Mundo dos Sonhos escrita por Trezee


Capítulo 33
E ela se apaixonou, Piquenique furado, lembre-se


Notas iniciais do capítulo

Espero que tenham gostado do ultimo caps... malz a demora pra essa postagem hauahuahau



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/151968/chapter/33

              A essa altura da conversa já estávamos praticamente na frente da minha casa. Despedi-me rapidamente para meu pai não me encher mais o saco do que deveria e entrei.

              Voei para meu quarto, para não dar tempo de ninguém vir resmungar atrás de mim. Mas creio que não fui muito rápida, já que meu pai cruzou comigo assim que eu subi as escadas.

              - Melinda, você percebeu que já está tarde? – disse com uma mão na cintura e outra apoiada na muleta.

              - Pai... Você não pode ficar abusando e andando pela casa! – disfarcei tentando bolar uma boa desculpa.

              - Nem pense em mudar de assunto mocinha. – ele falava com se eu ainda estivesse na primeira série. – Vamos, por que chegou tão tarde?

              - Não é tão tarde pai. Oras, era o ensaio da banda, uma reunião de jovens! – Gesticulei ao máximo. Tinha que parecer convincente. – Sabe como é, ficamos conversando sobre vários assuntos e acabamos nos desligando do relógio. Depois, a mãe do Daniel serviu um lanchinho e nós ficamos ainda mais alheios ao tempo. Desculpe. – de fato, meu rosto não ficou muito diferente do Gato de Botas do Shreek.

                Ele revirou um pouco os olhos, mas cedeu.

                - Está bem Mel, vou te poupar das minhas implicâncias por hoje. Mas não é para ir se acostumando.

                - É claro que não! – abri um sorriso e fiquei nas pontas do pé para beijar sua testa. – Te amo pai!

                - Não fale assim que eu desconfio... – gargalhou comicamente.

                Sem muita pressa arrumei minhas coisas, jantei e fui me deitar. Meu objetivo era dormir, mas logo percebi que esse feito era quase que impossível sem antes eu pensar um pouco. Havia, no entanto, muito no que se pensar.

                Fechei os olhos e comecei a imaginar toda a situação que Deni me contara. Não, na verdade comecei me lembrando do ensaio e o quanto eu fui ciumenta. Aquela Natalí iria me dar muito trabalho ainda e eu teria que estar pronta para enfrentar a concorrência. Por sinal, uma forte concorrência.

                Depois veio a cena ridícula em que passei a interrogar Deni como se ele estivesse falando dessa Natalí. Mas eu sou a tola da história, como sempre, e meti os pés pelas mãos, já que Deni queria me contar uma coisa muito maior, talvez a maior de sua vida. Que idiota que eu fui.

                Comecei a tremer bem aí, quando tentei projetar feito um filme toda a história que ouvira. Sem sucesso. Parei minha projeção no meio, antes que qualquer coisa acontecesse. Foquei meus pensamentos em Sofia. Como será que era a pobre irmãzinha de Deni? Tudo sobre ela soa ser tão frágil...

                 Foi então que lembrei do final da nossa conversa. Sei que pulei metade da história, mas não tinha importância naquele momento me lembrar sobre tudo o que eu ouvira o dia inteiro. Eu só precisava me focar em uma única preocupação. Talvez a maior que existisse entre mim e Deni.

                “Evitar as perguntas”

                Pude ouvir como se a voz de Deni falasse dentro da minha mente. Seria bem difícil para uma pessoa curiosa como eu, não fazer perguntas. Principalmente depois de momentos tão questionadores como os de hoje. Mas eu teria que ser forte. Na verdade, nós teríamos.

                Virei de lado e o travesseiro mais parecia uma pedra debaixo da minha cabeça. Eu não queria dormir, mas também não queria mais pensar. Meu cérebro já estava latejando de tanta informação que arrecadara em um único dia. Era incrível.

                 Relutei bastante deitada, estava frio e meus pés começaram a congelar. Fiquei com preguiça de buscar uma meia e encarei isso como um sinal positivo, parecia que o sono estava chegando.

