou novamente nos meus olhos.

        − Syn − disse, a sorrir, com uma voz profunda, mas alegre. Apertei-lhe a mão, pesada e macia, mas logo senti que ele me agarrava pela cintura; senti o corpo dele contra o meu, num aperto sufocante; senti a sua respiração no canto da minha boca. Beijou-me a maçã do rosto docilmente, apertando o meu peito contra o dele com força. A minha respiração alterou-se de um momento para o outro, bem como o meu ritmo cardíaco, que acelerou como uma gazela a ser perseguida por um tigre. Syn tirou as mãos da minha cintura e distanciou o seu corpo do meu, dando um passo para trás. Olhou-me nos olhos pela enésima vez e pegou na guitarra. Fiquei a vê-lo afastar-se com um passo seguro, até que desapareceu por entre a multidão. Permaneci imóvel durante breves instantes, completamente congelada. A voz de Syn, o nome de Syn a ecoar-me na cabeça. Caí de novo em mim e vi que já eram duas da manhã e a multidão já estava a dispersar. A cidade tinha de dormir.

        Apercebi-me que estava sozinha, em todos os sentidos. Sentei-me num banco de jardim, debaixo de uma das árvores imponentes e, por alguma razão, a única coisa em que conseguia pensar era no belíssimo guitarrista de olhos cor-de-canela que havia conhecido horas antes. Pareciam já cem anos… Perguntei-me se o veria de novo e dei por mim a desejar sentir o seu cabelo roçar na minha cara, enquanto as suas grandes mãos me envolviam a cintura, como acontecera.

        − Ele nem sequer sabe o meu nome…

        Decidi ir procurá-lo. Talvez não estivesse longe. Peguei na minha mochila e decidi aventurar-me pelas ruas daquela estranha cidade que parecia saída de um conto sombrio. Dei voltas e mais voltas, meti-me por becos e ruelas e, por alguma razão, em nenhum momento tive medo de ser atacada, assaltada ou violada, como era frequente acontecer quando andava sozinha. O meu único medo era nunca mais ver aqueles dois olhos castanhos ou aquele sorriso meio fogoso, meio terno.

        − Se a Kat aqui estivesse, diria que estou apaixonada… − ri para mim, enquanto a imagem da minha melhor amiga me vinha à cabeça.

        Olhei de novo para o relógio. Quatro e treze. Ia já num sítio bem diferente da praça; era um beco estreito. Não sabia que não tinha saída... Avancei e deparei-me com um portão de imponência doentia que parecia ser de uma época recuadíssima. Talvez fosse mais antigo que a própria cidade. Estava aberto. Entrei. O medo a ser vencido pela enorme curiosidade. Era uma espécie de cemitério, mas sem lápides nem mausoléus. Apenas estátuas de pedra assustadoramente realistas. Todas elas representavam figuras femininas e tinham inscrições, um nome e uma data. A estátua alta à minha esquerda dizia “Angela, 14 Agosto…” e uma outra à direita dessa tinha uma inscrição no peito, onde se lia “Christine, 23 Abril…”. Talvez fosse uma espécie de cemitério temático ou de museu privado de um qualquer louco milionário. Mas o portão estava aberto e não havia ninguém a cobrar entrada. Que estranho…

        − Não devias estar aqui!

        Dei um pulo de susto. A voz era-me familiar. Não me lembrava de onde.

        − Qu… Quem está aí? − Gaguejei, tentando parecer segura.

        Vi uma silhueta sair da sombra. Era definitivamente humano, trazia um chapéu na cabeça e parecia ser alguém bastante grande, mas não lhe conseguia ver a cara, por mais que tentasse.

        − Não devias estar aqui… − Repetiu, enquanto caminhava na minha direcção, sem nunca mostrar o rosto. Reconheci aquele andar seguro, de predador.

        − Syn…? És tu…? − Não tenho a certeza se proferi estas palavras em voz alta.

        Antes de ter tempo de pensar, já um par de mãos me apertava a cintura. Dez dedos passeavam pelas minhas faces frias, como formigas ligeirinhas que fazem cócegas. Senti cada pedacinho da minha pele arrepiar-se quando ele me beijou o pescoço e o queixo. Não teria conseguido lutar mesmo que quisesse. Não queria. Só podia ser Syn, era a voz dele, o andar dele, o toque dele…

        Mas afastou-me com um empurrão antes de poder provar os seus lábios. Ainda extasiada, imaginei que soubessem a maçãs caramelizadas: o doce pecado…

        − Não devias estar aqui − tornou ele. − Sai daqui!

        Parecia alterado, como se “algo” o possuísse e poderia jurar que, por breves fracções de segundo, o seu belo rosto parecia totalmente transfigurado. − Sai! Pára de me tentar!

