Mundo dos Sonhos escrita por Trezee


Capítulo 35
A vaga, problemas e a onda


Notas iniciais do capítulo

Desculpe a demoooora.... tá tenso aqui :)



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                Na manhã seguinte, de fato era cedo quando Deni buzinou. Quase dei um pulo, pois ainda estava terminando de me trocar.

            - Bom-dia. – disse entrando pela porta de trás e me sentando sobre o couro macio.

            Minha simpatia foi retribuída, por mais que eu não estivesse nem um pouco simpática por dentro. Eu ainda estava incomodada com a nossa briguinha de ontem. Um simples “vamos esquecer” resolveria em outras vezes, nas brigas que geralmente eu saio machucada. Sei que parece auto tortura, mas não é. Enfim, esse caso era diferente, porque eu não saí machucada, quanto menos ele, no entanto eu senti que eu era fraca perto de suas atitudes, ou então ele era muito forte perto da minha cabeça oca, fazendo eu apenas concordar com o que ele dizia. Nunca permiti que ninguém fizesse isso comigo, porque permitiria a ele?

             Foi com esse raciocínio que cheguei à escola, muda e pensativa.

             Se Daniel achou isso estranho eu não sei, deve ter me achado esquisita por uns segundos, mas penso que não me perguntou nada além do necessário, justamente para não me irritar. Agora, isso tudo é o que eu acho que ele fez, ou melhor, o que eu gostaria que ele tivesse feito. Mas talvez seja uma mera fantasia da minha mente chata que faz uma redoma de vidro em torno da personalidade do Daniel. Sempre o tornando mais que perfeito. Às vezes queria viver só a realidade...

             E caminhamos lado a lado até a sala, em total silêncio. Chagando lá, coloquei minha bolsa em qualquer lugar e saí. Na classe do outro segundo encontrei uma rodinha com o Francisco, Roberto, Sara e Rafaela. Antes mesmo de dar um ‘oi’, prestei atenção nos seus rostos um tanto que tensos.

             - O que houve?

             - Nada de mais – respondeu Francisco, levando um chute básico de Sara. - Aiai! O que foi? Não é nada de mais mesmo! – retrucou bravo com o chute.

             - Lógico que é, puxa momento chato e você vem falar que não é nada de mais! – esbravejou Sara se esquecendo do grupo.

             - Precisa agir assim, agressiva?

             - Ah, eu mal relei o pé na sua per...

             - Chega vocês dois! – bufou Roberto quando eu já estava ficando zonza com o conflito. A relação entre eles estava assim diariamente e só tendia a piorar.

             - Deixa que eu falo... – começou Rafaela, dando um basta maior a todos. – O que aconteceu foi o seguinte: – seu rosto não tinha expressão nenhuma de felicidade – Todos aqui vão para Angra, todos já confirmaram e pagaram. Bem, eu só havia confirmado.

             Olhei para ela com mais atenção, já que seu rosto parecia estar prestes a contar ‘O fato comovente’.

             - Minha mãe veio pagar ontem de tarde e a tesoureira disse a ela que não seria possível, pois nós não pagamos no dia certo e minha vaga havia sido liberada naquela manhã! – as palavras delas soaram um tanto que familiar. – Agora, roubaram minha vaga e eu não vou mais poder ir! – ela murmurava com uma voz raivosa e triste ao mesmo tempo.

             Se eu sabia o que falar, minha mente então não conseguiu ser capaz de traduzir essa minha vontade. Só consegui soltar um breve “Ãhn?” diante da cena.

              - Sério Mel, estou muito brava! E ainda a mulherzinha veio falando que dadas às circunstâncias, ela precisou abrir mão da minha vaga para a menina que estava com o dinheiro no ato e tal. Mas poxa! Era minha, eu havia reservado, não tinham o direito de pegar! E agora, só vai dar eu aqui enquanto todos viajam felizes para Angra. Que raiva!

               Eu estava certa que a qualquer momento eu veria minha amiga estourar pelos ares de tão vermelha que ela estava. Parecia que a raiva do seu corpo estava afetando a pressão de sua cabeça, que passou a soltar fumacinhas. Mas é claro que somente a minha cor deveria superar a dela. A essas alturas eu já estava roxa, vermelha, amarela. Praticamente um completo arco-íris encurralado.

             - Preciso ir... – foi o melhor, ou o pior, que consegui dizer.

             Saí correndo daquela sala. Não, eu não estava com medo, eu estava é mal mesmo. Muito mal. Não queria de forma alguma encontrar mais um motivo para magoar a Rafaela. Já me bastava toda a trama que envolvia o Daniel, a qual eu não conseguia encontrar a solução por nada. E agora isto, mais uma encrenca secreta. Minhas relações com ela não poderiam estar mais estáveis.

             E o mais legal é que só eu sabia de tudo isso.

             Na verdade não, ou melhor, mais ou menos. Do primeiro problema, bem, este sim só cabia a eu torturar minha cabecinha. Mas já o segundo problema poderia ser compartilhado a dois. Uma maravilha de um problema a dois é bem melhor do que sofrer sozinha.

             Foi com esta conclusão que cheguei torturando a cabeça da minha pobre – mas nem tanto – companhia.