                 Se o sono chegou eu não sei. Só sei que abri meus olhos e ainda estava escuro, mas eu parecia bem descansada. Passei a mão sobre o criado-mudo e peguei o despertador. Eram quase seis e quinze.

                 O bom era que eu havia dormido. O ruim era que eu havia acordado. Mas acordado muito cedo. Eu poderia muito bem virar para o lado e ficar tentando dormir, só que se eu dormisse por algum milagre, eu sei que não acordaria tão rápido e nada me derrubaria da cama. Esse não seria um grande problema nos outros domingos, porém nesse seria.

                 Toda a turma combinou de fazer um piquenique no parque como de costume. Nossos piqueniques sempre começam de manhã, então era de extrema necessidade estar acordada e esperta logo cedo.

                 Pulei da cama e joguei as cobertas longe. Espreguicei e dei uma longa bocejada. Pude sentir cada vértebra das minhas costas estalarem e isso foi muito bom. Passei a mão no rosto, ainda todo amarrotado e juntei algumas coisinhas para levar ao banheiro.

                  Tentei agir com o maior cuidado e silêncio que pude. Não era porque eu havia acordado com as galinhas que teria que acordar a casa inteira. Sei que se isto acontecesse, eu levaria uma bronca básica do meu pai. Ou até talvez não, já que ele não teria como usar seu argumento de praxe: “Acordei cedo a semana inteira para trabalhar e você me acorda cedo até aos domingos?”.

                 Nem percebi as horas passarem enquanto não fazia nada no meu quarto. Logo todos já estavam acordados e a hora do piquenique já estava quase chegando.

                 - Você já arrumou tudo Mel? – gritou mamãe da cozinha.

                 - Já mãe! Fatiei a torta e coloquei naquele potinho de tampa azul, está bem?

                 - Qual de tampa azul? O que estava em cima do fogão?

                 - É oras... – torci o nariz perante a discussão inútil.

                 - Mas aquele não é nosso, é de uma encomenda! – gritou novamente.

                 Dei uma longa bufada lembrando de como eu havia sido cuidadosa e perfeccionista ao guardar com muito carinho e silêncio cada fatia de torta dentro do potinho.

                  - Eu não posso levá-lo? – pedi.

                  - Se você o trouxer de volta...

                  Abri um sorriso e desci as escadas a baixo, dando um abraço na minha mãe que cozinhava no fogão.

                   - Valeu mãe!

                   - De nada? – ela franziu a testa sem entender minha empolgação por um simples potinho. Na verdade nem eu entendi minha própria empolgação. Mas quem é que nos entende? Somos tão bobos.

                   Quase onze horas da manhã, eu arrumei as coisas e peguei minha bicicleta. Pedalei rápido até o parque com um ânimo anormal. Estranhei essa sensação boa e isso me fez estranhar mais ainda, já que era uma coisa tão boba estranhar algo que está te fazendo feliz. Mas acho que o que eu estranhei de fato, foi não saber de onde vinha toda essa minha felicidade.

                    Cheguei ao parque Paineiras relativamente cedo. Digo isto porque fui a primeira a chegar. Mas este detalhe não me privou da minha felicidade, pelo contrário, de um jeito estranho ela aumentou.

                     Sentei-me ao pé da trave velha que esboçava nosso campinho. Como de costume, ali era o nosso ponto de encontro. Fiquei a paisana, observando todos os movimentos. O parque já estava bem cheio, havia várias crianças brincando com seus pais; meninos subindo em árvores que nem macaquinhos. Alguns sentados à beira da lagoa, jogando farelinhos de pão para os peixinhos pegarem, outros tacando pedrinhas na água e se frustrando ao verem que ela não dava mais de um pingo e já afundava.

                     De fato era muito gostoso ver toda aquela agitação da manhã de domingo. As pessoas pareciam tentar aproveitar ao máximo o dia ensolarado e tranquilo que se dava, e eu, tentava com mais ânimo deixar viva a felicidade instantânea que se encontrava dentro de mim.

