Piratas do Caribe: o Tesouro Maldito. escrita por Milly G


Capítulo 22
Unleashed (Final)


Notas iniciais do capítulo

Olá, meus amores. Umas esqueceram, outras simplesmente enjoaram, mas algumas permaneceram firmes e fortes até aqui. Não tenho palavras para agradecê-las, porque me dediquei muito a essa história, mesmo que minha demora ridiculamente grande para atualizá-la pareça provar o contrário. Novamente não tenho nenhuma desculpa para dar por isso. Mas agora ele está aqui, ABSURDAMENTE GRANDE. O ultimo capítulo. Espero que vocês se divirtam ao lê-lo da mesma forma que sofri escrevê-lo: bastante. rsrs
Na verdade, toda a história surgiu quando ouviu uma música do Epica, chamada "unleashed", e gostaria de saber o que acharam dela ^^
Bom, acho que não há mais nada a dizer, além de "obrigada".

::ENJOY::



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- Você é tão linda... – murmurou o homem, fitando-a com adoração.

      Cassandra sorriu, prendendo uma mecha do cabelo negro atrás da orelha. Havia se apaixonado, novamente, por um humano. E mesmo todas as suas aventuras românticas terminando malsucedidas, ela acreditava que ele a amava.

      Era a única coisa em que ela acreditava.

- Então, será mesmo aquela igreja? – perguntou a morena, voltando a um assunto que eles já haviam discutido muitas e muitas vezes.

- Ah, Cass, eu não sei... – ele desviou os olhos daquelas pedras preciosas azuis, com medo do que poderia dizer se olhasse diretamente para elas.

- Qual o problema? – ela franziu as sobrancelhas perfeitas, sentando delicadamente em cima das pernas dele.

- Olha... Você é magnífica, está bem? Tudo o que um homem sempre quis, mas...

      Ela o encarou com atenção, esperando silenciosamente que terminasse o que estava dizendo. Quando não o fez, ela engoliu em seco, com medo da resposta para o que estava prestes a dizer.

- Não é o suficiente pra você, não é?

      O homem olhou para ela com os olhos arregalados. Os olhos verdes pelos quais ela se apaixonara.

- Você... – ela serrou os punhos com força, agarrando o lençol amarelado da cama. – Pra você eu sou apenas...

- Shh... – ele pousou o dedo indicador nos lábios pálidos da mulher, e por um breve segundo ela achou que ele estava tremendo. – Não vamos falar disso. Vamos aproveitar...

      Então antes que a morena pudesse protestar, ele a agarrou pelos cabelos e a beijou com força. Passou as mãos por todo seu corpo até senti-la ceder, até senti-la retribuir seus beijos com a mesma intensidade... Até sentir que ela estava na palma de sua mão.

      Olhou de relance para a cômoda ao lado da cama, onde brilhava um objeto que havia despertado a curiosidade da mulher.

      “O que é isso?”, ela perguntara. “Faz parte da minha pequena coleção”, ele respondeu depois de um tempo, parecendo meio encabulado. Depois eles se esqueceram do assunto, concentrando-se mais em suas mãos.

- Me desculpe... – ela sussurrou, com a voz embargada. – Me desculpe por não ser o suficiente, por...

- Não. – ele segurou seu rosto entre as mãos grandes e calejadas, afagando-o com os polegares. – Sou eu que preciso me desculpar, Cassandra. Me desculpe por isso.

      Foi rápido, e doeu mais emocionalmente do que fisicamente. Uma única lágrima saltou dos olhos azuis da mulher, contornando os lábios entreabertos e pálidos.

      Ela tombou a cabeça para frente e pôde ver o punhal enfiado em sua barriga antes que todo o corpo desmoronasse sobre o dele. Deixou que mais algumas lágrimas saíssem quando o sentiu suspirar aliviado.

- Sei o que faz com os homens de St. Lucius, bruxa maldita. – ele a puxou pelos cabelos da nuca, fitando seu rosto com frieza. – Não vou deixar que me arraste para junto deles.

     Outra lágrima deslizou por seu rosto. “De novo”, ela pensou, fechando os olhos e encostando a testa no peito do homem. “Será que os humanos não sabem amar?”.

     Ela foi arrastada por toda a vila até o litoral. Por todo o caminho ela apenas fitou os próprios pés - que eram esfolados pela terra e se curavam com uma rapidez praticamente imperceptível -, sem sequer tentar resistir. Por um momento ela desejou que pudesse sangrar. Terminar logo com aquilo.

      Quando despertou de seus devaneios, viu que se encontrava em um penhasco, e havia dezenas de homens ao seu redor. Pedaços de madeira, espadas, chicotes... Havia ali também, ela percebeu com amargura, homens que lhe fizeram várias promessas. Que haviam dito que a amavam.

- Terminam aqui seus dias, ser maldito. – murmurou o ultimo homem para quem ela havia entregado o coração. – Com minhas próprias mãos, eu salvarei os homens que você cegou.

- Não há salvação para humanos imundos como vocês. – rosnou a deusa, pondo-se de joelhos para poder encará-lo melhor. – Criaturas egoístas sem um pingo de amor...

- O que você sabe sobre amor? – o homem riu com deboche.

- O que VOCÊS sabem sobre amor?! – ela rebateu, urrando. – O que vocês sabem sobre qualquer coisa?! Amor, confiança, fidelidade... Quem é VOCÊ para me chamar de maldita? – ela cravou os olhos inchados nos do homem, que apenas sorriu com arrogância e cuspiu em seu rosto.

- Venham a mim, homens! – ele abriu os braços para a multidão que o cercava. – Eu lhes trouxe a salvação!

      Então, enfiou a mão por dentro de seu paletó surrado, tirando de lá inúmeros frascos pequeninos com um líquido translúcido brilhante.

- Vejam! – ele ergueu um dos frascos, deixando que a luz do sol atravessasse o vidro e o fizesse parecer uma pedra preciosa. – Isso, meus caros, é o antídoto. O veneno deste súcubo. Suas lágrimas!

- Verme miserável! – a mulher se debateu, enfurecida, e torceu os pulsos até que a corda rasgasse sua pele.

      Um sorriso sombrio surgiu nos lábios do homem.

- Mas – ele encolheu os ombros, dando um passo para trás ao notar o brilho ansioso nos olhos de sua plateia. – Foi algo extremamente difícil de conseguir. – o sarcasmo em sua voz era quase palpável. – Por isso não será barato.

      E o caos se instalou, para sua satisfação. Homens gritavam seus preços, brigavam e lhe vangloriavam.

      Além de não saberem como amar, eles pagavam para se livrar do amor, constatou Cassandra com desgosto. Não havia esperança nenhuma para eles.

      Nem para ela.

     A mulher livrou-se das cordas como se fossem de papel. Levantou-se, prendeu o cabelo revolto e bateu a terra de seu vestido. Todos estavam distraídos demais nas mentiras daquele crápula para notarem alguma coisa.

      Fechou os olhos e, com um suspiro, tudo se silenciou. O único som ali era da respiração ofegante dos homens assustados e... Das ondas.

      Ondas essas que tinham 5 metros de altura. Ela olhou aquela quantidade interminável de água com alegria, e ao fechar o punho toda aquela espuma explodiu, arrastando os homens do penhasco. Seus gritos não foram suficientemente altos, ela fez beicinho ao pensar. Mas sua expressão logo voltou à completa satisfação quando viu o que lhe havia restado.

      Ele.

      Como um presente apenas para ela. Mas ela já não acreditava mais naquilo. Não acreditava mais no amor. Estava cansada de ser enganada.

- C-Cass...! – o homem afastou-se aos tropeços, olhando-a aterrorizado. – Cass, espere, eu...

- Não me chame de “Cass”, seu pedaço de lixo. – ela rosnou.

      Os olhos verdes do homem se desviaram dela apenas um segundo, quando o rugido das ondas surgiu novamente, fazendo tudo tremer. Depois voltaram aos dela, implorando por sua vida.

- Cass, olhe, eu apenas não... – o homem riu histericamente, apavorado. – Eu estava apenas querendo afastá-los. F-Foi tudo parte do plano, meu amor. Eu precisava ser convincente, eu...

      Ele se interrompeu com um grito apavorado quando o mar rugiu novamente. Um sorriso se espalhou lentamente pelo rosto da deusa, que se aproximava dele com a calma e a graciosidade de um gato.

- Você...? – ela abriu ainda mais o sorriso, dando-lhe a chance de terminar.

- Eu... Eu amo você.

      Ela parou. Na verdade, tudo parou. Tanto a respiração do homem quanto a dela, o som das gaivotas que fugiam desesperadas e o rugido do mar revolto.

- O que disse? – ela sussurrou entre dentes, fechando as mãos em punhos.

- Eu amo você. – o homem repetiu, com a voz trêmula e os olhos quase saltando da cara.

- Não...

- S-Sim. Cass, eu sempre...

- Você não...

- Eu amo você, Cassandra!

- CALE A BOCA! – ela berrou, e todo aquele caos que parecera congelado alguns segundos atrás os cercou novamente. – Você não me ama. Você nunca me amou.

      Ela cravou as unhas no pescoço do homem e o ergueu do chão como se ele fosse um pedaço de trapo. Gritos sufocados escapavam pelos lábios roxos, implorando misericórdia.

      Mas Cassandra não o ouvia mais. Nem mesmo sentia, sob suas mãos, a pele que ela havia acariciado tantas vezes antes. Ela agora lhe parecia um simples disfarce para um demônio.

      Sacudiu o homem violentamente, até ouvir o som que buscava: vidros batendo. Remexeu as vestes sujas do homem e arrancou de seus bolsos os inúmeros frascos que continham “seu veneno”, lágrimas aquela que ela agora se arrependia de ter derramado.

      Com os pés, ela esmagou os frascos com displicência, como se fossem míseros insetos. Os cortes se curaram ainda mais rápido ao entrar em contato com o líquido cintilante que eles guardavam, mas ela não prestou atenção nisso.

      Ao voltar sua atenção para o homem, percebeu que seus olhos giravam nas órbitas. Seus lábios haviam perdido até mesmo a cor arroxeada, e sua respiração era superficial. O sangue escorria de seu pescoço por entre os dedos de Cassandra, tão quente quanto foram seus beijos.

- Ah não – ela voltou a abrir um sorriso. – Não morra ainda. Não em prive do prazer de jogá-lo eu mesma nos braços da morte.

      Ela se arrastou até o penhasco sem pressa, deixando uma trilha de sangue por onde passava. O homem, num ultimo esforço, envolveu com as duas mãos seu braço, mas seus dedos frios não podiam fazer nada mais.

      Chegando a beirada, ela o largou no chão ao lado de seus pés. A brisa fresca do mar a envolveu como um abraço terno, que ela aceitou com um sorriso triste. Aquele seria o ultimo abraço que receberia, pensou, e viera de seu maior – e único – amante fiel.