             - Eu vou matar alguém que se chama Daniel!

             - O quê? – os olhos azuis indagaram, refreando minha tortura que cortava a sala de aula.

             - Deni, você não tem a mínima noção do que aconteceu!

             - Se você for mais direta, talvez eu entenda.

             - Sua sinceridade me irrita. Mas enfim, eu preciso compartilhar meu desespero com alguém, então, não me interrompa!

             Respirei fundo e me sentei na carteira ao seu lado. É óbvio que o relógio conspirava contra mim e que o sinal havia tocado, mas eu precisava falar antes que o professor entrasse.

             - A vaga, aquela vaga que você tanto insistiu que eu pegasse ontem, lembra? Pois é, era a vaga da Rafaela. Minha amiga Rafaela. E agora, ela está na sala do lado com os nervos a flor da pele, querendo acabar com a raça da pessoinha que fez o favor de roubar a vaga dela. E acredite ou não, essa pessoa sou eu. EU! – sim, eu alterei minha voz um pouquinho.

             Baixei a cabeça e novamente fiquei sem reação. Eu comecei a rir histericamente por fora, mas na verdade minha mente estava aos prantos.

             - Para com isso Mel. Vão achar que você está ficando louca!          

             Olhei para a cara dele com um olhar fulminante entre meus risos.

             - E daí? Deixa eu rir! Só vim aqui compartilhar a trama. Pelo menos esta eu posso. – murmurei alto de mais.

             - Por quê? Qual outra você não pode?               

             - Ah... É... Daniel, para de fazer tantas perguntas e tenta pelo menos sofrer um pouquinho comigo!

             - Sofrer por quê? Oras, eu vou à viagem, você vai à viagem. Não há motivos para sofrer.

             Não, por favor, diga que ele não falou aquilo.

             - Egoísta! Como pode? – eu estava indignadíssima com a indiferença dele.

             - Poupe- me Mel, não estamos errados, não precisamos ficar mal.

             - Daniel, ela é minha amiga, como posso falar isso para ela?

             - Simples, não fale...

             Parei, sentei e olhei ao meu redor. Nada de professor ainda. Ainda? Olhei para o relógio e já havia passado dez minutos da primeira aula e nós estávamos lá, sem professor na sala. Mas de nada adiantou essa minha percepção inútil. Este tempo vago só me permitiu pensar mais e mais. Realmente, eu estava pensando na solução errada da situação errada. Era só não contar nada. Eu deveria? Por que eu deveria? Omitir verdades não é mentir, e sim poupar alguém de saber de algo que a machucaria. Isto não é ser má, é?

                 Não. Foi a conclusão mais reconfortante que encontrei. Omitir partes me serviriam muito bem de solução para todos os meus problemas.

                 - Acho que não vou contar. – sussurrei baixo para Daniel.

                 A parte do “acho” me traiu. Lembrou-me da parte da minha mente que se culpava e se torturava e acreditava veemente que eu estava sendo um péssimo exemplo de amiga. Parecia tirar toda a minha confiança e minha convicção. Mas o que eu posso fazer se eu vivo me traindo. É da minha concepção ser um paradoxo ambulante.

                 - É o melhor a fazer. – concluiu ele.

                 Foi aí que percebi que, ao contrário de mim, Daniel sempre estava muito seguro do que afirmava. Era isso ou não era, ponto. Com certeza dentro da cabeça dele não se encontrava nenhum campo minado que nem na minha. Eu queria aprender um pouco disto. Eu precisava.

                 O que eu já suspeitava se consumou. De fato o professor havia faltado, acontecimento este que poderia ser considerado um verdadeiro milagre.

                  Duas aulas vagas e um resto de dia calmo me fizeram relaxar um pouco diante da minha agitada vidinha adolescente. Pelo menos eu teria histórias para contar aos meus netos. Legal, que belos exemplos eu estaria dando. “Olha, – me imaginei gagá – minta para sua amiga, roube a vaga dela e vá para uma viagem, você não vai se arrepender meu netinho...” Será? 

                  Essa droga de culpa me perseguiu por quase todo o caminho de volta. O ônibus já estava praticamente em Paineiras e eu estava perdida na minha cabeça. Foi somente então que Daniel resolveu me salvar do afogamento de idéias.

                  - Se pensar mais, ira fundir a cabeça.

                  - Para de brincar com isso, é bem sério. Se você tivesse mais amigos entenderia... – falei assim, com as palavras soltas pulando da minha boca pensativa. – Na... Não Daniel, não foi isso que quis dizer...

                   Mas já havia dito. Idiota, idiota, idiota. Eu simplesmente fui uma insensível falando assim. Que cruel dizer isto para alguém, principalmente se este for o alguém quem você ama.

                   Olhei para ele com uma culpa no coração. E ele ainda me olhava, só que sem o brilho nos olhos.

                   - Daniel me desculpa, por favor. – pedi.

                   - Não faz mal... – sussurrou ao meu lado.

                   - Não, eu fui muito idiota falando assim, é claro que você tem amigos, um monte na verdade.

                   Tentei sorrir e reparar meu erro, mas a situação parecia não ter nem se alterado.