                     Não demorou muito para alguém chegar. Era a Rafaela.

                     Eu estava de costas para a entrada quando senti outro corpo sentando ao meu lado. Rafinha me cumprimentou e eu retribui com um ‘oi’ bem empolgado. Ficamos sentadas ali por uns segundos. Eu estava buscando um assunto legal para puxar, bem quando minha cabeça processou e minha empolgação passou.

           Apenas dois nomes vieram em minha cabeça. Daniel e Rafaela. Sim, Rafaela estava do meu lado e sozinha. Era o momento perfeito para a conversa que eu estava fugindo há séculos. Tentei que nem uma desesperada começar a falar de qualquer coisa, mas nem o assunto clássico do tempo conseguiu chegar mais rápido do que as palavras que saíram de sua boca.

             - Mel...

             Engoli em seco.

             - Quero muito conversar com você. Que bom que só temos nós até agora. – ela sorriu, feliz.

             E eu sorri tremendo.

              - Sobre...? – cuspi as letrinhas, sem reação maior.

              - Acho que você já sabe sobre o que é.

              É, eu sabia, mas não iria começar o assunto nem morta. Ela que queria conversar, então ela que começasse a falar. Fiquei muda e fiz uma cara bem desentendida. Ela desistiu de esperar e começou.

              - Bem, é a continuação do que eu te falei aquele dia no computador... Sabe, sobre o Daniel.

              Dei um risinho, bem pior do que o outro.

              - Pode falar Rafa...

              Ela me encarou confusa. Acho que esperava um apoio maior com as palavras da minha parte. Mas nem isso a desencorajou.

              - Mel, não sei nem por onde começar. Chega até a ser engraçado para eu pensar nisso, mas acho que estou gostando dele, de verdade. – suspirou as últimas palavras.

               ‘Impossível!’ Era o que eu queria falar, mas não cheguei nem perto disso.

                - Uhun... – foi o melhor que eu fiz.

                - Acho engraçado porque eu quase não falo com ele. Não sei praticamente nada dele e provavelmente ele também não sabe nada sobre mim. É difícil de explicar e talvez difícil de entender, mas considero isso como amor a segunda vista.

                - Amor a segunda vista? – não consegui me controlar.

                Ela pareceu se espantar do outro lado da trave. Senti suas costas se enrijecerem por um segundo. Penso que foi pelo meu tom um tanto que inconformado.

                - Acho que sim. Digo isso porque não comecei a sentir essa coisa por ele no primeiro dia em que o vi. Foi só de uns tempos para cá...

                - Coisa...? – cada palavra que eu dizia parecia me entregar mais. Tudo que sai da minha boca tinha um tom inconformado.

                - Oras Mel, você me entendeu... Este sentimento que eu estou sentindo agora, não sentia isso antes!

                - Sei...

                Eu queria, e muito, conseguir dizer mais coisas, mas minha garganta parecia inchar a cada vez que eu tentasse contar a verdade. É como se algo mais forte do que eu me proibisse de falar tudo para Rafaela. E eu continuava engasgada.

                 - Mas enfim Mel. O que eu quero dizer é... Obrigada. – suspirou.

                 Minha testa franziu. Sorte que Rafaela não conseguia ver. Ela estava me agradecendo pelo o que? Por eu também gostar dele? Não, isso já estava passando dos limites. Era uma questão de necessidade falar para ela toda a verdade e eu precisava, não poderia deixar que a situação piorasse ao ponto de ficar irreversível. A minha garganta e seja lá o que fosse que estivesse me impedindo de falar, teria que colaborar. Para o bem das duas.

                 - Rafa, preciso te falar uma coisa.

                 - Claro Mel, mas antes eu tenho que te falar uma outra coisa também – disse me interrompendo. – Sabe, antes eu só estava sentindo uma quedinha por Daniel, nada ao extremo. Isso porque eu não estava me permitindo sentir nada a mais justamente porque eu e metade da turma sempre achávamos que vocês tinham um rolo. Mas é óbvio que eu percebi que isso era uma tremenda idiotice, não é? – ela me interrogou, virou para mim e lançou-me um baita sorriso. Era, logicamente, o momento certo para eu interrompê-la, mas mal deu tempo de eu soltar uma risadinha histérica e ela já havia retomado a fala. Confesso que a situação para mim, de tão tensa, parecia estar engraçada.