      Tal pensamento trouxe lágrimas a seus olhos, mas ela trincou os dentes com força, e a lágrima que viera da tristeza endureceu-se de ódio, assim como seu coração. Sentiu algo raspar por seu rosto e quicar aos seus pés. Uma pedra azul, brilhante como seus olhos.

      Uma risada seca saiu do fundo de sua garganta quando ela se abaixou para pegá-la.

- Veja só. – ela murmurou, sem saber se para o homem, para o mar ou para si mesma. – Então isso foi tudo o que restou de mim.

      Por mais que quisesse chorar até se desmanchar em milhares de pedrinhas como aquela, a mulher não conseguiu. Agora só havia um vazio enorme em seu peito. Ela era uma casca vazia.

      Casca, essa, que começara a se quebrar.

- Cassandra... – ouviu o homem aos seus pés balbuciar, assim que tocou a rachadura que surgira em seu rosto. – Não faça... isso... Nós...

- Não. Não há “nós”. – ela o cortou. – Nunca houve. Nunca houve amor em você. E agora – ela o segurou por baixo dos braços, erguendo-o e apoiando o corpo dele no seu. – Também não resta nada pra mim.

      As rachaduras tomaram seu peito e seus braços, chegando às mãos quando ela as entendeu e fechou com força, com a pedra esmagada na palma de uma delas.

      Então ela ouviu. Tão claro quanto o som das ondas abaixo deles. As batidas do coração do homem haviam finalmente cessado, deixando-a frente a olhos verdes e opacos, já sem o brilho que lhe roubara o coração.

      Ela o apertou mais forte em seus braços.

- Nós somos bem parecidos, não somos? – perguntou ela baixinho, de repente com a voz risonha. A pedra azul dançou entre os dedos esfarelados, cintilando. – Estamos sempre prestes a desistir, mas somos egoístas e orgulhosos demais, não é? Qual era o nome dela... Sarah? Acho que sim. – o sorriso da mulher cresceu ainda mais. – Você disse que desistiria por ela, mas não o fez. E aqui estou eu, prestes a desistir por você. – ela deu uma risadinha, que pareceu ecoar dentro dela como um assobio num corredor deserto. Fez uma careta. – Você não merece tanto.

      Então soltou-o abruptamente, fazendo-o cair de joelhos a sua frente. Pela ultima vez, viu o reflexo de seu rosto nos olhos do homem e, com um pé, empurrou seu peito, derrubando-o nos braços daquele que a vingaria.

- Adeus, Alexander.

      As ondas rugiram quando ele chegou a elas, e um arrepio de satisfação percorreu o corpo de Cassandra. Com uma pirueta, virou-se para a vila, que brilhava com os vestígios de água e espuma do mar.

     Praticamente dançou por ali, afastando com gestos displicentes os pedaços de seu corpo que iam rachando e se desprendendo. Deu um suspiro entediado quando uma grande parte de seu corpo se soltou, caindo na palma de sua mão como uma máscara.

      “Está bem”, pensou. “Esse aqui já está vazio.”

- Próximo.

***

Brooke arregalou os olhos, arquejante. Estava empapada de suor, mas tremia de frio. Olhou em volta, tentando se localizar, mas só havia a pura escuridão, e o único som ali era de sua sofrida respiração.

      Sacudiu levemente os braços dormentes e ouviu um tilintar conhecido. É claro, praguejou mentalmente, as correntes.

      Aquele fora outro jorro de memórias de Cassandra. Tentou raciocinar, mesmo tremendo de frio e fome, e a cabeça ainda latejando. Primeiro: a lenda que Jack contara estava errada. Cassandra não morrera. É claro que não. Diabos, ela era uma deusa.

      Segundo: se as lágrimas dela serviam de cura, tanto para seus ferimentos quanto para feitiços, por que a estavam ferindo?

      E terceiro: o que diabos o pai dela fazia no meio daquela história?!

      Respirou fundo ao perceber que aquilo era o que mais irritava.

- Maldito Alexander... – grunhiu, sacudindo os braços com mais força dessa vez, por pura raiva.

      Mas não havia nada que pudesse fazer. Suas pernas trêmulas não tinham força para sustentá-la, suas costelas doíam a cada respiração e seus dentes batiam tanto que ela teve que trincá-los com toda a força.

- Jack... – ela chorou baixinho, angustiada. Lembrou-se das ultimas palavras da deusa antes de largá-la lá: “Não se preocupe. A morte de Sparrow será algo belíssimo”.

      Não conseguiu conter um soluço, e seu corpo sacodiu dolorosamente.

      Porém, um segundo depois, as lágrimas pareceram cristalizar-se à beira de seus olhos. Sentiu uma friagem correr por seus braços e pernas, deixando a pele com uma tonalidade azulada.

      Era como... afundar no oceano. Ela podia sentir a escuridão cercando-a, a água ficando cada vez mais fria, penetrando sua pele, sua carne e seus ossos. Os pulmões, que já funcionavam debilmente, encheram-se da água congelante, fazendo-a dar gritos surdos, que se prenderam em sua garganta e a apertaram com as mãos implacáveis da morte.

      Debateu-se enlouquecidamente, buscando ar, enquanto lágrimas escorriam por sua face. Bateu com força os pés na pedra em que estava sentada até que eles ficassem dormentes, arranhou as paredes negras a suas costas até que suas unhas se soltassem dos dedos. Mas ela não conseguia se concentrar nem mesmo na dor mais excruciante. Um medo súbito tomou sua mente, e quando conseguiu recuperar o fôlego, gritou a única coisa em que conseguia pensar:

- Jack!

***

     O pirata sentiu um arrepio na espinha, seguido por uma coceira irritante na nuca. Cravou as unhas na pele escura, sentindo aquele estranho calombo, sem se lembrar de como o conseguira. Talvez fosse do incidente com o basilisco, ou...

     Ele deu de ombros, sem paciência para nada daquilo. Não tinha a menor ideia de onde estava seu navio, sua tripulação ou ele mesmo.

      Nem Brooke.

      Outro arrepio lhe percorreu a espinha. Sacudiu a cabeça, como que para livrá-la de qualquer ideia ruim que pudesse ter daquela sensação. Ele não era daquilo. No mínimo, estaria achando graça. Encararia aquilo como um desafio, uma nova história que poderia enfeitar como bem quisesse.

      Mas a verdade estava bem longe disso. Sentia algo frio nas entranhas, seus dedos tremiam e ele estava suando, apesar de não estar com calor. Aquilo era... medo.

- Maldição. – ele cerrou os punhos, cuspindo as palavras. – Maldição!

      Começou a percorrer a ilha em passos apressados, tentando não deixar transparecer o pânico, embora não houvesse ali ninguém para julgá-lo. Lembrou-se do que seu pai uma vez lhe dissera: “O segredo era viver sozinho”.

      Ele havia falhado, percebeu, encolhendo os ombros levemente. Desgraçadamente. Agora, tentar viver sem ela seria como correr de uma manada de elefantes com as pernas amputadas.

      Soltou um suspiro, olhando irritado para uma árvore que já havia visto algumas dezenas de vezes, e depois para sua bússola, ficando ainda mais irritado. A seta girava loucamente em todas as direções, no sentindo horário e anti-horário, tentando às vezes fazer as duas coisas ao mesmo tempo.

      Resistiu ao impulso de jogá-la no chão e esmagá-la com o calcanhar. Sabia que era culpa daquela maldita ilha, e que não havia nada que pudesse fazer além de seguir seus instintos.

      Porém, pela primeira vez seus instintos o estavam traindo, ou talvez ele estivesse apenas se entregando ao desespero. Ambas as alternativas eram inéditas, e nenhuma o agradava.

      Retesou-se quando ouviu um farfalhar por entre aquelas árvores irritantemente parecidas. Aproximou-se lentamente, sem qualquer ideia do que poderia fazer a seguir, armado apenas de uma bússola que não apontava para qualquer direção que fosse.

- Gibbs? – sussurrou, abrindo espaço entre as folhas. – Barbossa, Angélica, Barba Negra, qualquer um? – insistiu, falando entre dentes. Depois franziu o cenho, arriscando: - Brooke?

      Mas a única resposta que teve foi o baixo assobio do vento, que passou por ele sacodindo levemente seus dreadlocks e deixando um gosto amargo em sua boca.

      Balançou a cabeça, se abrindo à ideia de que estava ficando louco. Aquilo também era inédito.

      Outra vez. O mesmo farfalhar, e depois passos.  Virou-se abruptamente, as mãos tateando instintivamente os bolsos. Mas não havia nada – tanto nos bolsos quanto ao seu redor.

      Esfregou os olhos com raiva e pôs-se a andar novamente.

- É coisa da sua cabeça, pirata estúpido. – pensou ele em voz alta, como sempre fazia quando as engrenagens de sua mente começavam a girar mais rápido. – Está ficando nervoso. Eu diria até esperançoso. Pare com isso. – ele fez uma careta, contendo a vontade de bater na própria cara. – Pare com isso pare com isso pare com isso.  – ele apertou as mãos contra as têmporas, soltando um grito exasperado. Olhou novamente a bússola, mas ela apenas dava voltas e mais voltas. – Pense. Você já lidou com coisa pior. – ele deu de ombros ao próprio comentário, forçando um sorriso.

      Mas aquele simples gesto lhe doeu. A verdade é que ele estava, sim, nervoso, esperançoso e com medo. Nervoso por não conseguir sair de uma situação tão estúpida, com a esperança de encontrar sua tripulação, ou vice-versa. E com medo do que poderia ter acontecido com a ruiva.

      Grunhiu alguma coisa incompreensível e passou a correr. Não de seu jeito bêbado e cambaleante, mas furioso e obstinado. Tudo o que queria era estrangular aquela mulher e vê-la mudar para todas as cores existentes. Arrancar toda a sua pele e talvez usar de tapete para sua cabine.

      Eram esses seus pensamentos quando aquele vento o acertou pela terceira vez. Mas foi diferente. Mas forte, e parecia carregar alguma coisa. Como quando se ouve um som muito alto e ele reverbera dentro do seu peito.

      Foi exatamente o que ele sentiu. Como se um grito entrasse em seu peito e ecoasse por cada centímetro de seu corpo. E ele sabia de quem era aquele grito, é claro. Sua intuição estava certa, pelo menos, mas isso também não lhe reconfortou.

- Brooke... – ele tentou dizer mais alguma coisa, mas sua voz morreu. Então esperou, imóvel, até que os calafrios deixados por seus gritos cessassem. E depois, mais certo e sóbrio do que nunca esteve na vida, correu numa única direção, com algo estranho em seus olhos. Algo que qualquer criatura sensata deveria temer.

***

      Gibbs estava quase saltitando de nervosismo. Catherine, ao seu lado, arquejava de tempos em tempos, empalidecendo, sempre que um vento mais forte passava por eles. Chegou a oferecer seu casaco fino e surrado a ela, mas por educação do que qualquer coisa, mas a loira insistia que aquilo não era frio.