                   - Você não está errada, não precisa se desculpar. – ele passou a olhar então para as árvores que corriam lá fora.

                   - Deni...

                   - Mel, o que eu tenho é um monte de colegas com os quais me relaciono e passo os dias. Não sei se seria capaz de sofrer tanto por um deles, principalmente se o motivo fosse tão besta. – continuou a olhar para fora. – Você sabe muito bem, não sou de muitas palavras.

                   Seus dizeres pareciam frios, vazios. Vinha de uma voz funda e triste, sozinha. Fiquei com pena, mas não sabia do que. Fiquei com medo, mas também não sabia o motivo. E, de tanto não saber nada, resolvi perguntar.

                - Mas e seus amigos? Você sempre teve amigos antes do acidente... Você tem uma banda, um passado que ainda existe!

                - Seu ponto...

                - O quê?

                Ele não falou nada, só mexeu com a cabeça, inclinando-a para uma esquina. De fato meu ponto chegara.

                Não falei tchau, nem ele falou também. Lá fora olhei para a janelinha que ele estava encostado. Trocamos um breve olhar, talvez eu tenha visto um aceno, mas se realmente vi, que seja, pois não retribuí.

               Entrei em casa, não estava incomodada com o que havia se passado com o Daniel. Talvez devesse estar, mas não iria valer a pena. Eu queria mesmo era resolver tudo por todos.  Sem sofrer, sem magoar.

                Talvez errei falando aquilo, talvez errei mais ainda persistindo na pergunta, mas a cada vez que uma nova interrogação surgia na minha mente ela nunca era respondida. Nunca. E era exatamente esse um dos fatores que estavam ajudando minha cabeça a explodir. A falta de respostas, aquele ar sempre indecifrável. Chegava até ser tenso.

                Mas acho que eu já estava aprendendo a me acostumar. Não que alguém consiga se acostumar com as dúvidas, porém eu tentava ao máximo me contentar com as minhas certezas, ou melhor, com as minhas quase certezas, que às vezes eu até esquecia quais eram.

                 Fui para o Tênis sem a mínima vontade. Arrastei minha raquete para a aula e tentei ao máximo descontrair toda minha angustia naquelas bolinhas verdes que quicavam e eram rebatidas com todas as minhas forças. Mas isso não era sinônimo de que eu estava jogando bem. Penei diversas vezes a bolinha, pois eu simplesmente batia sem objetivo, somente com a força.

                  Será que eu estava transformando minha vida em uma bolinha de tênis? Chutando os dias para que eles apenas passassem, encarando com força meus problemas, sem obter a clareza do raciocínio. Apenas engolindo tudo o que eu teria que dizer, fazer, agir; sendo sempre uma fortaleza indestrutível e que não se abala para os outros, somente se curvando em lágrimas quando se encontra só, perdida nos pensamentos, vagos que sejam, mas que nunca param de atormentar uma cabecinha que tenta sempre sofrer mais pela dor dos outros do que pela de si mesma. Será que eu estou ficando assim?    

                  A resposta quicou na minha frente e eu a rebati com força. Havia penado mais uma bolinha.

                 

                  Em casa, depois do meu desastroso treino, fiquei pensando. Grande novidade, mas desta vez eu não só estava pensando, mas também estava tirando conclusões destes meus pensamentos.    

                  Os fatos relacionados ao Daniel eu até já deixava de lado, pois se eu fosse pensar neles, teria que me trancar no meu quarto por uma semana, pensando e remoendo tudo que não tinha resposta, só para chegar ao final e concluir que de fato eu ainda iria ficar sem as respostas. Então foi por isso que coloquei esses pensamentos de escanteio.

                  Voltei para minha crueldade. Eu seria uma péssima amiga se eu não contasse tudo que estava acontecendo para a Rafaela. Sei que eu já havia decidido não contar, mas essa culpa estava me consumindo, não era eu. Quer dizer, era eu, mas não era a Mel que eu conhecia, a que faria de tudo para ajudar a amiga nas conquistas amorosas e que jamais esconderia o fato de ter ocupado a vaga dela em uma viagem. Bem, eu estava um tanto que irreconhecível, ou melhor, conhecendo um lado meu que até então deveria estar adormecido, sei lá. Um lado que foge dos princípios e da razão. Não é um lado mau nem perverso. Cruel também não, é exagero pensar assim, mas é um lado por enquanto considerado peculiar. Sim, peculiar, penso ser essa a melhor descrição para o desconhecido.

                Quando deitei na cama, meus ossos se apoderaram de cada pequena fenda de colchão que puderam encostar. Eu havia pensado o dia inteiro e exercícios mentais cansam, e muito!

                Dormi com as mesmas conclusões que eu já tinha. Era de praxe raciocinar, raciocinar e não sair do mesmo lugar. Mas eu era teimosa, não sabia a hora de parar. Então, fiquei na mesma, sem contar, presa no meu peculiar eu.

                 Logo cedo o Daniel passou na minha casa. De novo. Eu já estava me sentindo mal, parecia que eu estava abusando da boa vontade do senhor Floukin, mas Deni continuava insistindo na carona.