                  “E foi o fato de você não gostar dele que me aliviou. Nossa Mel, você não sabe o quanto de bom fez para mim, ficar sabendo disso!” – ela já estava sentada ao meu lado. Os olhinhos brilhando e as mãos quase agarradas as minhas, para intensificar mais a situação. Parecia brincadeira, mas estava se tornando praticamente impossível falar seja lá o que fosse para ela. E eu ainda ria boba.

                  “Depois que você me contou, eu me senti desimpedida para deixar qualquer receio para trás e aproveitar o que eu sentia. E olha, não me arrependo de nada, pois sei que desta vez vai! É claro que vai. – ele estava confirmando para si mesma. – E sabe por que eu tenho certeza disso? – agora sim, ela segurava minhas mãos e fazia com elas movimentos frenéticos de alegria. E eu só sorria para não chorar. – Tenho certeza, pois a melhor amiga dele por coincidência é minha amiga também e ela prometeu que me ajudaria com ele. – era incrível como seu sorriso quase rasgava sua boca. -  Não tenho nada mais a fazer do que agradecer essa amiga, você não acha?”

                  Na verdade acho que eu estava tão paralisada no momento que nem sei se balancei a cabeça.

                - Ótimo então Mel, porque é isso que eu tenho que dizer a você, muito obrigada mesmo. Há tempos que eu não gostava realmente de alguém e foi você que me encorajou! – ele praticamente gritou isso entre os sorrisos. Apertou com força minhas mãos e só faltando beijá-las, as largou. Endireitou o corpo na trave e voltou a dividir as costas comigo. E eu ainda sorria histérica e boba. Era a contradição perfeita.

                 Com certeza a Rafaela nem percebeu o instante enorme de silêncio que ficou entre nós. Ela deveria estar pensando no Daniel. Já eu, queria pensar em tudo, menos nele.

                  A situação havia se tornado irreversível, sem dúvidas. E o que mais me cutucava eram as inesquecíveis frases de Rafaela “Você me encorajou... Você isso... Você aquilo...”. Era insuportável pensar nisso, parecia que eu havia cavado um buraco ali do meu lado mesmo e me enterrado dentro. Sei muito bem que a maior culpada de tudo era eu, não precisava de ninguém para ficar me lembrando, mas o que eu posso fazer se quando prometi fundos e mundos para ela eu estava brava com Daniel. Não é justo.

                  “É claro que não é justo”, pensei. Desde quando alguma coisa é justa? Minha amiga está apaixonadíssima pelo cara que eu gosto e eu, em um momento de insanidade, propus ajudá-la. Não há nada mais justo do que isso. E sem contar o fato que eu não tive a coragem e nem a decência de contar o que eu sinto para ela quando pude, porque agora seria desumano eu contar e desiludir a menina.

                    “Ou talvez não...” pensei de novo, só que com aquele típico diabinho que fica sobre o ombro esquerdo. Se ela se desiludir, tudo ficaria mais fácil. Eu não teria que fazer nada para juntar ela e o Deni, a paixãozinha acabaria na marra e final feliz para a Mel. Pronto, e tudo se resolve...

                     Dei um pulo tão grande quando ouvi meu celular tocando no meu bolso, que parecia ter acordado de um transe. Peguei-o rapidamente e o levei a orelha. Precisei morder o meu “alô” quando percebi que era uma mensagem e não uma ligação.

               

      Oi Mel.

      Bem, não vai dar para eu ir ao parque.  

      Acho que você entende o motivo.

      Bjo, Jô

     

             Eram poucas palavras, mas que me fizeram pensar. De fato, acho que eu sabia o motivo. Jô estava evitando ficar muito tempo junto de Francisco e de Sara. E eu particularmente achava isso uma idiotice daquelas, mas ela não me ouvia. Achava que precisava esperar a poeira dar uma abaixada para ver se as coisas poderiam voltar ao normal. Meu maior medo era se as coisas não voltassem. E foi exatamente por isso que eu abaixei a cabeça e desisti de desiludir a Rafa.