      O supersticioso Imediato não duvidou de sua palavra. Não podia negar que também sentira arrepios que não tinham nada a ver com a temperatura da ilha.

- Algum sinal deles? – perguntou a médium depois de um tempo, com a voz rouca por falta de uso. Estava tão incomodada com as auras correndo pra lá e pra cá em sua visão que a ideia de estabelecer um diálogo nem passou pela sua cabeça. Pensou que Gibbs também tinha seus motivos para não tê-lo feito.

- Nada. – disse o velho, com um suspiro cansado. – É como se o mar os tivesse engolido...

      Catherine arquejou de novo, e o pirata olhou ao redor, esperando pelos calafrios trazidos pelo vento. Quando não vieram, ele percebeu que fora por causa do seu comentário.

- Estou brincando. – disse ele, com uma risada estranha. – Não subestime a tripulação do Pearl. A qualquer momento podemos ouvir os xingamentos do Barbossa, reclamando por não conseguirem fazer o navio se equilibrar em uma árvore.

      Um pequeno sorriso apareceu nos cantos dos lábios pálidos da loira. Começou a pensar se Jack o havia recrutado realmente como Imediato, e não por ele simplesmente ser um ótimo amigo e ter uma assombrosa intuição.

      Ambos deram pequenos saltos quando um raio estalou no céu, fazendo com que as auras dançantes que Catherine via desaparecesse por alguns segundos.

- Que ótimo.  – resmungou Gibbs, secando do rosto uma enorme gota que havia caído. – Como se a situação já não estivesse ruim o suficiente. Venha, Srta. Catherine. Vamos procurar um lugar para nos protegermos da chuva.

      A loira franziu a testa, parando de repente. Gibbs virou-se para ela com um olhar impaciente, mas que logo se tornou curioso.

- O que é?

- Não há nada por aqui, Mestre Gibbs. – disse ela num tom de quem fala com uma criança burra.

- O que está dizendo? – ele ergueu uma sobrancelha, fazendo um gesto largo para a floresta e percebeu, um segundo depois, que ela não podia ver. – Oh. Perdoe-me.

- Posso ver a aura das pessoas, Gibbs, de todos os seres vivos, e árvores são seres vivos. – disse ela, soando ofendida. – E eu digo que não há nada lá.

      O pirata a olhou por um momento com uma expressão confusa, sem saber como proceder. Os lábios finos da mulher estavam rígidos numa linha de irritação, os braços cruzados sobre o peito, o peso apoiado em uma das pernas, enquanto o outro pé batia impaciente na areia cinza e grudenta. A perfeita encarnação da teimosia.

      Isso o fez ter saudades de Brooke.

- Vamos logo. – disse ele, revirando os olhos e puxando a mulher pelo pulso.

- Espere! – protestou a mulher, mesmo deixando-se ser arrastada.

- O que foi? O que espera que façamos? Não há nada nem ninguém por aqui. Prefere que fiquemos parados como duas pedras enquanto a garota que você se sacrificou para proteger solta gritos de misericórdia ao vento? – explodiu, um segundo depois se surpreendendo com o próprio tom. Encolheu os ombros, envergonhado. – Desculpe.

- Então você também percebeu... – murmurou ela, não parecendo notar nenhuma diferença.

- Sou velho, mas ainda não estou surdo. Aliás, acredito que é preciso mais do que uma surdez total para não ouvir esse tipo de coisa. – Gibbs estremeceu, fazendo uma careta. – É como se a própria ilha gritasse.

      Catherine assentiu, com uma expressão indecifrável. Movimentou a cabeça como se seguisse algo que apenas ela pudesse ver, e Gibbs espremeu os olhos para tentar seguir a mesma direção, mas não havia nada além de arbustos secos e árvores altas e finas.

- Por Calypso, diga que está tendo alguma visão e que sairemos deste lugar infernal.

      A loira ergueu uma mão para silenciá-lo, e o pirata percebeu que ela tremia. Aproximou-se da mulher com cautela, sem saber que reação esperar.

- É como se...

***

- Mas que inferno! – vociferou Barbossa, chutando arbustos secos que se amontoavam em seu caminho. Lembrava-se de já tê-los chutados pelo menos cinco vezes na ultima meia hora.

      A tripulação, ou pelo menos boa parte dela, agitava-se atrás dele. Angélica também estava inquieta, olhando-o de cara feia a cada berro que dava, como se ele fosse um retardado.

- Vamos dar meia volta, largar aqueles palhaços para morrerem aqui e esquecer que esse lugar existe. – disse ela, num tom que soava como metade ordem, metade súplica.

- Faça isso e será a primeira a morrer aqui. – disse o capitão em tom sombrio, tocando, sem ao menos perceber, a espada amarrada em seu cinto.

      A morena pareceu indecisa entre engolir em seco e bufar, e acabou engasgando ao tentar fazer os dois. O pirata pareceu satisfeito com sua reação, voltando a sua postura original, igualmente ameaçador porém mais irritado.

      Angélica pensou em seu pai, perguntando-se se ele já tivera aquele tipo de obsessão. Obviamente, sim. É claro que sim. Ele teria rastejado com suas ultimas forças para encontrar aquela pedra, se fosse possível. Uma pedra que lhe protegia de feitiços e curava ferimentos de qualquer tipo, mesmo não garantindo uma vida prolongada, era o mais próximo que havia da imortalidade, depois da Fonte. Ele teria feito qualquer coisa por ela.

      Mas a morena percebeu, quase com ciúmes, que Barbossa fazia aquilo também por Jack e Brooke. O velho capitão sentia um carinho pela ruiva que o Barba Negra nunca sentiria pela filha, mesmo não sendo legítima.

      Mais uma vez, a inveja que sentia de Brooke ardeu dentro dela. Sensação que não durou muito, uma vez que outro vento forte, ou “o sopro da morte”, como chamara alguém da tripulação, passou por eles, fazendo-os estremecer e gemer baixinho, assustados.

      Resmungou consigo mesma e sentiu as bochechas arderem ao murmurar entre dentes:

- Esteja bem, pirata idiota.

      Barbossa a olhou de canto de olho e deu um breve sorriso. Mesmo a contragosto, a morena havia ecoado seus pensamentos com perfeição.

***

      Jack arfava, apoiado numa árvore. Estava suado e com vários cortes superficiais, por ter se enfiado numa floresta de plantas secas que pareciam prendê-lo com garras.

      Porém, independente de quanto corresse, não parecia chegar a lugar nenhum. Tentou seguir até mesmo a direção dos raios, mas, assim como quando chegara, só havia uma quantidade interminável de areia.

      Alguma coisa estava errada.

      O pirata franziu a testa por um momento, tentando não se empolgar com aquela centelha de compreensão. Que aquela ilha não era algo natural, ele já sabia. Por isso a bússola de Tia Dalma não funcionava. Mas não era só isso. Mesmo assim, ele devia ter chegado à água em algum momento.

- É como se... – ele arregalou os olhos, esfregando a testa.

      Um pequeno sorriso foi se espalhando por seus lábios, permanecendo ali apenas por um minuto. Outra vez, aquela sensação o atingiu. Mais alto, mais forte. Tanto que seus joelhos chegaram a tremer. Cravou as unhas na árvore em que se apoiava, praticamente rosnando, e tornou a andar a esmo, recusando-se a ceder às trapaças da deusa.

- Eu já entendi tudo. – cantarolou, voltando a abrir um sorriso tão largo que parecia quase demoníaco. – É preciso mais do que isso para enganar o Capitão Jack Sparrow, sua víbora. Entenda que é só uma questão de tempo. – ele coçou distraidamente o calombo em sua nuca – Bem curto, aliás. Sim, sim. – ele concordou consigo mesmo, balançando a cabeça com uma expressão iluminada. – Eu sou o tipo de pirata que não gosta de dividir seus tesouros. Acho que preciso deixar isso claro.

- É mesmo?

***

- Por favor. Por favor, por favor, por favor, faça parar...

      Brooke interrompeu-se com o próprio grito, que pareceu vir do fundo de suas entranhas e trazer um jorro de sangue consigo. Ela vomitou e tossiu, tremendo violentamente.

      Seu cérebro parecia cozinhar dentro de seu crânio. Seus olhos ardiam, e ela já não tinha certeza se o que escorria deles era água. Sentia um gosto forte de ferro na boca, mas esse parecia ser o menor de seus problemas.

      Ela estava enlouquecendo. Imagens bombardeavam sua mente sem parar, levando-a a um inimaginável grau de desespero. Lembranças de suas brigas com seu pai, dos pretendentes de Cassandra que sempre acabavam traindo-a, de sua época com Gregory... Ambas as mentes pareciam enroscar-se, confundindo-se, até que ela passou a sentir a dor da mulher como se fosse dela própria.

       A pedra em seu pescoço, por baixo da camisa surrada, imunda de sangue e terra, parecia afundar pouco a pouco em sua pele. Esgotada, ela apenas gemia, rangendo os dentes, contorcendo-se de forma incontrolável.

      Isso mesmo, uma voz conhecida soou em sua mente com aprovação, Você está cedendo rapidamente.

- O-O quê...? – ela arregalou os olhos, ofegante.

      A conexão está quase completa. Infelizmente, você só sentirá mais um pouquinho de dor., a ruiva pôde ouvir até mesmo sua risadinha sádica, escorrendo veneno. Eu esperava que você fosse um receptáculo mais forte, mas parece que vou ter que me contentar com isso.

       Como prova de suas palavras, Brooke perdeu sua visão abruptamente. Arquejou, desesperada, tentando lidar com as náuseas. Sentiu-se escorregar pela escuridão, perdendo aos poucos a audição e o tato, até que parecia não estar dentro de seu próprio corpo.

      Temeu que a situação fosse exatamente essa. Tentou sacodir-se, desesperada, mas não sentiu nada. Nem mesmo um formigamento. Quis gritar, mas de repente parecia não saber como fazê-lo.

      Tudo isso desapareceu com uma súbita visão do céu. Havia uma tempestade forte lá fora, e ela se sentiu quase aliviada por sentir as gotas de chuva escorrendo por sua pele.

       Quase. Porque aquela... não era sua pele.

- Incrível, não é? – disse a deusa para si mesma, sabendo que a ruiva estava ouvindo. – Essa é a parte mais divertida. Dura poucos minutos, mas ainda assim é. As ultimas sensações da alma antes de ser arrancada do receptáculo. É como um show particular. – explicou ela com deleite.

      Brooke estava apavorada. Pensou que, no navio, estivesse, mas não chegava nem perto. Aquele era o pânico absoluto do qual ela zombara tantas vezes.

      Mas obrigou-se a voltar a superfície da sensatez. Poderia aproveitar-se de alguns fatos: a pele da mulher, apesar coberta de feridas gangrenadas e com os ossos expostos em algumas partes, não doía. Ela podia enxergar, apesar de por outros olhos.

