–Você ainda está aí? Se estiver, eu acho que deveria acordar agora. - Falei, ainda segurando suavemente a pequena mão da garota, atenta a qualquer mudança em seu rosto.

A garotinha loira deitada no catre a minha frente era simplesmente angelical com seus longos e macios cachos dourados e seu rosto inocente, com ar infantil. Me perguntei o que Peg acharia quando acordasse e estivesse nele...

Fazia algum tempo – muito tempo na verdade – que eu insistia em fazer a menina acordar. Doc e Mandy haviam retirado a alma chamada Pet desse corpo e, a pedido de Melanie, Jared e Ian, estávamos esperando para ter certeza de que não haviam mais ninguém nesse corpo, o que eu estava realmente começando a acreditar, graças a falta de respostas da menina aos meus apelos.

E o que exatamente eu estava fazendo aqui? Fácil: Jeb teve a idéia de me mandar ajudar no hospital – Provavelmente essa foi a melhor desculpa que ele achou para me impedir de tentar ajudar novamente com os trabalhos mais pesados. Bem, ao menos eu estava fazendo alguma coisa e, admito, queria mesmo ficar aqui e ajudar Ian, que estava realmente ansioso pra trazer Peg de volta e com medo de como ela iria reagir ao perceber que tinha ficado aqui, viva.

–Você consegue me ouvir? Você esta aí? - Voltei a perguntar, ainda sem receber resposta alguma. Suspirei pesadamente e me movi, pegando um cacho dourado e passando pelos meus dedos, observando a textura.

–Sabe, a humana que deveria estar no meu corpo também não apareceu e tiveram que me colocar de volta. Se você não voltar, Peg vai viver no seu corpo. Desculpe, eu sei que deve ser horrível para você, se é que você ainda esta aí, quero dizer. - Murmurei, ficando um pouco melancólica e começando novamente a me sentir culpada.

Era horrível que a minha especie precisasse tomar vidas para poder viver. Quer dizer, eu realmente gostava muito de estar aqui, mas não conseguia esquecer por nem um segundo que tudo isso deveria ser de Jodi. Será que eu tinha realmente o direito de estar aqui? Peg, ela sim havia conquistado seu direito, já que havia feito tanto pelos humanos... Mas e eu?

–Bem, acho que deveríamos esperar só mais algumas horas para recolocar Peg, pessoal. Esse corpo já passou tempo demais sem se alimentar e não queremos deixá-la mais fraca do que necessário, não é? - Doc, que antes falava em particular com Mandy, falou para todos ouvirmos, interrompendo meus pensamentos. Mel, Ian e Jared se entreolharam e depois assentiram em afirmação para Doc.

As horas passaram com muito falatório da minha parte e nenhuma reação da garotinha até que Doc e Mandy concluíram que ela não estava mais aqui para reivindicar seu corpo, então traríamos Peg de volta.

Eu lamentei pela garotinha humana, mas fiquei mais animada com a perspectiva de que a minha colega de espécie voltaria – Eu tinha muita companhia aqui nas cavernas, mas sentia falta de conviver com uma alma, além de que, Peg já estava mais habituada com toda essa situação do que eu, seria bom poder falar com ela.

Quando tudo estava sendo arrumado para recolocar Peg, Kyle apareceu trazendo um saco de cheetos e pão, o que eu devorei em poucos minutos, estava realmente faminta. Sorri em agradecimento pra ele quando terminei e fomos sentar no canto mais afastado do hospital, onde as pessoas se espremiam para ter uma visão melhor da nova Peg – Todos os humanos que gostavam dela estavam aqui para dar-lhe as boas-vindas.

–Eu vou fazer isso. Ninguém mais vai tocar na Peg. - Ian declarou calmamente, mas sua voz estava num tom de autoridade que desencorajava a discutir.

–Ian, eu não acho que seja seguro... É melhor me deixar fazer isso – Doc tentou.

–Não, eu faço. - Ian teimou convicto e Doc não pôde discutir, assentindo.

Ian virou delicadamente o corpo pequeno da menina loira e a deixou de bruços e logo Doc estava lá com um bisturi e rapidamente fez um corte no pescoço alvo da garota - Tentei reprimir o tremor que passou no meu corpo e dizer a mim mesma que ele não a estava machucando de verdade.

–Está na hora, Ian. Mande Peg pro novo lar dela. - Doc disse acenando pra Ian. Ele virou para Melanie, que já segurava o criotanque de Peg aberto e pegou a brilhante alma em suas mãos.

