Trem escrita por Cara de Pinheiro


Capítulo 1
Único




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Caminhei tentando não pensar. Não queria lembrar os motivos que me levaram a tomar essa decisão, nem relembrar os momentos bons que antecederam tudo isso. Queria manter minha mente vazia, porque agora nada mais importava. Eu estava me aproximando do fim.

É claro que esse é só um modo de falar. Afinal, o ponto que eu havia escolhido era no meio do caminho. Talvez não tão no meio; a ferrovia eram quilômetros e mais quilômetros de ferro se estendo muito além do eu poderia imaginar. E naquele momento, eu não queria imaginar nada. Nunca fui adepto da meditação, mas a pratiquei nos que seriam meus últimos momentos.

Quando passei pelo único túnel que havia na cidade não pude evitar que a clássica expressão "luz no fim do túnel" me viesse à mente. Era tão irônico que eu estivesse caminhando por um túnel onde na outra extremidade estava o clarão da luz do dia. Irônico porque, depois desse túnel, estava o local de minha redenção, não o de salvação. Cada passo me deixava mais próximo e eu ainda tentava não pensar nisso.

Logo eu já estava em céu aberto de novo. O vento batia nos eucaliptos a frente, trazendo o cheiro até a mim. Respirei fundo, aproveitando. Aquele seria o último aroma que eu sentiria.

As copas das árvores se uniam por cima da ferrovia, formando um túnel de eucaliptos. A luz ali tomara das árvores um tom verde pálido, mas ainda muito interessante. Deitei-me sobre os trilhos, levando o cigarro a boca e dando mais um trago. Se o trem não demorasse muito, aquele seria o último.

Fiquei de olhos abertos; queria ter uma última visão para lembrar caso houvesse um depois. As folhas das árvores eram minhas únicas musas, exibindo-se diante de mim. Gargalhe alto, sem repreensão, ao notar o quão ridículo aquilo tudo era. Fechei os olhos e dei mais um trago. Foda-se.

De um lado ao outro da linha, tudo o que havia era a plantação de eucaliptos, e muito ao longe, talvez a casa de quem os plantará. Não haveria ninguém para escutar meu grito, caso eu o fizesse. Mas não tinha essa intenção.

Já estava emendando um segundo cigarro quando ouvi o primeiro som. O som das engrenagens funcionando. O trem estava se aproximando.

Não me apressei a terminar o cigarro. Tudo bem se o trem me esmagasse enquanto eu dava um trago. Depois disso eu estaria morto mesmo. Esperava que fosse parecido a morrer durante um orgasmo.

Agora o som do trem era bem mais alto. Eu já conseguia sentir os trilhos sacudindo. Dei mais um trago, despreocupado, mantendo os olhos fechados. Até que senti mãos, pequenas mãos, agarrando meus pulsos e me puxando, fazendo com que eu levantasse. Abri os olhos com o susto e então a vi.

Ela estava mesmo ali, me puxando, me tirando dos trilhos, me tirando o controle do meu fim. Depois de tanto tempo, depois de tudo o que aconteceu entre nós, fora ela quem se importara o suficiente para vir atrás de mim pra tentar me impedir.

Rolamos os dois, barranco a baixo, por perdermos o equilíbrio.

– Qual é o seu problema? – ela gritou pra mim, arfando.

Folhas secas dos eucaliptos ficaram presas ao seu cabelo. Não me permiti mirar outra coisa que não ela. Mesmo ouvindo o som do trem passando lá em cima, e tendo consciência que deveria estar morto há essa hora, não consegui fazer outra coisa além de admirá-la. O vento trouxe o cheiro de seu perfume até mim, e eu o inspirei profundamente, avivando as lembranças que tinha dele.

Relembrei uma última vez a imagem das copas das árvores e do cheiro do eucalipto para depois substituir pela imagem dela e por seu perfume. Não necessitava mais de “últimas lembranças”, pois agora eu tinha “primeiras lembranças” que não deveriam ser esquecidas jamais.


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Notas finais do capítulo

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