            Já bastava um problema dentro do nosso grupo de amigos.  Ficaria péssima em saber que eu poderia ser a causadora de um segundo. Mas sempre há uma escolha, sempre alguém sai perdendo e nada mais justo do que eu sair, a final fui eu quem causou tudo isso.

            Bem, pelo menos agora eu sei porque as coisas não são justas. Porque a justiça dói, quer dizer, vai doer.

             - Quem era?

             - O quê?

             - Quem era? – repetiu Rafaela do outro lado da trave.

             - Ah... Bem, era a Joana.

             - A Jô? Ela já está chegando?

             - Não, na verdade ela não vai poder vir. – murmurei.

             - Por que não?

             - Acho que foram problemas... – custeio um pouco para inventar algo. – Bem, problemas na casa dela. – genial, a desculpa de maior praxe que existe.

             - Ah tá...

             Suspirei fundo, ainda absorta nos pensamentos que me ligavam a enrascada que eu havia me metido com Rafaela. Não havia muito que fazer naquele momento. Na verdade, eu não sabia nem o que fazer quando chegasse o momento certo. Então resolvi tentar esquecer aquele assunto por um tempo, já que ele não seria útil em nada. Ficar remoendo os erros nunca é bom quando você tem que parecer feliz e empolgada para um piquenique entre amigos.

              Foi o que eu fiz. Chutei com força qualquer assunto que me ligava com Daniel. Ultimamente são esses pensamentos os mais intrigantes da minha cabeça. Tentei voltar a me distrair com os menininhos se frustrando ao atirarem as pedrinhas no lago, mas nem precisei de muito tempo, pois logo Francisco e Roberto chegaram juntos e se juntaram a nós.

              Os dois garotos vieram falantes e animados. Isso foi muito bom para mim, pois consegui cumprir minha meta e esquecer de tudo o que me preocupava. Voltei ao estado de ânimo em que me encontrava quando cheguei ao parque. Podia me resumir como uma pessoa alegre, porém não histérica, novamente.

              Ficamos os quatro sentados ao pé da trave, só faltava a Sara chegar para começarmos o piquenique. Foi então que foi a vez do celular de Rafa tocar.

             - Gente, a Sara mandou uma mensagem. Ela não vem. – anunciou.

             - Não? - agora foi a minha vez de perguntar sem entender.

             - É, motivos... Bem, acho que familiar... – murmurou.

             Ficou tão óbvio, quanto da minha vez, que ela estava procurando uma desculpa. As duas não vieram e eu creio que foi pelos mesmos motivos. Isso me arrepiava a espinha, elas tinham que se entender de novo. Não que elas não estivessem bem entendidas, mas é que estava tudo tão superficial e a cada momento que elas ficavam se evitando, eu tinha mais razão de que não estava nada bem.

            - Vamos fazer alguma coisa? – perguntou Roberto ficando de pé.

            Não sei se ele fez isto para amenizar o clima ou então porque não aguentava mesmo ficar sentado olhando para o nada. Só sei que fui a primeira a entrar na sua proposta, já que eu não queria mais ficar me amarrando aos problemas.

            - O que vocês querem fazer? – murmurou Francisco sem ânimo. Acho que ele estava apostando alguma coisa em relação a Sara naquele piquenique.

            - Não sei, a gente inventa, vem! – segurei a mão de Francisco e o puxei com força. Eu precisava dar um apoio a ele.

            - Quanto ânimo hein? – brincou Rafaela se levantando também.

            Eu dei um passo para trás, colocando Francisco de pé. Meu rosto deveria ter ficado um pouco pálido, um pouco vago. As palavras de Rafaela me cortaram e me fizeram lembrar que o meu ânimo não era nada mais além do que uma máscara que eu encontrara para esconder meus próprios problemas. É claro que eu não havia me esquecido deles, tão menos os ignorado. Eu só estava tentando dar um tempo, arquivá-los pelo menos durante aquela tarde, mas já estava vendo que seria quase impossível com a maioria dos personagens dos problemas bem ali, falando comigo.

