Nômade. Essa era a definição que mais cabia para a vida que ela escolheu para si. Não que na verdade ela tivesse escolha, para começo de conversa. Apenas aconteceu das circunstâncias a levarem a percorrer esse caminho.

Um caminho difícil, por sinal.

No começo esse caminho era a dúvida. Cruel e fria. Como um golpe de lança no lado esquerdo do peito. O que escolher? O que optar? Algo para ela mesma? Algo para sua família?

A dúvida para a escolha era desumana.

Pensou, a princípio, em algo para si. Mas não sabia o que escolher, já que lhe faltava tudo. Bens materiais? Comida? Dinheiro? Não sabia. Não fazia ideia. Mas uma tarde, ao ver seu pai mais uma vez com semblante derrotado, percebeu que não poderia ser egoísta e escolher algo para si. Sua alegria era ver o pai sorrindo. Sua felicidade era saber que o pai alcançava, com sua voz e sabedoria, as pessoas a sua volta. Mesmo que naquele exato momento isso não acontecesse de fato.

Então o caminho da escolha foi percorrido, com sucesso. Optou por fazer de seu pai o Sacerdote que ele sempre desejou. Que os fieis pudessem escutar e compreender as palavras de seu pai. Que essas palavras não fossem jogadas mais ao vento do esquecimento.

Logo, não só a vida de seu pai, como a sua própria vida e de sua família havia mudado completamente. A garota ruiva e sua irmã agora podiam desfrutar de paz e do essencial a uma vida em família digna. Isso é claro, durante o dia. À noite, a mais velha das irmãs saia para cumprir sua promessa.

Podem chamar de troca equivalente, ou preço do desejo, tanto faz. O fato é que em troca desse milagre na vida de seu pai, a garota devia cumprir um papel maior. Ela havia se tornado uma caçadora de bruxas.

Durante as noites ela deixava para trás seu lar e saia para caçar. E nessa hora ela não era mais Kyouko Sakura. Ela era uma Mahou Shoujo.

Mas o preço pela escolha do caminho... ah, o preço. Ocultar isso de seu pai era difícil demais. Como justificar tantas e tantas saídas durante a noite? Um dia, ele descobriu. E o preço da descoberta foi pago com ódio e sangue.

O Sacerdote, que tanto pregou o amor, agora banhava suas mãos com o sangue de sua filha mais nova. O Sacerdote, que pregava uma nova forma das pessoas viverem, agora ateava fogo no palco onde pedia cautela e misericórdia. O preço do desejo, do milagre, havia se tornado um fardo pesado demais para se carregar.

Agora não havia mais milagre. O desejo realizado fora cumprido e destruído. A motivação para lutar havia desejado queimá-la, como os religiosos de outros tempos queimavam na fogueira da fé as bruxas.

E aquilo que nasceu de seu amor pelo seu pai, de seu desejo pelo sucesso dele, de seu desejo elo outro e não para si... se transformou em rancor e mágoa. A atitude que a ruiva tinha por altruísta agora a fazia crer que havia nascido do seu egoísmo. Ou do seu desconhecimento dos desejos de seu pai.

“Talvez tudo tivesse sido diferente se eu simplesmente tivesse dito Não, quando me foi oferecido tal milagre.

Mas desejar que as coisas fossem diferentes é assim, tão ruim? Não queria a glória, queria apenas que ele fosse ouvido.. ao menos que as pessoas o escutassem...”

Mas desejar tais coisas para os outros... isso não a levou a nenhum lugar a não ser trilhar o caminho da solidão e do abandono. Deixar de pensar nos outros, para focar apenas em si. Se antes não queria parecer egoísta, agora era esse sentimento que fazia seu sangue correr nas veias.

Não lutava mais pelo bem, pelo amor e pela justiça. Tudo havia se tornado simples em seu caminho. Lutava apenas para continuar a viver. Se precisasse roubar para sobreviver, roubaria. Se precisasse deixar de lutar com Familiares para que deles as Bruxas surgissem, deixaria. Mesmo que no percurso dessa transmutação, pessoas perdessem suas vidas. Pois agora ela não lutava pelos outros, lutava por ela. E só.

E seu caminho, com isso, havia se tornado tortuoso. É difícil não ter com quem contar, nem uma casa para voltar no início da manhã. Seguir as leis da natureza, como vinha fazendo, era naturalmente perturbador, mas ela aprendeu a não se importar com isso. Ela precisava não se importar.

“Mas por mais que o sofrimento seja grande, a recompensa no final é maior.¹

Ao menos meu pai, em algum momento, teve sabedoria em suas palavras. Eu tive a minha recompensa por um breve momento. Não me arrependo... não mais. Por um instante, admito, me arrependi. Mas não sinto mais isso. Não era o correto. Afinal, meu desejo foi atendido, não foi?

Agora que eu chego ao fim da minha jornada, lutando contra aquela que me fez ver o quanto eu vivi enganada... agora eu entendo. Eu deveria agradecer por ela ter me aberto os olhos? Mesmo ela não estando mais ali? Mesmo agora ela sendo uma bruxa?

Sayaka, se tivéssemos tido mais tempo, talvez não nos encontrássemos nessa situação. Sinto por você. Sinto que seu desejo tenha se convertido em sofrimento e seus ideais tenham se perdido em meio a sua dor.

Agora que enfrento Oktavia e vejo o seu coração, percebo que errei quando pensei ter lhe oferecido uma solução. Peço que aceite como minhas sinceras desculpas o meu sacrifício...”