      Podia manter a calma. Ou pelo menos tentar.

- Não tente nenhuma gracinha. – grunhiu Cassandra, de repente inquieta. A ruiva sentiu-se sorrir.

       Mesmo não sabendo para onde a mulher estava indo, poderia tentar localizar-se. Desejava também, bastante apreensiva, que ela encontrasse os outros. Precisava saber se estavam bem.

       Mas, obviamente, isso não lhe seria permitido. Antes que pudesse ter qualquer vislumbre lhe fizesse sentido, escorregou de volta para o próprio corpo. Para a dor e a agonia incessante. Ao mesmo tempo em que soltou um grito por entre os dentes trincados, ouviu Cassandra rosnar em sua mente.

      Eu disse para não tentar nenhuma gracinha, disse ela num tom sombrio, e sua mente se silenciou por um minuto.

      Brooke ofegou, tentando entender o que acontecera. Então sentiu algo escorrer por seu antebraço e chegar ao ombro. Sangue. Sem perceber, a ruiva havia cravado as unhas nas palmas das mãos, tentando livrar-se da dormência.

       Só teve meio minuto para pensar com clareza, por que, antes que pudesse fazer qualquer coisa a respeito, sentiu como se facas quentes lhe atravessassem o cérebro.

      Urrou de dor, sem poder fazer nada além de se debater como um peixe fora d’água. A sensação espalhou-se por todo o corpo, fazendo parecer que os músculos iam se soltar dos ossos e rasgar a pele.

      Aquilo durou o que pareceu ser uma eternidade. Graças à Cassandra, independente da quantidade de dor que sentisse, não conseguia ficar inconsciente. Aquilo seria fácil demais, ela dissera.

      Vomitou mais um jorro de sangue em seu colo, engasgando em seguida. A sensação de asfixia foi quase boa, e então uma ideia surgiu em sua mente atordoada.

      Mordeu a língua com toda a força, mas seu maxilar abriu-se com um ruído bizarro antes que pudesse terminar.

      Estou pegando leve com você?, indagou a mulher em sua mente, parecendo divertir-se.

      Brooke estava prestes a dizer alguma coisa, quando o silêncio e o torpor voltaram a tomá-la.

      Desta vez durou apenas um momento. O tempo de uma respiração profunda, antes de tudo ceder ao caos.

      Parece que sim, Cassandra riu. Engraçado alguém como você ter tanto amor à vida. Eu a subestimei.

      A ruiva rangeu os dentes, esperando pela nova onda de dor insuportável. Mas, quando ela veio, ela apenas soltou um arquejo, com os lábios tremendo. Talvez por suas pernas ainda não terem se recuperado totalmente do torpor. Por um segundo, perguntou-se se voltaria realmente a senti-las.

      E do mesmo modo aconteceu mais duas vezes. Ela apenas estremecia, gemia baixinho, mas conseguia aguentar. Ao mesmo tempo, surgira em sua nuca uma sensação que ela não havia sentido das outras vezes. Imaginou se seu cérebro estaria realmente cozinhando.

      Mas era apenas uma queimação em sua nuca, que ela conseguiu tocar com muito esforço. Havia ali uma ferida, ou uma cicatriz. Algo inchado e dolorido...

      Os olhos azuis quase translúcidos de Brooke reluziram ao lembrar.

      Tia Dalma!, gritou em sua mente, surpresa por ouvir sua própria voz.

      Então outra facada atingiu sua cabeça. Uma advertência.

      A esperança que crescia em seu peito era tanta que ela quase chorou, mas manteve-se quieta. Sem qualquer pensamento estranho. Sem nenhum movimento súbito.

      De repente, sabia exatamente o que fazer.

***

      Jack olhava estarrecido para a mulher a sua frente.

      Era pálida, mais baixa que Brooke, e tinha cabelos negros que iam além de sua cintura fina. A cor de seus olhos era exatamente igual aos da ruiva, e essa era uma das coisas que mais o perturbara.

      Além da pele podre e o sorriso diabólico, é claro.

- Então é você? – murmurou Jack, com o queixo erguido e o olhar com a quantidade certa de desprezo, cambaleando até ela sem nenhuma preocupação.

      O sorriso da mulher não diminuiu, mas seus olhos se estreitaram, seguindo-o sem que movesse o rosto. Na opinião de Jack, ela parecia um gato molhado: arisco e patético.

      Mas ela havia feito Brooke gritar daquela forma. E ele também havia aprendido com algumas “damas” no passado, que não era realmente sensato subestimar o sexo feminino.

- Então é você. – ela ecoou, surpreendendo o pirata com a voz doce. – Jack. Sparrow. – cantarolou, lambendo os lábios. Também se aproximou dele com passos de gato, saboreando as palavras que diria a seguir: - Sua tripulante tem chamado por você há muito tempo.

      Esperou então a reação que já havia visto tantas vezes antes. Depois de anunciar a morte de todas as mulheres com que já havia sido traída, arrastando os corpos em graus variados de decomposição, ela se deliciava com as reações. Eles empalideciam, tremiam, choravam, rogavam pragas ou simplesmente caiam de joelhos, perplexos.

      Não houve nada disso. Ela não notou a mínima hesitação, qualquer mísera mudança no brilho de seus olhos castanhos. Nada. Ele se mostrou absolutamente indiferente, o que a fez rir e ao mesmo tempo ficar tensa.  

      Ela, assim como qualquer um que já tivesse ao menos tido um breve vislumbre do mar, já ouvira falar de Jack Sparrow. Ele tinha sua fama. Ela perguntou-se, cada vez mais tensa, se havia calculado mal. Sparrow poderia mesmo gostar daquela menina? Talvez sim, talvez não.

      Mas não havia diferença, na verdade. A ruiva o amava, e isso estava claro como a água. Ela encararia a morte de seu amado, e isso romperia o ultimo fio.

      Então ela sentiu a mão dele em sua garganta, como se ele houvesse simplesmente dado um passo para seu lado. Sua cabeça atingiu a areia com força, mas ela apenas sorriu. Agarrou o braço do pirata com as duas mãos e o torceu, fazendo-o gritar e encolher-se, o que a deu tempo de erguer uma perna e enfiar o pé em seu estômago, afastando-o. Ela rolou para o lado e ergueu-se num pulo, aproveitando para dar um pontapé nas costelas de Jack, que ainda tentava recobrar o fôlego.

      Correu. Com a testa vincada de esforço, ela tentou criar outra ilusão e cercá-lo de toda a vegetação possível, disparando para o outro lado da ilha. Era irritante o fato de Brooke estar resistindo, o que não a permitia concentrar-se inteiramente, e ela manifestou sua raiva trazendo relâmpagos e nuvens negras.

      Não passados muitos minutos ouviu passos atrás de si. Olhou por cima do ombro, pasma, para o pirata, que tinha um sorriso quase tão largo quanto o que ela tinha alguns segundos atrás. Então ela o fuzilou com os olhos, perguntando-se como, e no mesmo instante, ele fez o favor de mostrar.

      Havia, cravado na palma da sua mão, um pedaço enorme de vidro, que ele espremia mais e mais, impiedosamente. O sangue escorria por entre seus dedos, pingando no chão, mas ele não parecia notar. Percebeu também algo pendurado em sua cintura. Uma bússola quebrada. Uma bússola mágica, aliás, que ele havia ganhado de Calypso, ela trincou os dentes ao concluir.

      Ele também a amava. E isso bastou para que se iniciasse o caos.

      A mulher soltou um grito que fez Jack sair de joelhos, tapando os ouvidos com força. Toda a ilha pareceu estremecer, e de repente toda aquela areia cinzenta deu lugar para um mar revolto, cujas ondas ameaçavam o engolir por inteiro. A ilusão havia se desfeito.

      Mesmo assim, para o pirata a visão real da ilha era deslumbrante. Árvores altas, com troncos grossos e folhas saudáveis, margeavam um conjunto realmente belo de montanhas, que ele não havia percebido antes. Estavam totalmente cercados, e um pequeno furacão parecia surgir no meio delas. Podia ouvir com clareza as rochas deslizando de lá de cima, caindo com um estrondo e estremecendo toda a ilha.

      Então voltou sua atenção para a criadora de tudo aquilo. A mulher, mesmo pequena, pálida e horrivelmente ferida, possuía a expressão de quem poderia apanhar um raio e o cravar no peito de alguém.

      Talvez pudesse, Jack concluiu, cambaleando para trás. Como que para provar seus pensamentos, pelo menos cinco vieram de todas as direções, cruzando-se acima da ilha e formando um clarão que deixou o pirata cego por alguns segundos desesperadores.

      Cassandra correu até ele com os olhos inflamados de um demônio, mas sua pele parecia desfazer-se sempre que o vento batia contra ela, expondo uma boa quantidade de carne pútrida abaixo do olho direito.

      Jack fez uma careta ao mesmo tempo em que cruzou os braços a sua frente para proteger-se da mulher, que pulara em cima dele como se feita de papel. Cravou as unhas em seu braço e ambos caíram no chão, ela em cima dele, aproveitando o momento para agarrar seu pescoço com ambas as mãos.

      Mas matá-lo asfixiado não teria tanta graça. Com um sorriso malicioso, buscou num rápido movimento um punhal preso em sua perna, e o apertou lentamente contra a garganta de Jack.

- Espero que esteja apreciando isso, garotinha. – ela murmurou para si mesma, ainda sorrindo, e algo faiscou nos olhos do pirata.

      Mas ela não teve tempo de saber o quê. Sparrow arregalou os olhos, levemente surpreso, quando algo de madeira acertou em cheio o rosto da mulher, empurrando-a para longe.

      Olhou para cima com os olhos espremidos, encontrando uma criatura irritantemente altiva fazendo pose contra a luz, olhando-o como se fosse um inseto.

- Ah, olá Hector. – disse ele num tom amistoso, levantando-se e tirando a areia das calças.

- “Olá Hector”? – grunhiu o capitão mais velho, olhando-o furioso. – É só isso que tem para me dizer?

- Acho que já disse que você tem um belo chapéu. – Jack deu de ombros, fazendo-se de desentendido.  Então olhou por cima de seu ombro, para sua tripulação, que estava mais distante, e para Angélica, entre os dois. Seus ombros despencaram e ele lançou para Barbossa um olhar genuinamente decepcionado: - O mar não a levou embora?

      Barbossa limitou-se a simplesmente revirar os olhos, enquanto a espanhola atrás de si fazia gestos obscenos para o capitão mais jovem, que retribuiu simplesmente lhe mostrando a língua.

- Onde está Brooke? – perguntou Barbossa, fazendo Jack virar-se para ele automaticamente.

      Ambos encararam-se por alguns segundos, e a único som ali vinha dos relâmpagos acima deles.