                 Preferi não trocar muitas palavras no carro, nada que não ultrapassasse o essencial. Meus dias com o Daniel não estavam nos melhores, estavam sensíveis e delicados. Era melhor não incrementar muito as coisas para ver se tudo se ajeitava mais rápido.

                  - Tchau, obrigada!

                  Disse fechando a porta e andando para dentro da escola. Logo Daniel me alcançou e eu disse uma verdade, que ao mesmo tempo era uma fuga.

                  - Estou com dor de cabeça...

                  - Forte?

                  Olhei para ele e assenti.

                  - Uhn... Por algum motivo?

                  - Acho que pensei muito ontem... Não deve ter feito bem para meu cérebro tanto exercício.

                  Ele soltou um risinho, mas não se empolgou muito, pois sabia muito bem que tinha uma boa parcela de culpa nos meus pensamentos.

                   - Pensou em mim?

                   Sim, essa foi uma pergunta inusitada que me obrigou a parar e olhar para seu rosto. De início eu não sabia o que falar. Não sabia ao menos que tipo de resposta ele gostaria de ouvir. Então, fugi pela alternativa mais sensata.

                    - Não... Dá muito trabalho pensar em você. – por incrível que pareça, não é difícil dizer a verdade.

                    - Trabalho?

                    - É... Sabe, pelo menos ontem eu tinha motivos muito importantes para pensar... – vi seu rosto perder um pouco do brilho – Na... Não que você não seja importante. – gaguejei na minha tentativa frustrada de melhorar as coisas – Mas é que quando penso em... em você, fico sem muitas respostas, então tenho que pensar de novo, e de novo e isso acaba me desgastando mais ainda...

                    E depois de todo esse meu desabafo, ele apenas olhou para o nada e continuou andando do meu lado.

                    Fiquei alguns segundos indignada com a falta de continuidade do meu raciocínio, sem ao menos um comentário. Foi então que um pouco antes de entrarmos na sala ele parou e debruçou em uma grade de ferro.

                    - Não quero que você fique assim... – murmurou.

                   Eu até estranhei a parada repentina. Tive que dar uns passinhos para trás para me colocar ao seu lado.

                    - Assim como?

                    - Confusa.

                 Olhei para ele. Estava me fitando com os olhos azuis tensos e intensos.

                  - Não é confusa, é sem resposta! – conclui.

                  - E qual a diferença?

                  Quis muito, mas muito mesmo falar uma coisa, porém me contive. Usei desse espaço para não falar nada. Talvez assim ele entendesse um pouco o que eu sentia. Fiquei muda e dei os ombros. O professor estava chegando, então não houve mais nenhum movimento inesperado que fosse além de entrarmos e sentarmos. Agora, os dois mudos.

                   Durante a aula fiquei mastigando e remoendo a minha fala não dita. “A diferença é que eu não estou confusa com o que eu sinto, e sim, não tenho respostas a respeito do que você quer”. Era exatamente isso que minha lucidez me impediu de dizer, mas que mesmo assim não iria sair tão fácil da minha cabeça, que tornava a latejar.

                   Fiquei quieta por toda a manhã. Parte motivada pela dor incessante, outra parte, uma bem grande, porque eu não queria conversar mesmo, só queria tranqüilidade e sossego na minha cabeça. Mas para todos que perguntavam, eu falava somente da dor de cabeça que estava me matando. Francisco e Joana talvez não tenham caído nessa. Sabiam que eu queria mesmo é ter meus momentinhos de paz e, como eu sabia que eles saberiam, nem precisei dizer nada, eles só me lançaram um olhar compreensivo e saíram. Já era intervalo.

                   Enquanto eu curtia minha carteira dura que já estava latejando as costas, ouvi uma vozeia chamar meu nome. Olhei para a porta, com a cara toda amassada e vi a figurinha da professora Bete.

                   - Melinda querida, você está bem? – perguntou.

                   - Estou... Bem, é só uma dor de cabeça. – murmurei.

                   - Ah claro... Então trate de se cuidar para estar bem no sábado. Vim aqui lhe avisar justamente isto. Lembra-se da Olimpíada de Física? Pois então, será realizada este sábado, aqui na escola mesmo às 14hrs...

                   Ela falou tudo tão rápido, tão agudo que demorou para minha dor latejante permitir que eu processasse as informações rapidamente.

                    - Ãhn...? – murmurei involuntariamente. Mas antes que ela começasse a falar tudo de novo, a informação processou. – Ah sim, acho que entendi. – sai do meu estado de ameba. – Então sábado, já?

                    - É, a organização preferiu adiantar um pouco... mas e então, posso contar com você?

                    Corri vagamente meus pensamentos para a data e não encontrei obstáculo nenhum.

                    - Claro... – murmurei um pouco sem ânimo.

                    - Perfeito então.

                    Mal ela deu as costas e eu já estava debruçada novamente na minha carteira, que foi minha maior companheira até a hora que bateu o sinal final.

                    - Até que enfim... – sussurrei para mim mesma.

                    Fui vegetando para o ponto ao lado de Daniel. Eu não queria começar o assunto da viagem novamente e pelo visto ele também não. Então ficamos ora bem quietos, cada um nos seus pensamentos e ora falando de nada. Pelo menos de nada que fosse construtivo, apenas assuntinhos bobos para passar o tempo.

