Foi-se escrita por Nina_Auras


Capítulo 1
Único




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"Hei de tê-la uma vez mais entre meus braços! Se ela estiver gelada, pensarei que é o vento norte que me enregela. E se imóvel ela está, é porque adormeceu" – O Morro dos Ventos Uivantes.


***


Foi-se.


Um verbo tão simples. “Ir” (ou “era”), na terceira pessoa do singular do pretérito perfeito do indicativo. O dicionário o define de modo tão sem complicações. Faz parecer mais um verbo qualquer, em um tempo verbal que não muda nada. Mas não é, e o tempo muda tudo.


O bar estava cheio. O homem entrou, o ar pesado, o rosto inexpressivo. Caminhava como se carregasse o mundo nas costas. Tinha uma beleza exótica, meio cigana – e aqueles olhos que Capitu um dia sonhou em ter, mas nunca foi dissimulada o suficiente. Olhos de ressaca, diriam aqueles ingleses, se alguma vez lessem Machado de Assis. Mas não é sobre a Capitu que estou falando: é sobre o homem. E ele entra, senta-se no balcão, e pede, com aquela voz fria, um whisky da melhor qualidade.


– Senhor Heathcliff, - diz o barman, que naquela época muito provavelmente sequer era conhecido por barman, ao trazer-lhe o pedido – ouvi falar da morte da sra. Linton. Vocês dois cresceram juntos, não foi? Na casa do velho Earnshaw.


O homem, Heathcliff, não respondeu. Tomou o copo de whisky todo em um gole, e depois limpou a boca grosseiramente com a mão. Olhou ao redor, para as pessoas que conversavam em voz alta. Pela primeira vez em sua vida, ele adorou que conversassem, que falassem alto, que berrassem toda vez que ganhavam no poker. Aquele som todo fazia sua cabeça doer, e era exatamente disso que ele precisava. Sentia-a latejar. Precisava ficar bêbado. Precisava esquecer.


Mas só um verbo martelava em sua cabeça: “foi-se”.


– Mais um, senhor Dunnal! – exclamou, sem responder à pergunta do barman. Mas tudo bem. O senhor Dunnal encheu o copo novamente, atento ao cliente mais regular e austero do bar. Ele não precisava da resposta: sabia que ele era o menino cigano que o senhor Earnshaw trouxera de Liverpool, quando a sra. Linton ainda era moça nova. Chegara na região muito tempo depois disso, mas lhe contaram a história quando Heathcliff retornou. Parece que os laços que uniam os dois “irmãos” eram tão ou mais singulares do que comentavam por lá.


“Incesto”, acusavam uns. “São irmãos muito unidos, apesar de não terem o mesmo sangue”, defendiam outros. E mesmo esses outros não simpatizavam com Heathcliff. O senhor Dunnal talvez fosse a única pessoa de toda a região que via nele um bom homem, e talvez essa ideia que ele tinha fosse influenciada por todo o dinheiro que gastava com bebidas.


– Sinto muito pela sra. Linton, senhor Heathcliff. Sei como essa perda deve ter abalado o senhor. – Falou, dando um sorriso incerto.


– Quem faleceu? – um dos homens que estava no balcão perguntou, interessado. Heathcliff sentiu todo o sangue ir para o rosto. Aquele homem, se continuasse com as perguntas, acabaria perdendo o nariz, só para aprender a não meter-se onde não foi chamado.


– A senhora Catherine Linton, que em solteira foi Catherine Earnshaw. – Explicou o senhor Dunnal. – Irmã desse cavalheiro aqui.


– Uma garrafa de whisky, senhor Dunnal, por favor. – Heathcliff pediu, colocando o dinheiro (tanto da garrafa quanto dos dois copos) no balcão. O barman fez um sinal para o rapaz e foi buscar, coletando o dinheiro. O homem que, sem saber, estivera muito próximo de perder o nariz, pigarreou.


– Também sinto muito. Você é o senhor Heathcliff, atual proprietário do Morro dos Ventos Uivantes? Conheci seu irmão, Hindley. Ótima pessoa... Grande jogador.


– Um grande bastardo bêbado e desvairado. – Retrucou Heathcliff, ciente de estar sendo rude, enquanto pegava a garrafa das mãos do senhor Dunnal. Sequer se despediu antes de sair para a noite: não achou necessário.