- Eu daria minhas roupas do corpo para ter a resposta, meu caro. – disse Jack simplesmente, no tom mais desanimado que já usara na vida, virando-se para frente. – Então, nu, eu me aproveitaria da situação quando a encontrasse.

      O pirata mais velho cerrou os punhos com força, usando toda a sua força de vontade para não esmurrá-lo. Sabia que ele estava mais preocupado do que qualquer um ali, embora não demonstrasse.

      Afastando-se desses pensamentos, ele se pôs a observar com estranheza a mulher ainda caída a alguns metros, rosnando e parecendo rogar todos os tipos de maldição.

      Aproximaram-se com cautela, parando abruptamente quando a mulher ergueu o rosto para eles. O local abaixo do olho direito, onde antes estava sem pele, agora havia realmente se desfeito, expondo ossos extremamente brancos e um pedaço dos dentes, fazendo aquele parecer um sorriso torto realmente macabro.

- Já vi mulheres mais feias. – disse Barbossa com indiferença.

- Tipo a sua mãe? – emendou Jack, olhando-o de soslaio.

      O mais velho tentou chutá-lo com a perna de madeira, e Jack deu um passinho displicente para o lado, por pura zombaria.

      Um dos tripulantes jogou uma espada para o pirata, mostrando que não estava nem um pouco disposto a entrar naquele combate. Em resposta, o capitão apenas deu de ombros e tornou a olhar para frente, onde a mulher ainda falava baixa e rapidamente, ajoelhada no chão, com pedaços de si caindo ao seu redor.

- Ei, Hector – chamou Jack baixinho, satisfeito por este o ter simplesmente o olhado de canto de olho -, acha mesmo que conseguiremos alguma coisa com essa aí?

      O homem pareceu refletir um pouco antes de responder, com um sorriso:

- Não. Mas vai ser uma boa oportunidade para testar uma coisinha...

      Jack o olhou sem entender, então Barbossa apontou com os olhos para espada que segurava atrás de si. De sua lâmina saía uma espécie de chama negra, que fez os olhos do capitão mais novo reluzirem de cobiça.

- Raios me partam, onde você encontrou isso?

- Um presentinho de Zeref. – Barbossa riu quando Jack franziu o cenho. – Você não o conheceu. Estava ocupado demais morrendo.

      A compreensão iluminou as feições de Jack, que pousou inconscientemente a mão na grande cicatriz ainda recente em seu abdome. Maldita cobra gigante...

      Então a conversa, ou melhor, qualquer ruído na ilha, cessou subitamente. O céu pareceu escurecer ainda mais, como se tivesse anoitecido. Em poucos segundos estavam cercados por uma névoa espessa, mal conseguindo enxergar as próprias mãos.

- Jack? – uma voz feminina quebrou aquele silencio absoluto, fazendo o moreno dar um pulo. Desejou ardentemente que fosse Brooke, mas sabia que era tolice.

- Mantenha a calma, Angélica... – murmurou, como se falasse com uma criança.

      Então uma mão tocou seu ombro, fazendo-o dar outro pulo. Mas aquela mão era muito pálida para ser da espanhola...

- Catherine...? – Jack espremeu os olhos, tentando enxergar através da névoa.

- Preciso falar com você. – disse a loira num tom grave, fazendo-o perceber que não era exatamente ela quem falava. – Não temos muito tempo. Você precisa...

      Interrompeu-se ao ouvir um barulho estranho. As ondas que iam e vinham sob a névoa pareciam trazer algo consigo. Não soube dizer o que era. Parecia ser pedras, madeira ou... ossos.

       Com sentidos que Catherine não podia contar em seu estado normal, ela ouviu aquele som e sentiu aquele cheiro pavoroso. Podia quase visualizar, em sua mente, restos de carne ainda grudada aos ossos.

- O que é isso?! – indagou Barbossa, não tão surpreso quando seria de se supor.

- Não são flores, isso eu lhe garanto. – ouviu a voz debochada de Jack responder.

       O capitão mais velho apenas grunhiu e seguiu em frente, fazendo a névoa rodopiar atrás de si. Sparrow estava prestes a segui-lo quando a loira agarrou-o novamente pelo braço.

- Escute! – disse ela num sussurro forçado. – Pepper está tentando fazer algo idiota, e eu não tenho certeza se posso ajudá-la. Está apostando a vida no selo que coloquei em vocês, mas...

- Você o quê? – Jack a interrompeu, perplexo.

- Na sua nuca. – explicou, impaciente.

      O moreno voltou a coçar a pequena ferida, por puro reflexo. Sua mente dava voltas, irritantemente não chegando a lugar algum.

- Você precisa impedi-la. Não posso garantir que o poder do selo seria suficiente contra a espada de Zeref.

- O quê...? – balbuciou o capitão estupidamente, sem entender.

- Brooke quer aceitar Cassandra e destruí-la dentro do próprio corpo. Acredita que o selo a protegerá da morte. – ela encolheu os ombros, parecendo culpada.

      Jack então entendeu tudo. Ela estava tentando se sacrificar. Isso é bem a cara dela, grunhiu mentalmente, fazendo uma careta.

       Estava prestes a dizer alguma coisa quando uma mão esquelética irrompeu da névoa, agarrando seu pescoço. O pirata cambaleou para trás, surpreso, mas logo sua expressão mudou para um curioso divertimento.

- É engraçado pensar que não é a primeira vez que isso me acontece. – disse ele, meio sem fôlego, e puxou o braço esquelético para mais perto de si, revelando ser exatamente o que imaginava. Esqueletos ambulantes. Que gracinha.

- Argh! – Barbossa gritou. – Essa coisa me mordeu!

      Jack deu um safanão no crânio pútrido do que o agarrava, fazendo-o voar longe. Não tinha tempo para lidar com aquilo, por mais... nostálgico... que fosse.

- Catheri... Digo, Tia Dalma! – chamou, vendo de relance os cachos loiros sacudirem ali perto. – Onde ela está?

      Como resposta, um novo raio cortou o céu, atingindo o topo de uma das montanhas que cercavam a ilha. E com ela, outra lufada daquele vento cujo som era desesperador.

- Vá. – disse ela com firmeza.

- Hector! – gritou, ainda olhando para ela. – Vou deixar a diversão para você.

       Ouviu o outro xingá-lo e quase deu um sorriso satisfeito. Então assentiu para a loira e disparou em direção à montanha, esforçando-se para não perdê-la de vista. A ferida em sua nuca ardia mais do que nunca.

***

Ela gritou. Até sentir o sangue subir pela sua garganta e engasgar com ele. De novo, e de novo, e de novo.

      Estava disposta a entrar naquele jogo, mas não sabia até quando aguentaria. A determinação de manter a salvo aqueles que amava era a única coisa que a mantinha sã.

       Perdia e recobrava os sentidos, como se de repente Cassandra a estivesse rejeitando. Tinha breves vislumbres do que acontecia lá fora, pelos olhos dela, mas nada que fizesse sentido. Ouvia gritos desconexos, ruídos de ossos, a risada feroz que reverberava no peito da mulher e uma névoa densa a sua frente. Sombras avultavam-se um pouco mais além, num formato perfeito, como as brincadeiras que sua mãe fazia com as mãos na frente de uma vela contra a parede. Quase perdeu-se em momentos mais felizes, mas então percebeu, com um aperto no peito, que eles não podiam correr mais perigo.

      Então eles atacaram. Dezenas de... esqueletos, com alguns pedaços ainda inteiros, corriam atrapalhados na direção deles, agarrando-os com os dedos longos, mordendo-os ou simplesmente se chocando contra eles, despedaçando-se. Pedaços voavam para todos os lados, sendo mais inconvenientes do que perigosos.

       Barbossa de repente teve uma dolorosa consciência do que era aquilo. Pelo menos uma parte da lenda dizia a verdade. Quando a maré subia, trazia consigo os ossos dos piratas que ela havia matado.

       A névoa aos poucos se dissipou, revelando o pequeno exército que a mulher ainda tinha. Angélica arfava ao lado do capitão, segurando com força demais o ultimo crânio que havia arrancado.

- Tenho a flecha do cupido... A riqueza é ilusão... E só pode consolar-me... – Cassandra cantarolou, sua voz gotejando ironia, e acariciou o queixo de um deles antes que partisse em sua corrida cambaleante -... Meu marujo alegre e bom.

- Ela não pode estar cantando isso. – disse Barbossa, indignado, um segundo antes de explodir os ossos podres com um soco.

       A espanhola soprou o cabelo do rosto, furiosa.

- O que diabos ela está fazendo? – rosnou, já cansada de ver pedaços fétidos voando.

- Distraindo-nos. – disse Catherine de repente, ainda com a voz de Tia Dalma.

- Calypso! – Barbossa arregalou os olhos para ela, quando deixando que uma das criaturas mordesse seu braço.

- Barbossa, temos que chegar a ela. Agora. Brooke está em perigo. – disse ela, decidida, despedaçando sem dificuldade um esqueleto que pulara em cima dela.

      Os olhos claros do capitão cravaram-se nela por um momento. Independente da voz profunda que saía de seus lábios, ele ainda a via como Catherine. E aquela talvez aquela fosse a primeira vez que notava de verdade a cicatriz em seus olhos, cuja ponta saía um pouco por baixo da faixa que a cobria. Imaginou que devia aquilo a ela também. Afinal, ela salvara sua... Diabos, ele já considerava a ruiva sua filha.

      Com uma ruga de preocupação surgindo entre suas sobrancelhas, ele assentiu levemente, segurando com firmeza o punho de sua espada flamejante, que Cassandra parecia ainda não ter notado. Viu pelo canto do olho as duas mulheres ao seu lado trocarem o mesmo tipo de aceno.

      Então os três dispararam. O grito decidido dos homens atrás deles, que se mostraram surpreendentemente fiéis, chegou a seus ouvidos como um ruído distante. Barbossa tinha um pequeno sorriso no canto dos lábios e um brilho feroz no olhar.

      Lá está, pensou Angélica, mantendo-se ao seu lado aparentemente sem nenhuma dificuldade. Estava sendo quase bom para ela descarregar sua raiva naquelas porcarias de esqueletos inacabáveis. Mas ela notou, mesmo não querendo. Aquele mesmo brilho no olhar, como se ele tivesse encontrado um tesouro. Tudo isso por ela.

      Cravou com mais força do que o necessário os dedos nas costelas cobertas de musgo de um a sua frente, abrindo-os com ódio. Talvez ela seja um tesouro, pensou com desdém.

      Mas obrigou-se, com uma dificuldade quase dolorosa, a ignorar quaisquer outros pensamentos desagradáveis que pudesse ter a respeito. Estava sendo mesquinha e irracional. Não tinha certeza se Brooke viveria por muito tempo. Isso se ainda estivesse viva. E, justiça seja feita, ela merecia um pequeno esforço.