             Fizemos o de sempre. Jogamos bola, conversamos e comemos. Gastamos um tempo jogando baralho. Era incrível a quantidade de jogos diferentes que o Roberto conseguia encontrar com um único maço de cartas.

             Para mim já estava claro que o Rô, assim como eu, estava tentando tampar os buracos de todos os jeitos. Talvez ele estivesse até mais empenhado do que eu, já que não se encontrava envolvido em nenhum dos problemas, ao contrário de mim.

              A torta da minha mãe fez sucesso. Novidade. Tomei cuidado para guardar o potinho que era emprestado para não esquecê-lo.  

              O céu estava ficando um pouco nublado. Bem diferente da manhã sem nuvens que se encontrava. Não era tão tarde quanto aparentava, mas acho que não havia nada a mais para fazer, ou para inventar. Fiquei de pé e arrumei minha bolsa.

              - Gente, já vou indo! – anunciei.

              - Já? – resmungou Roberto. Creio que ele também percebeu minhas intenções de animar o grupo, e agora que eu estava indo embora, não haveria mais nenhuma aliada para ajudá-lo.

               - Já sim. – conclui sem ceder ao resmungo. – Fizemos bastante coisa hoje Roberto. – lancei-lhe um olhar de “nossa parte está feita”.

               - Mandei uma mensagem para meu pai, ele está vindo. – murmurou a voz de Francisco, um pouco isolado da roda.

               Não gostei muito dessa fala. Parecia que Francisco já estava pronto para ir embora assim que pudesse, só que não encontrava espaço – e talvez a coragem – para ir. Era como se estivéssemos em uma viagem onde a primeira oportunidade que surgisse ele agarraria como se estivesse de malas prontas há dias. Realmente, o fato de Sara não ter vindo mexeu, e muito, com ele.

               Esperei uns minutos até que o pai de Francisco chegasse. Roberto foi junto com ele e Rafaela também, já que sua mãe iria demorar a chegar e ela não queria ficar sozinha.

               Peguei a bicicleta e fui cortando as ruas. Ainda era cedo para chegar em casa. Minha mãe estava acostumada com a minha ausência durante a tarde inteira quando eu resolvia sair com os amigos. Hoje foi uma exceção e eu não estava a fim de explicar o motivo se alguém perguntasse. Então facilitei as coisas, fugindo para algum lugar e evitando as perguntas.

              Eu queria e precisava pensar. Se fosse para casa, meu pai ficaria me pedindo coisas e mais coisas só para eu ficar irritada. Depois desse acidente ele mudou muito o comportamento. Ficou mais brincalhão, menos sério. Bem, eu gostei. E sei que ele não me irritaria por mal, mas eu precisava de um momento de paz.

              Vaguei pelas ruas na bicicleta, fiquei dando voltas e mais voltas nos quarteirões. O movimento estava tão fraco naquela tarde de domingo que eu poderia fechar os olhos e continuar guiando, que eu não seria atropelada. E foi quase isso que eu fiz.

              Não fechei os olhos, mas fiquei tão absorta nos pensamento que era como se eu não enxergasse nada. Deveriam ter passado umas duas horas desde que eu havia saído do parque, mas nem parecia. Continuava pedalando devagar, sob a brisa, pensativa. Gastei o tempo para pensar em tudo o que havia ocorrido; em todos os problemas que eu estava evitando e todas as soluções que eu poderia encontrar. Umas valeram, outras não. Algumas nem foram encontradas e isso me fez ficar aflita. Mas era querer de mais encontrar solução para todos os problemas.

              Depois de avaliar bem minhas decisões, resolvi voltar para casa. Agora, pelo menos, ninguém me perguntaria se meu piquenique havia sido um fiasco.

              - Mãe! – gritei entrando em casa e encontrando todas as luzes apagadas.