No rosto de Ian, era palpável a admiração e o amor enquanto ele segurava a pequena alma em suas mãos em concha. Peg era linda, com seu brilhante, pequeno e prateado corpo. Ao ver a adoração nos olhos de Ian, não pude deixar fungar um pouco, emocionada com o jeito que ele a admirava – Como um humano podia achar uma alma bonita. Kyle apertou minha mão, percebendo que estava prestes a chorar e eu sorri pra ele.

Ian colocou Peg em seu novo corpo e percebi Jamie se esticando para tentar ver o que acontecia enquanto com certeza, Peg deveria estar se conectando com seu novo corpo, sua nova vida. Doc se apressou em usar todos os remédios e logo só restava uma pequena e quase invisível cicatriz na nuca da nova Peg. Agora só nos restava esperar para que ela acordasse.

Eu estava nervosa. Muito, muito nervosa. Estava com medo de algo dar errado ou de Peg ficar brava ou triste por ter sido trazida de volta – Mesmo que eu soubesse que isso era bem improvável, já que era mais que óbvio que ela amava esses humanos.

O fato de estar demorando tanto não estava ajudando – As pessoas começaram a procurar posições mais confortáveis e Kyle ao meu lado começou a bater o pé no chão, claramente impaciente. Olhei para cima, encontrei o olhar dele e sorri - O sorriso de resposta dele foi tão deslumbrante que me fez corar e baixar a cabeça.

–Acha que ela vai acordar? Ian está muito nervoso. - Perguntei baixinho, voltando a olhar para Kyle, que voltou o olhar para o irmão.

–Eu realmente espero que sim. Ele realmente gosta dela e eu acho que se acontecer algo errado, ele não vai ficar legal. - Ele respondeu com a expressão realmente preocupada.

Reconheci essa expressão das memórias de Jodi – A expressão que entregava o quanto Kyle se preocupava com o irmão mais novo e se achava responsável por ele, o chamado amor fraternal. Era uma das coisas mais lindas do ser humano – O modo com que eles valorizavam a família, era tão intenso...

Olhando para Ian, o jeito tenso que ele segurava a mão de Peg, o modo com que seus olhos quase imploravam para que ela acordasse... Bem, me deixou preocupada também. Será que Peg vai acordar? Será que deu tudo certo?

–Hey, não fique nervosa, Sunny. Vai dar certo. - Kyle me assegurou, percebendo minha expressão. Me abracei a ele, enquanto esperava, ouvindo as tentativas de Ian, Mel e Doc para acordar Peg.

Muito tempo e algumas borrifadas de acordar depois, todos continuavam na mesma e eu já estava ficando desanimada, quando de repente, Kyle deu um tapinha leve em meu ombro, me chamando a atenção e fazendo um gesto para que eu olhasse para Peg, que agora abria os olhos.

– Peregrina? – Ian chamou após ter beijado todo o rosto de Peg.

– Ian? Ian, onde estou? Quem sou eu? – Ela perguntou, enfim encontrando com o rosto de Ian.

– Você é você. E está perfeitamente entre os seus. - Ian respondeu firme, provavelmente temendo que ela se aborrecesse.

Peg ainda estava se acostumando com tudo, eu sabia que deveria estar sendo muito desorientador trocar de corpo, receber todas as informações passadas da antiga vida de Pet, saber que ela, Peregrina, tinha continuado viva, no lugar em que ela queria.

– Onde ela está? Onde está Pet? – Ela perguntou subitamente alarmada.

– Ela está bem aqui, no tanque e pronta para ir. Nós pensamos que você podia nos dizer o melhor lugar para enviá-la. - Doc disse sem tentar esconder seu sorriso pra ela.

– Doc! Doc, você me prometeu! você jurou para mim, Eustace! Porque não cumpriu sua promessa? - Peg cobrou. Eu não pude deixar de me distrair um pouco: Eustace? Esse era o verdadeiro nome de Doc?

– Mesmo um homem honesto às vezes sede a coação, Peg. - Doc explicou meio sem graça.

– Coação – Jared repetiu, como se fosse uma ideia absurda.

– Pode-se dizer que uma faca no pescoço seja uma coação, Jared. - Doc discutiu. Mesmo já tendo ouvido desse acontecido, a ideia de Jared ameaçando Doc com uma faca ainda me fez tremer um pouco.

– Você sabe que eu jamais a usaria de verdade. - Jared rebateu, agora semicerrando os olhos.