        Fiquei tão assustada que desatei a correr. Corri como não me imaginava capaz de fazer. Mas aquele cemitério parecia não ter fim e a minha asma parecia gritar-me para parar de correr. Parei junto de uma estátua da minha altura cuja inscrição era a data do dia seguinte ao meu aniversário, “Faith, 15 Junho…”. Aquilo assustou-me um pouco, mas estava cansada e só tive tempo de encostar a cabeça na mochila e adormecer.

 

        Haviam passado sete dias desde o meu décimo sexto aniversário e eu continuava perdida no meio daquele sítio que em nada se assemelhava a qualquer cidade onde alguma vez havia estado. Depois do enigmático encontro no cemitério, não soube mais nada de Syn, apesar de o meu coração estremecer à mínima coisa que me lembrasse ele. Durante esses dias, hospedara-me numa pensão barata, mas a conta já ia quase tão gorda quanto a minha carteira e por isso tive que pegar na minha trouxa e sair. Só havia uma coisa no mundo que eu desejava mais que voltar a casa: sentir os seus dedos na minha cabeça, os seus lábios no meu pescoço. Tinha vontade de lhe dizer que o amava e de descobrir o sabor da sua boca.

        Parece tão bonito…

 

        Desesperada, voltei à praça junto à gare onde o vi pela primeira vez, sentado no chão a tocar guitarra, e onde me apaixonei por todo o misticismo que o rodeava. Percorri a praça de uma ponta à outra, uma e outra vez. Nem sinal dele. Lembrei-me então do misterioso cemitério. Pela segunda vez na minha vida, corri como não me julgava capaz, e nem a asma nem o cansaço me conseguiram parar. Transpus os portões sinistros e examinei cada milímetro do terreno, atenta a todos os sons e movimentos. A vontade de voltar para casa crescia a cada minuto que passava sem ele aparecer. Resisti. Quando a minha esperança estava já praticamente esgotada, ouvi passos sobre as folhas secas caídas no chão. O meu coração acelerou. Só podia ser ele.

        − Já te disse que não te quero aqui! Desaparece! − Era ele. Estava furioso. Nem parecia o Syn gentil e sensual que havia conhecido na praça ao pé da estação.

        − Syn… − Corri para ele e tomei-o nos meus braços, mas ele empurrou-me com tal violência que cambaleei para trás. Tentei dissimular as lágrimas, mas parecia ser impossível fingir perto dele. Ele era como uma força controladora sobre mim, que me impedia de tentar ser algo que não eu. Se ele me pedisse para caminhar descalça sobre brasas em fogo, eu tê-lo-ia feito sem hesitar, tal era a minha paixão. Perguntei-me se ele teria aquele efeito em todas as raparigas…

        − Deixa-me sentir-te… − implorei, sem obter resposta. − Por favor…

        − Pensas que é fácil para mim - retorqui, − apaixonar-me por aquilo que devia matar? − Parecia estar a dizer palavras que nunca antes houvera pronunciado. Deixou-me estupefacta. − É verdade! Eu devia ter-te morto naquela noite, na praça. Ou aqui, neste mesmo sítio, nessa mesma noite! É o que faço para sobreviver. Eu mato jovens inocentes para sobreviver! Seduzo-as, como fiz contigo, levo-as a pensar que estou tão apaixonado como elas e mato-as!

        Olhei para a expressão angustiante estampada no belo rosto de Syn:

        − Se o que dizes é verdade, porque é que… − hesitei − porque é que não me mataste?

        Fez-se silêncio. Ele olhou-me nos olhos novamente e, mais uma vez, agarrou-me e beijou-me o rosto. Ouviu-o sussurrar. Sentiu-o atirar-me contra a parede, puxando as alças do meu top preto e beijando-me os ombros. Talvez devesse ter fugido… Os beijos ardentes cessaram e ele afastou-se a correr.

        − SYN!

        Gritei.

        Grita ainda, por dentro…

 

        Já ia longe. Rezei a Deus que me desse forças e desatei a correr atrás dele e não parei até o apanhar, sentado no cimo de um muro largo. Subi com alguma dificuldade e, com toda a força que julgava possuir, puxei Syn pela gola da camisa, de tal forma que lhe rebentei as costuras. E ficámos deitados, eu por baixo do corpo dele. Antes que ele conseguisse fugir, agarrei-lhe no pescoço com a mão esquerda e beijei-o, como há tanto tempo ansiava fazer. E a última coisa de que me lembro foi uma sensação de imobilidade em todo o meu corpo, como se estivesse acorrentada.

 

         E ainda hoje lá está deitada em cima do largo muro, presa dentro do seu carcereiro de pedra, tal como todas as outras raparigas que agora a rodeiam. Tem uma inscrição na perna, que diz “Amei-te. Mataste-te, 21 Junho…”. Devia ter-lhe dito que o seu nome era…

 

 

 


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