      A morena grunhiu e fez outro esqueleto em pedaços, parando apenas para desenroscar sua espada do tórax cujos ossos brancos entravam em contraste com a pele acinzentada e o musgo grudado neles.

      Continuaram naquela guerra infrutífera por o que pareceram horas. Esqueletos eram despedaçados e então voltavam a formar-se, atacando-os com a mesma, ou senão maior, ferocidade. Barbossa, Catherine e Angélica já estavam cobertos de suor, cortes e mordidas, e a mulher que buscavam parecia cada vez mais distante.

      Mas ela também parecia estar sentindo o tempo. A pele de seus braços havia caído, como se fossem luvas. Ao invés do sorriso presunçoso, ela tinha os dentes trincados com força, e por entre eles continuavam saindo estranhas palavras sussurradas. Como se ela fizesse um feitiço.

- Barbossa! – gritou Catherine, jogando-se em cima da criatura com que o pirata lutava. – Não podemos deixá-la terminar a transação.

- Senão ela pegará Brooke emprestado, certo? – ele riu, como se aquilo fosse a coisa mais ridícula que já tivesse ouvido, embora estivesse no momento lutando contra um monte de ex-amantes mortos de uma deusa magoada.

- Não é só isso. Brooke irá morrer. – disse ela com a voz sombria. Ao ver o rosto confuso do capitão, pôs-se a explicar mais uma vez: - Eu...

      Um grito ensurdecedor a interrompeu, e o som parecer penetrar até os ossos daqueles que o ouviram. Um trovão ribombou no céu, trazendo consigo uma chuva forte. Em poucos segundos, todos estavam encharcados e tremendo contra o vento que parecia vir de todas as direções, assim como os esqueletos, que ainda rasgavam e mordiam e amontoavam-se ao redor deles. Angélica chegou a pensar que morreria sufocada ali.

- Barbossa! – Catherine gritou de novo.

- Estou ocupado aqui, senhorita! – respondeu o pirata, irritado, chutando tudo a sua frente.

- Precisa. Ser. AGORA!

      A voz profunda de Calypso entrou em seus ouvidos e ecoou em todo seu corpo. Sentiu a nuca formigar e nada pôde fazer além de seguir em frente, pisoteando qualquer um que entrasse em seu caminho.

      A deusa estava ajoelhada no chão, a pele solta caindo em volta de si como a de uma cobra. Tremia violentamente, e ainda assim continuava a sussurrar o que quer que estivesse dizendo. Mas então ela se interrompeu, sibilando, quando a espada de Barbossa rasgou o ar a sua frente, lançando chamas negras em sua direção.

      A mulher ergueu-se num pulo, e um grande pedaço da carne de sua coxa escorregou para o chão. O capitão fez uma careta, enojado, mas logo se concentrou em outra coisa, vendo os olhos dela brilharem de um modo estranho, ficando quase tão brancos quanto os de Zeref.

      Porém só hesitou por um segundo. Brandiu a espada novamente, cercando-a de chamas negras, enquanto ela mostrava os dentes como um animal selvagem. Hesitou tanto quanto ele, lançando-se às chamas e deliciando-se quando está ferveu sua pele, sabendo que efeito aquilo traria agora que a conexão estava praticamente completa.

      Barbossa cambaleou para trás, pego de surpresa, mas então cravou a lâmina no ombro da mulher, fazendo-a soltar outro grito ensurdecedor, que parecia sacodir toda a ilha. Um líquido que não parecia ser exatamente sangue escorreu pela pele pálida e então se desfez em cinzas.

       Seu braço quase se soltou quando ele recolheu a espada. Pendia de uma forma grotesca, precariamente preso ao resto do corpo, exibindo os ossos.

       O pirata continuou a investir contra ela, mais e mais irritado, mas agora não conseguia mais acertá-la. Raios atingiam a areia a uma distancia perigosamente próxima de seus pés, distraindo-o, e ela movia o corpo como uma folha ao vento. Sorria com o lado dos lábios que ainda estava inteiro, mostrando dentes escuros e podres.

- Vamos, pirata. Aqui. – ela desenhou com os dedos um coração em seu peito. – O que está esperando?

      Barbossa fitou-a por um momento sem qualquer expressão, arfando. Então acertou o outro lado do rosto da mulher, vendo a mesma coisa acontecer. Algo escuro escorria e evaporava.

      Ela secou o sangue com os dedos, esfregando-o entre o polegar e o indicador, e então o olhou com irritação. Barbossa engoliu em seco, e, mesmo que nunca fosse admitir para ninguém, acreditou que morreria naquele instante.

      Mas o ódio no rosto da mulher se desfez com a mesma rapidez com que surgiu, dando lugar a uma expressão maravilhada. Seu sorriso macabro espalhou-se no rosto e ela explodiu em uma gargalhada.

- Pirata estúpido. – seus olhos voltaram ao azul idêntico ao de Brooke por apenas um segundo, tornando a ficarem brancos. – Vamos chamar a convidada de honra.

      Barbossa empalideceu. Não havia conseguido.

      Com um sorriso de satisfação, Cassandra tombou a cabeça para trás, soltando um terceiro e ultimo grito. O céu piscou e trovões ribombaram novamente, formando um circulo de nuvens negras que desceram e cercaram o corpo da deusa por um breve momento. O tempo de seu grito percorrer toda a ilha e ecoar, e então desaparecer completamente, deixando tudo num silêncio lúgubre.

      Um segundo depois o céu clareou, fazendo o pirata piscar diversas vezes. Uma brisa suave passou por ele e pela mulher a sua frente; ou melhor, por aquela carcaça desfigurada, que virou pó ao mais leve toque do vento.

       Observou, com uma expressão vazia, as cinzas serem levadas pelo vento para uma direção em particular. A montanha, é claro.

      Soltou um suspiro profundo, como se tivesse ficado 20 anos mais velho.

- Capitão! – ouviu algum de seus homens gritar, e então todos estavam a sua volta, obviamente estupefatos.

- Barbossa! – Catherine correu até ele, pousando a mão em seu braço. Pelo tom aflito, percebeu que voltara a ter controle de seu corpo. – O que aconteceu?

- Acabou? – Angélica a cortou com outra pergunta.

      Ele a fitou por um segundo, sem saber exatamente como responder. Acabou?, ele perguntou a si mesmo, seguido por uma risada seca. É claro que não.

- Ainda não. – ele suspirou de novo. – Mais uma vez, precisaremos confiar em Sparrow.

- Mas ele... – a morena olhou para as mãos do pirata, horrorizada. – Ele não tem a espada.

      Silêncio. Um longo e estúpido silêncio, enquanto eles apreciavam no ar as palavras que ainda não haviam tomado significado.

      Mas o momento passou, e Barbossa absorveu a informação como um soco no estômago. Sentiu sua nuca arder novamente, e não precisou olhar para Catherine para entender a mensagem: “corra”.

       E ele correu. Tanto quanto um pirata terrivelmente obstinado pode correr, com uma perna só.

***

      Jack chegou ofegante à entrada da caverna. O ar ali era gélido e parecia raspar em seus pulmões. Não foi difícil encontrar Brooke, mesmo na escuridão completa que o cercou depois de alguns passos para dentro dali. O tilintar de metal e os gemidos baixos da mulher o guiavam sem dificuldade, e ele engoliu em seco quando se tornaram mais altos.

      E de repente cessaram. O pirata estancou, assustado. Por quê?

      Engoliu em seco mais uma vez, com dificuldade, parecendo estar com a garganta cheia de areia. Cambaleou por uma curva na caverna e então a viu.

      Seu coração pareceu despencar. Sentiu a cor fugir do seu rosto enquanto encaminhavam-se devagar para a figura no chão, parcialmente coberta pelas sombras. Estava num silêncio sepulcral, e Jack experimentou mais uma vez aquela sensação gelada nas entranhas.

- Brooke? – ele chamou com a voz rouca, ajoelhando-se a sua frente. Os cachos ruivos da mulher caiam sobre seu rosto, cobrindo os olhos e um pequeno pedaço dos lábios. Estes estavam arroxeados e imóveis.

- Brooke. – chamou de novo, em tom mais urgente.

      Estendeu a mão lentamente para tocar seu rosto, mas foi impedido por um movimento súbito da mulher. Arquejou entre dentes, tombando sentado no chão.

- Olá, Sparrow. – a ruiva abriu um sorriso sedutor, sentando-se ereta. Balançou a cabeça para tirar o cabelo do rosto, revelando como este estava pálido.

       Mas não foi isso que chamou a atenção do pirata, e sim seus olhos. Eram sempre seus olhos. Eles pareciam mais claros, um azul-gelo que não lhe era característico. Então ele entendeu.

      Havia chegado tarde demais.

      Ergueu-se do chão devagar, sem tirar os olhos dela. A mulher movia-se com a graciosidade de um gato, em movimentos lentos, experimentando seu novo corpo. Então fechou os punhos com força e puxou as correntes da parede, arrebentando-as sem dificuldade. Tirou-as dos pulsos e os torceu. O sorriso ainda não saíra de seu rosto.

- Devo admitir, você tem bom gosto. – disse ela com a voz arrastada, fazendo Jack se arrepiar. Passou as mãos por todo o corpo, devagar, demorando-se em cada curva: o pescoço, os seios, os quadris. Abriu um sorriso ainda maior quando viu o pirata engolir em seco. – É um belo corpo.

      Ele então franziu o cenho, parecendo forçar-se a ignorar aquilo.

- Sim, é. – disse ele com displicência. – Mais do que o seu, imagino, uma vez que parece ter sido rejeitado por todos os homens em que você já pôs os olhos.

      Os olhos dela tornaram-se ainda mais claros, sendo quase impossível distinguir sua íris. Sem qualquer aviso, ela girou uma das correntes e a arremessou contra o pirata, rosnando de raiva. Mas algo deu errado.

      Ao esticar o braço, sua pele simplesmente rachou, como se fosse de porcelana. Jack também percebera isso, sem dar nenhuma atenção à corrente que o acertou em cheio, enroscando-se em seus pés. Livrou-se dela com impaciência, ouvindo a mulher gemer e dizer coisas incompreensíveis.

      Um cheiro de carne queimada encheu o ar, assustando-o. A ruiva começou a gritar e se contorcer, pressionando a nuca com as duas mãos.

- Que diabos... – murmurou Jack, pasmo. Chutou a corrente para longe e se aproximou dela com cautela.

      A mulher arfava, com metade do corpo inclinado para frente. Entre seus dedos ele pôde ver as bolhas surgirem, acima da marca deixada por Tia Dalma.

- Maldita! – ela rugiu, tremendo violentamente.

      Cravou as unhas na pele ferida, o que só fez com que essa voltasse a ferver, chiando e deixando um cheiro horrível no ar, então levantou-se subitamente, fixando os olhos absurdamente claros em Jack.

-Onde ela está? – sibilou, trêmula.        