– Isso eu não percebi, você foi muito persuasivo. - Doc resmungou, passando a mão em seu pescoço, como se lembrasse da sensação.

– Uma faca? - A voz de Peg quase gritou de pavor, bem, eu a entendia bem: Essa historia era no minimo perturbadora.

– Shh... está tudo bem. Você pensou que ia poder nos deixar daquele jeito? Peg! - Ian disse, sua expressão era uma mistura estranha de alivio e tensão, mas era palpável a alegria dele por ter Peg de volta e ela pareceu perceber isso também.

– Eu disse que não queria ser uma parasita. – Ela disse um pouco envergonhada.

– Deixem-me passar – Melanie falou, sua voz forte e destemida, como se ela estivesse se preparando para dar uma bronca na alma que antes habitava seu corpo.

Melanie começou a falar com ela sobre ter tomado cuidado ao procurar o novo corpo de Peg e então Jamie entrou na conversa e começou a narrar animadamente a incursão para encontrar o corpo perfeito pra ela e como havia sido ele que havia escolhido – Olhando de longe, eles pareciam realmente uma família e eu me perguntei se não era isso mesmo que eles haviam se tornado.

No pouco tempo em que eu convivi com Melanie, ela pareceu realmente se preocupar e eu diria até, amar Peg – Será que se tivesse me conhecido, Jodi gostaria de mim também? Pouco provável. Eu tinha roubado tudo dela... Como ela poderia?

Estremeci com o peso da culpa e senti as mãos de Kyle afagando meus ombros, me lembrando o porquê de eu amar tanto esse planeta. Passei meus braços em torno dele, escondendo meu rosto em seu peito, me acalmando pouco a pouco.

– Jodi? O que aconteceu com Jodi? – A pergunta de Peg me tirou de meus devaneios e eu levantei minha cabeça ao mesmo tempo que Ian a ajudava a sentar no catre.

– Jodi não reagiu. Tentamos enquanto pudemos. Nós conseguimos mantê-la hidratada, mas não tínhamos como alimentá-la. Mandy e eu ficamos preocupados com atrofia dos músculos, o cérebro... –Doc explicou, deixando Peg ainda mais aflita. Ela olhava pelo hospital, parecendo procurar algo e parou quando me viu e eu sorri pra ela, assistindo a confusão deixar seu rosto.

– Sunny! – Peg afirmou e meu sorriso aumentou um pouco.

–Eu consegui ficar! Assim como você. – Disse animada e, admito, quase vaidosa por ter conseguido. Foi aí que lembrei que isso não se tratava só de mim, não me pertencia. Olhei para Kyle e suspirei. – Mas continuo tentando. Estou procurando por ela. Vou continuar procurando.

– Você está bem aí dentro? – Ian perguntou ansioso.

– Eu... eu não sei, é muito... esquisito. Tintim por tintim tão esquisito como trocar de espécie. Muito mais esquisito do que eu teria imaginado. Eu... eu não sei. – Peg respondeu um pouco desorientada.

– Você não se importa demais de ficar aqui, não é, Peg? Não acha que talvez você possa aguentar? - Ian meio perguntou, meio pediu.

Todos na sala na verdade, pareciam pedir isso a ela: Que ela ficasse, que fosse feliz aqui. Um sorriso conspirador cresceu em meus lábios, já sabendo a resposta. Como nós, almas que valorizavam tanto os sentimentos, poderíamos resistir a isso?

– Acho que posso fazê-lo. Se isso deixa você feliz. – Peg sussurrou. Ian não se deu por satisfeito.

– Não é o bastante, na verdade. Isso tem de deixar você feliz, também. - Ele disse num tom amável e ela baixou a cabeça, envergonhada.

– Eu... acho que... sim. Acho que isso pode me deixar muito, muito feliz. - Peg declarou, o que fez a face de Ian quase brilhar de alegria.

–Isso quer dizer que vai ficar. – Ele disse exultante e, no segundo seguinte, Peg estava recebendo um sereno, amoroso e puro beijo. Desviei meu olhar para Kyle novamente, parte por estar me sentindo invasiva ao ficar olhando o casal nesse momento intimo, parte por precisar olhar nos olhos dele.

Kyle percebeu meu olhar e me encarou de volta, me dando um sorriso satisfeito – Ele estava feliz por seu irmão, eu podia ver. Tudo tinha dado certo para Peg, enfim. Ela havia merecido. E, olhando agora para os olhos de Kyle... Bem, a esperança começou a tomar meu coração: Será que tudo daria certo para mim também?