                     Já estávamos dentro do ônibus quando, depois de um silêncio sepulcral comecei a falar da prova de Física.

                     - Ainda bem que a Professora Bete tem alguns gênios em física, por que se dependesse de mim para algo, o nome da escola estaria na lama. – concluiu depois de ter me ouvido falar sobre a olimpíada.

                    - Ah, nem é para tanto... Eu só tenho facilidade com os números. Isto não quer dizer que eu esteja pronta para uma prova mais difícil!

                    - Não vou nem comentar esta Mel. – retrucou com seu sarcasmo infalível – E por falar em provas... Droga! Recebemos o calendário das bimestrais hoje. Semana que vem não vai dar nem para respirar de tanta prova que teremos. – ele não conseguia parar de resmungar.

                    - Ei, calma! São só umas provinhas. Parece que você está se referindo a uma seção de torturas.

                    Ele riu olhando pela janelinha.

                    - Tortura... Não, é muito exagero comparar provas com torturas.

                    - Por que, provas são piores que torturas? – comentei.

                    Ele fechou o risinho olho para mim e apenas balançou a cabeça.

                    - Está bem então, pessoa que sabe o que é uma tortura. – disse brincando e dando um tapinha no seu ombro.

                    Ele não teceu nenhum comentário a respeito desta minha brincadeira, o que eu achei muito estranho. Temi que eu tivesse dito a coisa errada e provocado aquele clima tenso que sempre fica entre nós e que eu já estou farta de conhecer. Mas para minha felicidade instantânea, a tensão passou rápido.

                   - Vou ter que me matar...

                   - Hã? – fui pega despreparada pela sua reação repentina.

                   - De estudar para as provas.

                   - Ah sim... – ainda estávamos no mesmo assunto. – Nem precisa tanto, as matérias estão fáceis.

                   - Você pode me ajudar com física? – perguntou enquanto eu ficava de pé.

                   - Claro.

                   - Prometo que desta vez não acontecerá nada de ruim.

                   Franzi os cenhos sem entender, quando uma pontada insana perfurou meu estômago. Eu havia me recordado muito bem do último dia em que iramos estudar. Não foi nada agradável, principalmente para minha pobre raquete.

                   Tentei disfarçar minha palidez repentina e dei um tchauzinho rápido. Pulei do ônibus e finalmente estava em casa depois daquele dia cinza.

                    Eu me senti um robozinho durante a tarde toda. Falei com meu pai, arrumei as coisas, comi, estudei, mas tudo mecanicamente, praticamente não processei nada do meu dia. Tudo que entrava saia tão rápido quanto da minha mente.

                    De noite deitei e dormi rápido, mesmo sem estar com a mínima vontade de pregar os olhos. Pelo menos isto foi bom para acabar rápido com o dia chato e para dar uma chance mínima de esperança, torcendo desesperadamente para que o dia seguinte fosse melhor.

                    Mas não foi.

                    Senti que tudo estava caindo na mesma rotina de sempre, nas mesmas perturbações, nos mesmos problemas. Não conseguia encontrar algo novo para pensar que não fosse um motivo já existente e triturado pela minha mente por mil vezes.

                    Passei mais um dia nesta mesma angústia. Pelo menos ela era novidade para mim e para todos. Eu sempre fui a mais alto astral, a positiva que sempre fazia os outros rirem no momento de silêncio, quem sempre estava ali para tudo, mas que agora não estava mais. Eu não me sentia mais presente onde eu deveria estar. Estava presa e precisava sair do meu cubículo idiota de pensamentos. Mas estava tão difícil conseguir fazer isso. Estava tão difícil encontrar ânimo para fazer isto que eu sempre estava deixando para depois e depois. Embora esse depois não chegasse nunca.

                 A semana estava acabando eu ainda estava no meu estado de lamentos. Pelas minhas contas eu não havia saído da sala em nenhum intervalo nos últimos três dias e rejeitado qualquer tipo de carga de ânimo que meus amigos tentavam me dar. Joana, Francisco, Sara e Roberto tentaram várias vezes conversarem comigo, perguntando sempre a mesma pergunta sem resposta. Eu teimava que não era nada e que logo iria passar.

                 Sim, eu estava em crise, crise total. Meus neurônios haviam se fundido de tanto pensar e ficar batendo na mesma tecla. Doía, latejava, talvez por isso eu estava sem vontade de conversar, pois eu sabia muito bem que conversa era sinônimo de informação e que novidades me fariam pensar. E eu não queria pensar em mais nada de novo antes de gastar todos os pensamentos que estavam buzinando na minha cabeça.

                Foi então que a sexta feira se tornou um pouquinho diferente dos outros dias.

                - Mel? – ouvi sua voz pela primeira vez em três dias. – O Roberto falou que você ainda estava aqui na sala... Ele falou também que você não está muito bem... Quer conversar sobre algo?

                “Sim, sim, sim!!!” Eu quis gritar bem alto, mas o máximo que fiz foi levantar a cabeça da carteira.

                 - Nossa, você está bem pálida... deve estar doente. Já comentou com sua mãe que não está bem? – a voz de Rafaela cortava meu ouvido e eu pude ver o quanto isso me doía.