     O pirata a fitou, tenso e ao mesmo tempo curioso. Seu cérebro passara num ritmo frenético ao ver aquilo, e ainda mais quando percebeu estar novamente desarmado. Precisava distraí-la de alguma forma...

- Quem? – perguntou, estupidamente.

      Cassandra trincou os dentes, tanto de raiva quanto de dor. A profunda rachadura em seu braço havia começado a se dividir em outras dezenas de rachaduras menores. Ela gritou e tornou a arranhar a marca em sua nuca com ódio, mas de nada parecia adiantar. A marca voltava a queimar ao mero pensamento que tinha de desfazê-la, e quando mesmo assim tentava fazê-lo, o resto de sua pele rasgava-se como folha de pergaminho.

      Ainda estava perdida naquela dor lancinante quando Jack chocou-se contra ela, prensando-a na parede. Passou habilmente a corrente arrebentava por seus pulsos, atrás das costas, e puxou-os com força até que os nós de seus dedos ficassem brancos.

- Pare com isso. Devolva-a. – rosnou o pirata, com o rosto a poucos centímetros dos dela. A visão daqueles olhos praticamente brancos era pavorosa, mas ele não conseguiu desviar sua atenção deles. Parecia ter esperança de que aquele azul hipnótico voltasse à superfície.

      E foi o que aconteceu. Por meio segundo, a cor neles piscou, revelando a íris azul cobalto e pupilas retraídas de dor. Foi tão rápido que Jack chegou a achar que houvesse imaginado, mas não pôde deixar de sentir o peito aquecer de esperança.

      Infelizmente, o momento passou e seus olhos voltaram àquela cor doentia. Ela soltou uma risada cheia de prazer ao ver a expressão desolada do homem, dando-lhe uma cabeçada no queixo em seguida.

- Vadia... – grunhiu Jack, dando dois passos cambaleantes para trás. Foi o suficiente para que Cassandra escapasse, sumindo nas trevas da caverna.

      O som dos passos dela, porém, ecoavam e chegavam com clareza aos seus ouvidos. Resmungou algo incompreensível e o seguiu, cada vez mais tenso.

- Tia Dalma... – murmurou baixinho, quase que para si mesmo. – Por que está fazendo isso? Você já me criou problemas além da conta, mas... Ela...

      Ele balançou a cabeça, irritado por não saber completar sua linha de raciocínio.

      E foi nesse momento que sentiu tudo desmoronar.

      Raios de sol rasgavam as sombras da caverna, fazendo o estômago de Jack se revirar. Se ela saísse da caverna, para a praia, só Deus sabe quando iria encontra-la.

      Se a encontrasse.

      Então ele entrou na luz e uma brisa surpreendentemente quente atingiu seu rosto. Estreitou 

os olhos para se acostumar com a claridade e percebeu, com um alívio quase palpável, que ela ainda estava ali.

- Brooke... – ele chamou baixinho, sua voz soando estranha.

      Ao contrário do que Jack esperava, aquela passagem não dera para a praia, e sim para uma abertura na parte externa da montanha, dezenas de metros acima do nível do mar, e a mulher estava perigosamente próxima da beirada, quieta e imóvel como uma pedra, de costas para o homem.

- Brooke? – chamou de novo, aproximando-se.

      Ela virou a cabeça minimamente, olhando-o de relance por sobre o ombro, e depois voltou a fitar o mar, murmurando algo que o pirata não conseguiu compreender.

- O que? – indagou, já próximo o bastante para tocá-la com o braço estendido.

      Quando ela não respondeu, Jack se pôs a observá-la, apreensivo. A camisa branca e esfarrapada grudava-se a suas costas graças ao suor, revelando as rachaduras que cresciam mais a cada segundo. Todos os seus músculos estavam retesados, como se ela se esforçasse para não se mexer, e suas mãos tremiam.

-... livre. – ele a ouviu dizer, quase pulando de susto.

      Então alcançou seu braço e virou-a para ele, quase arrependendo-se de tê-lo feito. Seu rosto pálido estava marcado pelas lágrimas, os olhos num azul mais profundo do que o mar que os cercava.

- Eu nunca serei livre. – disse ela de novo, com a voz firme apesar das lágrimas irrefreáveis. – Ela não vai... Eu não posso...

      Ela interrompeu-se com um grito esganiçado, apertando as laterais da cabeça com força. Uma rachadura gigantesca cruzou seu peito e subiu por seu pescoço, fazendo um som borbulhante quando ela engasgou. Jack a segurou antes que atingisse o chão, a cabeça da ruiva pendendo em seu braço enquanto o sangue escorria de sua boca em jorros.

      O pirata a olhou, completamente aterrorizado. Ergueu o rosto da mulher e limpou o sangue de seus lábios com as mãos trêmulas. Olhava ao redor sem saber o que fazer.

- Brooke. – percebeu que até a sua voz tremia. – Brooke, olhe para mim. Brooke.

      Jack beirou o desespero quando viu seus olhos ficarem turvos, vagando para longe. Sua mão ardeu quando ele a encaixou em sua nuca, fazendo-o lembrar da feiticeira.

- Calypso. – ele sussurrou, pousando sua testa na de Brooke. – Por favor, não a deixe morrer. Se você nos colocou nessa situação, ajude-nos. Eu lhe darei qualquer coisa. Por favor.

      Estremeceu quando sua própria marca começou a formigar e depois arder como fogo. Trincou os dentes com força e firmou ainda mais os braços ao redor da mulher, até que esses tremessem com o esforço.

      Ficaram assim pelo que pareceu uma eternidade – Jack rezando baixinho, talvez pela primeira vez em toda sua vida, enquanto a respiração de Brooke atingia seu rosto num sopro frio. Aos poucos, rachaduras pálidas e finas subiam por seu rosto, como veias, cruzando-se com as marcas de lágrimas que acabaram secando sozinhas.

      Seu coração quase saiu pela boca quando a mulher arquejou, debatendo-se em seus braços como um peixe. Pulou quase dois metros para longe dele, olhando-o com uma ferocidade quase animalesca, misturado com uma estranha surpresa.

- Você... – ela tocou o próprio rosto, empalidecendo ainda mais.

      Fitou-o, estarrecida com a energia que agora fluía em seu corpo. Seu sangue corria quase tão quente quanto a marca em sua nuca, fazendo sua pele se arrepiar. Ele deu a ela...

      A surpresa, porém, logo deu lugar ao ódio. Ela arreganhou os dentes ao mesmo tempo que seus olhos voltaram para aquele branco perturbador, e suas mãos simplesmente voaram para o pescoço de Jack, cravando-lhe as unhas com força.

      Ele se desvencilhou quase distraído, confuso com a fúria súbita da mulher. Tirou os braços da mulher de seu pescoço e os torceu com mais força do que o necessário, fazendo uma careta quando a pele alva desfez-se sob seus dedos.

- Por que? – ela rugiu e sua voz pareceu ecoar por todo o oceano, trazendo ondas gigantes que se chocaram contra e encosta, encharcando-os.

- Por que o que? – indagou Jack, subitamente irritado.

- Isso não é justo. – disse ela, soando tão magoada quanto furiosa. – Por que ela tem tudo o que eu desejei em toda a minha existência, sem ao menos tentar? Isso não é justo!

      Um novo raio piscou no céu, iluminando seus olhos e deixando-os ainda mais brancos.

      Então Jack entendeu, encharcado e tremendo de frio, o quão estúpido era tudo aquilo. Aquela ultima frase havia deixado totalmente claro o quão infantil era aquela mulher.

      Inveja. Mágoa. Ressentimento. Poder. Aquela bem que poderia ser a combinação mais terrível de todas. Mas ele sabia muito bem como agiam as mulheres traídas, e sabia por experiência própria o quão ruim poderia ser uma simples mortal.

      Trair uma deusa era de longe a maior burrice que um homem poderia cometer. Até mesmo ele sabia disso.

- Você a ama, não é? – ela perguntou, e toda a tempestade ao seu redor simplesmente se calou. No silêncio absoluto, aquelas palavras entraram em seus ouvidos com uma clareza quase dolorosa. 

Mesmo sabendo a resposta, havia no olhar dela um desafio implícito que o fez hesitar no ultimo segundo.

      Sua mente ficou estranhamente nublada. Não conseguia lembrar-se como falar. Mal sentia sua língua.

      Mas pôde ver perfeitamente quando os olhos de Brooke encheram-se do azul cobalto, apenas por um instante, e o encararam em súplica.

- Você me ama, Jack?

      Seu coração martelou violentamente contra as costelas enquanto ele absorvia as palavras, ainda entorpecido. Mal conseguiu responder um sufocado “sim” quando os olhos dela desbotaram e um sorriso de escárnio desfigurou o belo rosto.

- Superestimei você, Jack Sparrow. Acredito que muitos o fizeram. Você é um tolo incorrigível, não diferente de ninguém. Além do mas, não é um mentiroso tão bom quanto dizem. Acabou de me responder com uma franqueza que raramente vi em meus muitos anos. – ela riu, por um breve momento, depois sua expressão tornou-se mortalmente séria. – Mas você nem sempre foi tão sincero, não é? Mentiu e despedaçou o coração de muitas mulheres. – ela disse a ultima parte praticamente gotejando desprezo. – Imagino que...

      Ela deu alguns passos graciosos para trás, como se dançasse, até que um de seus pés pendeu na beirada do penhasco. Jack resistiu ao impulso de puxá-la de volta, com medo de que algum movimento súbito a assustasse e ela caísse. Por isso aproximou-se devagar, pé ante pé, despercebido pela mulher, que havia virado o rosto e parecia sorrir com os olhos para o mar. Suas mãos tremiam incontrolavelmente.

- Imagino que... – ela continuou como se não houvesse parado. – Perder algo verdadeiro seja pior que a morte. – ela deu de ombros, distraída. – Nunca saberei.

      O pirata não conseguiu nem mesmo arquejar quando a ruiva jogou o corpo para trás, de olhos fechados.

- NÃO!

      Então ele estava lá, a sua frente, com os braços ao redor de seu corpo, pressionando o rosto dela contra seu peito. Ela ficou por quase um minuto completamente imóvel antes de começar a se debater com violência, como um animal enjaulado.

- Me solte. – sibilou, enfiando as unhas em seus braços até que o sangue começasse a brotar.

- Não. Prefiro morrer a te perder dessa forma. – disse ele, surpreendendo a si mesmo com outro rompante de sinceridade.

      Também pareceu surtir algum efeito nela, pois no mesmo instante ela se calou, deixando os braços caírem relaxados ao lado do corpo. O cabelo cor de fogo caía sobre seu rosto, o que impediu o pirata de ver sua expressão, mas ele quase teve esperança de salvá-la.

      Quase.

- Então, morra.

      Dito isso, ele sentiu seu coração parar. Talvez por ela o estar apertando entre os dedos, com a mão enfiada até o pulso em seu peito. Ouviu passos atrás de si, mas eles pareceram muito distantes.