              Nada, ninguém me respondeu.

              Há algum tempo, isso me deixaria muito preocupada, mas já era freqüente chegar em casa e não encontrar minha mãe.

              Subi nas pontas dos pés e encontrei meu pai estirado na cama e dormindo, como eu suspeitava. Deixei minha bolsa no quarto e desci para a cozinha ajeitar o resto. Lá encontrei o que procurava: um bilhete da dona Lorena.

        

              “Mel, aproveitei a carona da Marlene

              e fui no Supermercado.

              Acho que chego antes de você.

              Beijo”

              Para mim, fazer compras aos domingos era uma novidade, mas como praticamente tudo o que estava acontecendo nas minhas últimas semanas também eram novidades, esse detalhe nem foi digno de me surpreender.

              Achei legal deixar o jantar pronto. Afinal eu não havia feito minha tarefa completa de Sábado. Preparei o prato típico brasileiro. Arroz, feijão e bife. Acebolei bem, pois sabia que meu pai adorava. Tomei cuidado para não fazer muito barulho, não queria que ele acordasse antes de ficar pronto. Pelo menos assim, ele levantava e enchia a boca, sem sobrar tempo para fazer piadinhas.

               Pensando assim, eu parecia ser cruel com meu pai, mas não era verdade. Eu só parecia, porque lá no fundo, bem lá no fundo eu até ria das piadinhas, por mais que elas doessem os meus ouvidos.

               Chamei meu pai e logo minha mãe chegou com as mãos abarrotadas de sacolas. Dei uma ajudinha e logo subi, deixando os dois se virarem lá embaixo. Minhas pernas estavam tremulas e cansadas de tanto pedalar. Ainda era cedo, umas nove horas, mas eu já estava de pijamas, fazendo meus últimos preparativos para ir deitar.

                Estava gostando desta idéia de ir me deitar cedo e com sono. Na maioria das vezes é o contrário. Eu vou deitar tarde e sem sono.  Adorava quando surgiam umas exceções.

                Literalmente eu me joguei na cama. Senti todos meus ossinhos se esparramarem sob o endredon. Estava tão quentinho e gostoso que eu nem precisei de muito esforço para pregar os olhos.                    

                Parecia que eu nem havia dormido dez minutos e um barulhinho infernal já estava tocando. Levantei em um pulo e bati a mão no despertador, mas o barulho parou segundos antes da minha mão esmagar o despertador inocente. Desta vez não era culpa dele o meu coração ter quase explodido de susto, e sim, do meu celular.

                Não só parecia que eu havia dormido dez minutos, como eu de fato havia. Não fazia nem meia hora que eu tinha ido para a cama e era como se eu não precisasse mais dormir. O sono gostoso e tão desejado foi embora, ao passo que minha irritação aumentou.

                - Eu não acredito nisso. Quem me ligou a esse horário? – resmunguei para mim mesma, como se a pobre pessoa que havia me ligado fosse a culpada de eu ir dormir tão cedo em pleno fim de semana.

                Fui com passos duros até a minha bolsa, que ainda não havia sido desarrumada, e procurei o celular. Ansiei em falar um resmungo bem feio quando eu visse o autor da chamada perdida, que levei um susto ao reparar que não era uma ligação, e sim uma mensagem.

                - Só me faltava essa. Melinda, Melinda, vê se não se esquece de mudar o toque de mensagem, está igual ao de ligação! – eu continuava parecendo uma esquizofrênica murmurando para mim mesma. – Vamos ver de quem é.

                Apertei o botãozinho e assustei. Era uma mensagem do Daniel. Logo dele, que nunca usa celular nem para ligar para as pessoas, quanto menos para mandar mensagem.

                 Corri para a cama e sentei curiosa. Fui lendo palavrinha por palavrinha e depois li ao todo.

                   

                   “Mel, não se esqueça de levar o dinheiro do passeio p/ Angra.

                     Bem é isso, amanhã eu passo aí antes da aula. Cedo.