                 - Eu estou bem, só estou com dor de cabeça... vai passar. – murmurei entre os dentes. Queria chorar.    

                 Ver a minha amiga e não ter coragem de falar nada me trouxe uma inquietação horrível. Era um simples problema adolescente que estava me matando. Eu não poderia deixar uma coisa dessas chegar a proporções tão imensas. Era praticamente inaceitável. Havia coisas muito mais importantes na vida do que esses problemas que podem até mesmos serem considerados fúteis por muitos. Só eu não enxergava isto.

                Abaixei a cabeça de novo e continuei a raciocinar. Eu sabia que não ia conseguir dizer nada para Rafaela e que todo o meu drama inútil de fato iria passar, mas eu não estava mais assim somente pelos meus problemas adolescentes, eu não estava naquele estado depressivo somente por isso. Sentia como se fosse uma máscara, uma grande máscara que estava encobrindo um problema bem maior. Eu sabia que o real motivo estava ali, bem dentro de mim, porém eu estava me sentindo incapaz de identificar. Fraca o bastante para lutar contra ele e desvendá-lo. E enquanto isso, ele só me consumia aos pouquinhos, gerando uma grande bola de neve na minha cabeça.

                E de repente eu me senti só. Muito só. Eu já havia sentido isso antes, mas novamente eu não conseguia me lembrar quando. Eu poderia estar na sala ainda, Rafaela poderia estar diante a mim, só que era como se nada mais existisse além de um aperto enorme que estava no meu coração. Tudo ficou frio, minhas mãos congelaram no meu bolso. A luz não passava de uma penumbra que teimava a passar pelas minhas pálpebras semicerradas e ainda doía. Muito.

                 O vazio, o medo, o desespero tomaram conta de mim. Eu não sabia por que eu estava me sentindo assim. Só queria chorar e chorar, sentir que meu chão ainda estava ali. Mas eu não conseguia senti-lo. Queria muito poder sentir que eu ainda estava presente no meu mundo, que eu ainda existia e que a vida ainda tinha uma razão, mas nada respondia aos meus sentidos além daquela perturbação imensa que caia sobre mim.

                 E eu já não estava mais sentada, já não estava mais sozinha. Pelo menos não sozinha na sala. Pude perceber vários rostos olhando para mim, perplexos com meu estado. Senti também o chão frio que eu estava sentada agora, agarrada as minhas pernas e em forma de bola, chorando com os olhos vazios e desesperados. Ouvi vagamente vozes murmurando ao meu redor bem quando ouvi aquela voz. Não era nenhuma voz que eu pudesse esperar em ouvir. Era a voz que um dia já foi convidativa, mas que agora aparecia nos momentos que eu menos esperava, na minha lucidez. Ou pelo menos quase lucidez, já que eu acho que não estava sonhando.

                   - Siga... – murmurou dentro de mim.

                   Foi então que senti meu corpo ser envolto por dois braços que me seguraram e apertaram com tanta força que quase não tive tempo para respirar. Eu estava com os olhos fechados, mas não quis abri-los para ver quem era. Eu sabia quem era. Eu, que estava tremendo, fui afrouxando aos poucos meus braços e liberando minhas pernas que estavam até vermelhas de tanto serem esmagadas pelos meus braços. Tentei respirar fundo mesmo que meus soluços repentinos deixassem essa tarefa um pouco complicada. Tentei clarear a mente, absorver a paz instantânea que conseguia encontrar no ar, o sentimento de alivio que chegava e tornei meus braços envoltos também ao corpo que me abraçava.

                   - Obrigada – sussurrei no ouvido de Daniel.

                   - Desculpa... – sussurrou ele no meu.

                   Abri meus olhos devagar e olhei ao meu redor. Tudo ainda estava zonzo, mas eu pude muito bem ver vários alunos olhando espantadas para mim. Nenhum que eu conhecesse de fato. Dos meus amigos estava ali apenas Rafaela que me fitava pasma com a mão na boca.

                    - Onde está ela? – disse nervosa a inspetora que chegou correndo pela porta, empurrando um garotinho da sua frente. - Melinda você está bem? - falou abaixando-se ao meu lado, enquanto Daniel se levantava.

                    - Acho que sim... – murmurei.

                    - O que aconteceu com você? Uma menina foi correndo me avisar que você estava tendo um ataque. Que ataque? O que foi isso?

                    - Eu...Eu não sei o que aconteceu...

                    - Rafaela, o que você viu? – perguntou encarando-a.

                    - Na hora em que eu fui te chamar, ela estava chorando muito e havia começado a se agarrar toda. Eu tentei, juro que tentei falar com ela, mas parecia não me ouvir! – a voz dela estava tremula.

                    - Vou ligar para virem te buscar, pelo visto você não está nada bem... Acho melhor sua mãe te levar ao médico.

                    - Estou melhor. – insisti.

                    - Sem condições Melinda... Está claro que você não está bem. Venha. Vamos a minha sala para você descansar. Está pálida demais.

                    Eu não tinha opção. Levantei com as pernas tremulas e fui cambaleando atrás da inspetora. Eu não queria, mas sentia que se eu não seguisse sua ordem, iriam achar que eu estava mais maluca do que realmente eu aparentava.