      Sua visão afunilou-se, e ele buscou desesperadamente encontrar algo para se fixar – especialmente aquele par de pedras preciosas azuis. Mas não estavam ali. Seu coração deu mais uma batida fraca contra os dedos gélidos de Cassandra.

      O som dos passos ficou mais alto de repente, deixando Jack pelo menos um pouco alerta. Com as mãos trêmulas, agarrou o braço cravado em seu peito com toda a força que pôde, puxando-a para si.

- Hector. – arquejou, ouvindo o som inconfundível da perna de madeira do capitão.

      Ele tinha uma pequena noção das pessoas ao seu redor, mas mal conseguia distingui-las de meros borrões. Também ouvia muito pouco além das batidas débeis de seu próprio coração, mas de alguma forma as palavras de Barbossa foram claras:

- Jack, acabou. Solte-a.

      Apesar de tudo, tais palavras só fizeram com que ele espremesse ainda mais o braço de Brooke. Por um momento, pensou ter sentido os dedos dela afrouxarem, enquanto outra rachadura deslizava pela pele sob os dedos dele.

- Não posso. – disse ele num fiapo de voz, satisfeito ao ouvir a mulher grunhir, sem conseguir mover o braço. – Mas você tem razão. Acabou. Faça as honras.

      Seus ombros arriaram assim que ele terminou de falar: um sinal claro de derrota. Mas Barbossa o conhecia mais do que desejava. Sabia o que estava planejando e que aquele tipo de morte fora o mais dramático que ele conseguira pensar. Trincou os dentes, irritado.

- Não vou fazer isso, Jack. – disse, olhando para Brooke com uma expressão de puro pesar, depois voltando-se para ele. – Ainda não acabou para você. Solte-a.

- Estou deixando tudo para você, Hector. Uma boa história, uma espada flamejante... O Pearl. Não faça pouco caso do pirata mais gentil que você já conheceu. – ele insistiu, com a voz soando cada vez mais baixa. – Ande logo.

      O capitão mais velho remexeu-se, recusando-se a ceder. Em qualquer outra situação, Jack teria bufado e revirado os olhos, mas ele apenas deixou Barbossa com aquelas palavras e voltou sua atenção para a mulher em seus braços.

- Brooke, escute. Por favor, escute. Você é livre. Esse tipo de coisa não pode prendê-la. Nada pode prendê-la. Você é uma pirata. Por isso, volte para o navio. Volte para mim.

      Houve um breve lampejo de azul em seus olhos, o tempo para outra fraca batida cardíaca, mas sumiu tão rápido quanto surgiu. Pôde ouvir o selo fritando sua pele mais uma vez, e nesse pequeno momento de distração, ela tentou puxar o braço com força.

      Jack soltou um grito, assustando a todos ao seu redor. Inclusive Barbossa, que empunhou a espada com mais firmeza, mas hesitou em se aproximar.

- Você é o tipo de tesouro que pirata algum teria direito de possuir. A maioria nem mesmo seria digno de um caminho para procurá-la. Rara, inalcançável. Livre. Mais valiosa do que todo o ouro, mais bonita do que todas as sereias, mais incrível do que qualquer aventura em que eu pudesse me lançar. Você foi o sopro de vida que nenhum feitiço poderia trazer-me. – Jack disse num fôlego só, suas mãos tremendo enquanto ele tentava segurar o braço dela, em vão. O sangue escuro escorreu de seu peito, tingindo as roupas gastas. – Eu... – ele engasgou-se, sentindo as pernas começarem a ceder. - ... Hector!

- Barbossa, por favor!

      Jack obrigou-se a erguer o rosto ao ouvir este ultimo grito. Não havia nenhum timbre estranho, nenhuma reverberação. Era a voz dela. Clara como seus olhos, que cintilavam com as lágrimas que escorriam e pingavam, misturando-se com o sangue dele. Era sua Brooke.

      Foi com tais pensamentos que ele sentiu algo atravessar seus pulmões, privando-os de todo o ar. Seus olhos praticamente saltaram do rosto quando viu a lâmina irromper de seu peito e cravar-se no de Brooke, rasgando em seguida as costas dela.

      Os olhos dela pousaram-se na lâmina, e embora houvessem nublado novamente num branco suave, as lágrimas continuavam a saltar, contornando o sorriso mais triste que Jack já vira.

- Isso... – uma lágrima grossa e escura escorreu por seu rosto, pingando em cima da lâmina e cristalizando-se, embora ninguém houvesse percebido. – Eu esperei 400 anos para ouvir algo assim. Isso não é justo. Eu...

      Antes que pudesse completar, a lâmina negra que atravessava os dois explodiu em chamas, que entraram em seus olhos e boca como se esses fossem janelas. O mar voltou a se agitar quando ela gritou e se debateu, puxando o corpo para trás. Então, num instante, ela se libertou. Escapou da lâmina e fez soltarem-se alguns pedaços da beirada do penhasco ao cambalear para trás. Um pequeno sopro poderia tê-la derrubado, mas as chamas negras que a envolviam pareceram firmá-la, enquanto percorriam seu corpo rapidamente. A mulher nada podia fazer além de gritar, paralisada, erguida do chão pelo que pareceu ser um espectro negro. As rachaduras, tanto as superficiais como as profundas, foram desaparecendo aos poucos, e a ultima sumiu um segundo antes de toda a fumaça negra abandonar seu corpo, deixando ela simplesmente...

      Cair.

      Ela, porém, caiu como uma folha. Ou talvez fora o que pareceu, na mente entorpecida de Jack. Uma brisa suave empurrou o corpo dela para trás, fazendo os cabelos ruivos espalharem-se ao redor de seu rosto, revelando, naquele instante, a paz completa que o tomava.

      Sua queda pareceu durar pouco mais de três batidas cardíacas, e quando seu corpo atingiu a água, o som foi o de um beijo.

      Então Jack desabou, conformando-se com a ideia de morte. Suas costas atingiram o chão pesadamente, com a espada ainda cravada em seu peito, e através de sua visão turva ele viu as nuvens no céu desaparecerem, revelando aos poucos os raios de sol. Um deles iluminou perfeitamente seu rosto; infelizmente, esse estava, na melhor das hipóteses, com uma cor próxima do cal. 

      A gota azul na espada deslizou lentamente, densa como mel, até seu peito, e lá foi absorvida.

      Ele ouviu, quase irritado com a lentidão com que a inconsciência o atingia, o choro de alguém. Catherine, provavelmente, ou talvez Angélica. Não importava.

      Isso não é justo..., ele pensou ter ouvido a voz de Brooke sussurrar.

- Jack. – a voz grave de Barbossa o tirou de seus devaneios, e quando este o virou para tirar a espada, ele já não tinha mais forças para gritar. Apenas trincou os dentes e deixou uma única lágrima escapar pelo canto do olho, observando-a deslizar até pingar no chão.

- Barbossa... – Angélica murmurou, assombrada.

- Eu sei. – foi a resposta do homem, com sua típica rispidez.

      Catherine, porém, estava em completo silêncio. Não quer tagarelar agora, maldita?, Jack grunhiu mentalmente, enquanto uma mão pousava sua cabeça de volta no chão. Sua visão estava começando a clarear, assim como a sua mente, e ele quase conseguiu formular uma pergunta para aquilo.

      Seu peito ardia, assim como sua nuca, mas ele não conseguia se importar. Por que seu coração ainda estava batendo? Por que ele estava respirando com mais facilidade? Por que sua visão estava perfeitamente clara, mostrando-o aquele maldito céu azul? 

- Isso... O que vai acontecer? – perguntou Angélica, a única voz estridente em meio a dezenas de surros.

- Só Deus sabe. – disse Gibbs, quase tão pálido quanto Jack, fitando seu capitão com pavor.

      Do que diabos eles estavam falando? Jack virou o rosto, encostando a bochecha na pedra fria e úmida, deparando-se com Catherine. Ela estava ajoelhada no chão, com o rosto inexpressivo virado para o chão. Sussurrava furiosamente, com as mãos juntas apertadas com força. Uma camada fina de suor cobria seu rosto e seu peito. 

      Então a compreensão ao atingiu como um tapa na cara. As lágrimas dela. Ergueu o tronco num impulso e abriu a camisa. Não havia nenhum ferimento ali. Até mesmo os arranhões em seu braço haviam sumido.

      Ele se pôs de pé, cambaleante, e virou-se para sua tripulação. Todos os homens ali estavam pálidos e de olhos arregalados, como se tivessem vislumbrado o Diabo. Não os culpava. Ele se sentia pior.

      Virou-se para Barbossa, os olhos castanhos opacos como a madeira as antigas tabernas de Tortuga. Encolheu os ombros e deu um sorriso, que pareceu mais doentio naquela expressão do que qualquer coisa que o pirata já tivesse visto.

- Outra viagem desperdiçada, amigo. – encolheu ainda mais os ombros, como se pedisse desculpas. Então ergueu uma sobrancelha, e até mesmo aquele gesto não pareceu nada natural – Tortuga?

      Enfiou-se no meio deles sem esperar resposta, afastando-os do caminho com seus empurrões bêbados típicos. Ou quase. Os tripulantes do Pearl haviam se acostumado com o jeito imprevisível de seu capitão, mas aquilo pareceu estranho para qualquer um ali.

      Sem saber bem o que fazer, apenas o seguiram, falando baixinho entre si.

- Jack... – murmurou Angélica, olhando-o totalmente desolada. Mas desistiu quando o pirata simplesmente ergueu um dedo, uma ordem de silêncio, sem nem mesmo olhar para ela.

      A morena soltou um suspiro e olhou para o capitão mais velho, em busca de ajuda, mas até mesmo ele olhava para o mar com os olhos distraídos e quase marejados.

      Balançou a cabeça e ambos juntaram-se aos demais, não sem antes ouvirem Jack dizer, numa voz mortalmente baixa:

- Tem razão. Isso não é justo.

      O vento levou estas palavras e elas ecoaram pelo mar, como fizeram as de Cassandra. Os piratas tremeram visivelmente com o som, mas nada disseram.

       E atrás de todos, silenciosa como pedra, Catherine sorriu. 


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Notas finais do capítulo

E... Então? O que acharam? Por favor, sejam sinceras. Despedacem meu coração sem dó. Ficou mal escrito? Insatisfatório? Fugi do personagem? Ficou grande ou chato demais? Por favor, digam! ><
Como sempre, estou a disposição para qualquer opinião, elogio, sugestão, ameaça de morte, etc.
Vocês não podem imaginar a alegria com que terminei essa história. Espero que tenham gostado e se divertido como eu. E muito obrigada. Essa é a primeira história na minha vida que consegui terminar, nos 8 anos em que eu escrevo. Tudo graças a vocês. Muito obrigada mesmo ♥

E, como dito em alguns lindos comentários, que venha Piratas do Caribe e O Olho da Fênix!



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