                     Bjo, Deni” 

                Lancei-me na cama, sentada e olhando a mensagem. Eu não estava mais tão brava em ter sido acordada do meu soninho. Eu não queria mais matar o autor da ligação, ou melhor, da mensagem. De certa forma, eu queria e tinha mais é que agradecer. Daniel havia me lembrado do bendito pagamento do passeio que eu já estava me esquecendo e desta vez não teria outra chance.

                Joguei o celular por ali mesmo, engatinhei sobre o emaranhado de cobertas e cheguei até o criado mudo. Abri a gavetinha ansiosa e comecei a procurar pelo dinheiro. Revirei tudo, a maior parte das bugigangas foi caindo para fora, até finalmente eu encontrar. Peguei o dinheiro e guardei com cuidado dentro da minha bolsa. Se alguma coisa acontecesse com ele, eu não me perdoaria e nem o Deni.

               Depois de tudo bem arrumado, eu deitei novamente. Estava alerta, ansiosa, alegre, pensativa e com todos os outros sentimentos e qualidades que uma pessoa deve evitar se quer de fato dormir. Já era nítido que após minha pequena descontração durante o sono, custaria e muito para fazê-lo voltar.

               Rolei, pensei, rolei mais um pouco e senti meus neurônios formigarem de tanto pensar. Acho que eles já estavam exaustos, não conseguiam encontrar mais assunto algum. Só que eu os obriguei a encontrar. Lembrei da outra parte da mensagem, a que dizia que Deni me levaria para escola amanhã. Eu nem me lembrava disso. Também. Nossa, como minha memória estava fraca nos últimos dias. Era de se questionar.

              Não havia avisado minha mãe que ia de carona nos próximos dias. Mas creio que isso vai ser irrelevante já que eu estava acordando bem cedo todos os dias. Não seria um problema muito grande para mim, continuar fazendo isso.

              Eis que justo naquela noite parecia que o fato de acordar cedo poderia ser um desafio. Já eram quase duas da madrugada e incrivelmente eu não conseguia dormir. Não era a primeira vez que isso acontecia e, muito provavelmente, estava longe de ser a última.

              Sabia também, que depois de uma noite sem sono, ou melhor, durante uma noite sem sono, era de costume, praticamente uma rotina, que nos pequenos momentos em que meus olhos pregavam, junto a isso viria anexado de brinde um magnífico pesadelo. E eu tinha apenas que me conformar e encarar os fatos.

              Tudo começou de uma forma muito bizarra. Deni estava no meio de uma briga entre Natalá e Rafaela. Eu estava de fora aos gargalhos, já que nunca me rebaixaria a isso. Simplesmente do nada as duas param e se fez um profundo silêncio entre os berros delas. Trocaram um olhar de dar medo e voltaram a cabeça, olhando para mim. Eu, no mesmo instante que ria, fui obrigada a engolir minha gargalhada e fiz a cara mais espantada e cômica do mundo. Parecia que eu sabia o que ia acontecer. Na verdade estava óbvio o que iria acontecer. Não pensei duas vezes e saí correndo e rindo. Gritava que nem uma desesperada “ele é meu, ele é meu”, e as palavras saíam entre vários risos meus e desaforos delas. Estava um pesadelo muito engraçado até então, só que uma hora, eu não ouvia mais elas gritando comigo. Parei de correr e olhei para trás. Nada. Não havia ninguém, não havia se quer cor. Estava tudo escuro e eu não conseguia enxergar nada. Levei as mãos à frente do rosto, como seu eu protegesse os olhos de alguma luz, mas ainda estava tudo escuro. Essa minha reação foi como uma premunição do que aconteceria, pois de uma hora para outra, um clarão imenso invadiu o lugar e eu pude perceber que estava dentro de uma sala. Olhei para os quatro cantos e nada. De repente eu ouvi. Ouvi a voz que há muito tempo não ouvira, a voz que sempre falava comigo nos sonhos e que um dia eu ouvira acordada.

            Pulei da cama. Não sabia nem que horas eram. Só conseguia me lembrar do que achava que acabara de ouvir.

             - “Mel, lembre-se” – murmurei.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Coments ^^