                    - Irei ligar para seus pais virem te buscar, Mel. – disse ela assim que cruzamos a soleira da sua porta.

                    - Não! Quer dizer... Acho que não será necessário. Eu estou bem melhor. – não sei porquê, mas eu não queria que minha mãe ficasse sabendo disso. Ela iria se preocupar de mais, iria achar que eu estava com algo mais grave, talvez doente. Só que eu não estava com nada disso. Eu sentia que não.

                    - Melinda, dá para ver que você não está bem, até porque esta não é a primeira vez que você passa mal nos últimos dias, não é? – ela me encarou como se seus olhos me condenassem por eu omitir partes importantes.

                    - Como? – murmurei de mãos atadas.

                    - Sua amiga, Rafaela, quando veio me chamar, estava aflita, pois ela falou que você havia desmaiado no banheiro. Mel, você já está bem grandinha para entender que pode ser algo mais grave. Tudo isso, desmaios, tremores, não são sintomas comuns. Eu, como responsável dos alunos, preciso avisar seus pais.

                    - Ótimo então. – murmurei me sentando na poltrona da salinha. – mas não vai adiantar nada ligar agora, pois meu pai não pode vir me buscar e minha mãe deve estar trabalhando. – eu geralmente não ficava de mau humor, mas excepcionalmente naquele instante, era como se uma TPM insana subisse na minha cabeça. Eu estava de bico e falando entre os dentes.

                    - Não faz mal, eu ligo no serviço da sua mãe para ela vir te buscar.

                    - Não dá. – resmunguei. – Ela não dirige... Eu vou embora de ônibus todo o dia.

                    - Mas não tem mais ninguém que possa te buscar?

                    - Não.

                    Ela ficou em silêncio por um segundo e eu pude sentir minha cabeça começar a latejar de novo. O que estava acontecendo comigo? De fato tudo o que aconteceu não era normal. Primeiro o desmaio e agora isso.

                    Minha cabeça começou a doer mais e mais ao passo que eu tentava imaginar o que ocorrera. Bem, eu estava melhor, pelo menos melhor do que eu estive há alguns minutos. Só que dava medo lembrar-me de tudo que eu senti enquanto estava só. Toda aquela dor que fincava agulhas no meu cérebro. Eu não me sentia capaz de entender o que estava acontecendo dentro de mim. Que conflito se passava na minha cabeça.

                   Foi então que alguém bateu na porta, que estava fechada.

                   Eu nem olhei para a inspetora enquanto ela girava a maçaneta. Não queria parecer mal novamente, então estava com a cabeça baixa, esperando que a dor passasse.

                   - Posso falar com a Melinda? – sussurrou uma voz do outro lado da porta.

                   - Acho que agora não... Ela ainda não está bem. Depois, talvez. – a porta se fechou e eu levantei a cabeça rapidamente.

                   - Eu já estou melhor! – disse forçando uma voz sadia. Ouvi claramente que era a voz do Daniel e eu queria desesperadamente falar com alguém.

                   - Sei que sua cabeça ainda dói. Não precise fingir que está melhor. Só quero que você melhore. – suas palavras fluíram com sinceridade e pela primeira vez, de fato me rendi. – Eu não posso ficar aqui o resto do dia, mas você pode ficar descansando aqui durante o período, até você ficar melhor. Vou tentar entrar em contato com alguém. Não se preocupe, caso você não melhore, nós daremos um jeito, sempre damos! – ela sorriu para mim e saiu, deixando-me sozinha na pequena sala.

                  Tentei me aninhar na poltroninha para realmente ver se com um instante de repouso, minha mente se acalmava. Só que esse meu instante logo foi interrompido com o toque do sinal. Depois de eu quase ter caído de susto, tentei acalmar meu coração e me concentrar na dor de cabeça. Não era normal uma dor que durasse tanto, ela teria que passar.

                  Fechei meus olhos e tentei esvaziar a cabeça, talvez dessa maneira tudo se encaixasse melhor. Minha mente já estava sendo levada pelo modo tranqüilo que eu a forçava a se encontrar, quando senti uma mão no meu ombro. Poderia ser um sonho, mas o chacoalho que ela me proporcionou foi bem real.

                  - Mel, não dorme! – sussurraram nos meus ouvidos.

                  Eu quis abrir meus olhos, eu sabia quem era, mas minhas pálpebras pareciam estar encantadas pelo sono repentino que me atingira.

                  - Mel, Mel, abra já esses olhos! – ordenou novamente.

                  Eu não queria, mas virei minha cabeça para o lado e sussurrei:

                  - Me deixa dormir Daniel...

                  - Não, não deixo Mel! Acorda... – ele tentava gritar sussurrando.

                  Mas eu não me rendia por nada. Foi então que senti agora suas duas mãos nos meus ombros. Elas não estavam mais me chacoalhando, e sim me colocando de pé e tentando me sustentar.

                  - Daniel, o que está fazendo? – perguntei um pouco zonza, mas ainda com os olhos fechados. Há muito tempo que eu não me sentia com tanto sono que nem eu estava sentindo. Era bem mais forte que a minha vontade de conversar com Deni.