Caminhou pelas ruas escuras, tomando o whisky direto da garrafa, sentindo-o queimar a garganta. Tudo – o mundo, a vida – lhe parecia tão vazio, tão sem sentido, tão sombrio sem Catherine. Ele vivera para ela, se tornara o que era por ela, e agora o que lhe restara? Seu próprio ser, que nem seria algo, para começar, se não fosse por Catherine. Ela o matara, e então lhe devolvera a vida.


Sem ela, ele não estava vivendo. Estava meramente existindo. E para que? Para completar sua vingança? Deu uma risada melancólica entrecortada por lágrimas. Chegou ao cemitério, gritou para o vento, gritou para os morros, gritou para o nada: eu vou te vingar, Catherine. Um bêbado gritando: vou te vingar, ora essa.


– Vou te vingar e destruir todos que te fizeram mal... – prometeu, agora em voz baixa. – Não tenho mais interesse em vingar-me. Sempre fui você, sabia disso? Sempre fui muito mais você do que você foi eu. Você tinha motivos para viver, quando o meu único sempre foi a sua vida. – Suspiro. – Vou te vingar, Catherine, vou te vingar, vou destruir todos que te fizeram mal. Nem que para isso eu tenha que destruir meu próprio ser.


E, em uma torrente de lágrimas, caiu no chão. Sentado na frente de uma lápide qualquer, de uma pessoa que jamais conheceu, ele olhou para as estrelas que brilhavam lá longe. Como devia ser o inferno? Que tormento. Por mais que ela tivesse a expressão serena, não era mais ela: era seu corpo morto, estilhaçado. Ela estava ardendo. Estava em uma tortura eterna. E, Deus, como ele queria estar com ela, sofrendo debaixo da terra, um brinquedo nas mãos de Satanás!


– Nada... – ele sussurrou para si mesmo. – Nada, nem Deus ou Satanás, poderia ter nos separado.


“Foi-se”, “foi-se”, “foi-se”, “foi-se”. E ele chorava. Ele só podia chorar, porque agora ele perdera a única coisa que lhe restara – seu coração. E o que ficou foi um vazio enorme, uma tristeza imensa, um abismo no lugar de uma alma. Mas – lembrou-se – ela estaria do seu lado sempre. Ele rogara por isso, e sabia que Catherine atenderia sem sequer pensar duas vezes. Deu um sorriso, dessa vez não sabia-se se para o nada ou para algo:


– Você está aí, Catherine? Querida... Você está comigo, Catherine? – e parecia mais calmo. – Deixe-me vê-la. Só isso me fará bem agora, minha Catherine.


O vento frio da noite trouxe o silêncio.


– Oh - fez, e deu uma risada baixinha. Já parara de chorar. Lançou um olhar penetrante para os morros e deu um sorrisinho irônico. – Me esqueci. Você nunca me deixará vê-la, não é? Quer me torturar... Mas não vai conseguir. Saber que você está aqui comigo é a única coisa que me impede de ir naquela casa, dar um tiro na cabeça de Linton, esgoelar o ser que você carregou por tanto tempo no próprio ventre e que a tirou de mim, e depois dar cabo da minha patética existência. Não, tenho planos muito melhores do que esses. Tenho que ter. Enquanto penso nisso, não sinto dor.


E, enquanto falava, pareceu-lhe que uma mão espectral lhe tocava no ombro. Teve certeza de que era Catherine. Os bêbados sempre têm certeza de tudo.


– Eu te amo, minha Catherine. Você não “foi-se” para mim. – Decidiu-se. – Obrigado, obrigado por me atender. Nunca mais me deixe. Essa seria a tortura pior para ambos nós. Esteja comigo sempre, por favor. Esteja comigo... quando nem eu estiver.


As mãos estavam sujas de barro, a garrafa de whisky abandonada ao lado da sepultura do tal desconhecido, os olhos secos tristes e abandonados. Só que Heathcliff não fora abandonado. Muito pelo contrário. Ele era Catherine, e Catherine era ele. Ela só deixaria de existir quando ele próprio deixasse.


Portanto, vamos corrigir o senhor Dunnal. A mulher chamou-se Catherine Linton, que em solteira foi Catherine Earnshaw, que sempre foi, sempre será, e ninguém há de negar, Catherine Heathcliff.



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