                  - Se você ainda não percebeu, estou tentando te colocar de pé. Vamos lá Mel, colabore!

                  Não dava. Em um momento fiquei com pena do esforço inútil de Daniel que até tentei firmar meus pés no chão, porém fique apenas na vontade, pois não consegui realizar minha pequena façanha.

                  Foi aí que eu comecei a me preocupar. O que antes soava engraçado passou a ficar sério. Por que eu não conseguia controlar meu sono? Se antes eu não queria abrir os olhos, já agora eu quero.

                  Mas minha vontade foi em vão e eu ainda me sentia uma gelatina nos braços de Daniel.

                  - Vamos Mel, força... – sussurrava Deni.

                  - Não... – murmurei.

                  Meu corpo parecia agir com vontade própria. Tonto, inerte a qualquer sensação. Eu nunca sentira algo parecido durante toda minha vida. Na verdade, os últimos dias estavam repletos de novas sensações. Eu, que nunca fui de dormir facilmente, agora me encontrava no estado mais patético que o sono poderia me proporcionar. Parecia um zumbi de olhos fechados, lutando contra as pernas que teimavam em se sustentarem.

                   Eu já não sabia mais se eu queria acordar ou me entregar àquele sono persistente. Nunca precisei travar uma luta dessas com meu subconsciente, era algo novo, totalmente novo. Então precisei pensar rápido, antes que eu apagasse de vez.

                   Dormir ou não dormir, eis a questão.

                   Era ridículo pensar assim, era só um cochilinho, tudo que minha mente precisava para se recuperar daquela dor infernal. Não conseguia entender porque Daniel queria me privar deste meu momento. E foi quase no momento em que eu optara por dormir que um novo solavanco agitou meu corpo.

                   - Mel, por favor, eu já disse! Não dorme...

                   Minha quase tentativa de dormir se expirou por um instante, já que todo meu corpo fora atingido pela vibração proporcionada por Daniel. Era fato, ele não iria desistir. Por quê?

                   E foi neste exato instante, quando a pergunta teimosa inundou toda minha mente, que meu cérebro se sentiu farto de tanto ser questionado. Não senti muita coisa a partir daí, apenas tive certeza que eu não ouvia mais a voz de Daniel soando nos meus ouvidos, mas sim minha própria voz buzinando na minha cabeça. Era incrível, nem eu mesma conseguia me deixar em paz.

                   Tentei ficar muda por um instante, uma vez que minhas palavras não passavam de frases em filandês, já que eu não conseguia entender um dito sequer.

Quando consegui finalmente me calar, era como se um fardo enorme que estava pendurado na minha cabeça, caísse sem volta, desprendendo minha mente e levando-a para um estado bem oposto do esgotante em que ela se encontrara. Era tão bom.

                   Tão bom que não fui nem capaz de me questionar por que Daniel queria me privar daquela paz. Tão bom que eu não sentia mais dor, nem medo e nem receio de me entregar por um instante. Tão bom que eu nem liguei para o escuro que minha mente se afundava, já que era desse escuro que estava vindo tamanha tranqüilidade. Tão bom que entre o silêncio, depois de um longo momento repleto de nada, uma voz, uma única voz ecoou pelo infinito incolor soando como uma intensa canção de ninar. Eu jamais sonhara daquele jeito.

                 E a voz foi se intensificando, criando forma e volume. Era como se fosse possível ver e identificar o som. Uma estranha sinestesia curiosa, já que eu quase pude ver uma onda dançando ao meu redor, leve, terna e destemida. A onda progredia sem parar por todos os lados e eu me sentia envolta pelas palavras, como se elas fluíssem com uma destreza inigualável.

                Senti como se uma seda, a mais pura das sedas me envolvesse e roçasse na minha pele. Eu simplesmente não conseguia me ver, mas era como se eu estivesse ali, dentro da minha própria mente, sentindo meus próprios pensamentos.

               A cada vez que eu tentava pensar, era como se a onda viesse mais forte e a canção mudasse de ritmo. Antes era uma canção de ninar, e em nada eu pensava; agora já estava mais rápida, mais viva, e eu tentava pensar o que era aquilo que me envolvia.

               Foi então que por um segundo parei de pensar e a canção se acalmou, mas foi por uma fração de segundo, pois muito de repente uma onda de pensamentos literalmente inundou minha mente. Tudo que eu estava tentando evitar por alguns minutos tomou conta da onda, tomou conta da canção e eu me senti acuada diante da imensidão que se aproximava.

               Minha minimização foi enorme. Eu parecia uma formiguinha presa em uma gota de chuva. Pude sentir a textura sedosa que a onda de palavras passou a me envolver com uma incrível força. A canção poderia ser um rock metal que ainda estaria leve para a situação. Mas não era um rock que tocava, era um ritmo que eu jamais ouvira. Não trazia paz, não trazia calma. Não trazia energia e nem espontaneidade. Era cruel de certa forma, talvez macabro e insano. Uma mistura de medos talvez, que se traduziam em uma onda agressiva que estava quase esmagando meu corpo.

               Tentei gritar, mas fiquei só na tentativa. Eu já havia sido vencida pela onda.

            


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Notas finais do capítulo

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