Kaleidoscope - Um Mundo só Seu escrita por Blodeu-sama


Capítulo 8
Cap. VIII – Aproximando-se de Ganjitsu


Notas iniciais do capítulo

GOMENASAI MINNASAN! Eu sei que esse capítulo demorou muito, eu sei! Mas é que minha vida está uma bagunça e... deixa pra lá, não vou ficar aqui reclamando que nem velha pros meus poucos e queridos leitores que eu amo tanto. Novamente perdoem-me pelos erros que deixei escapar na revisão. Ah sim, a palavra Ganjitsu, do título do capítulo, se refere ao primeiro dia do ano, momento de acerto de contas com a vida. Hum...

Musicas: Movin On – needtobreath, e Any Other World – Mika, para a primeira e segunda partes. E Merry Christimas Mr. Lawlence - Kotaro Oshio, para a parte do templo. Todas podem ser baixadas no link do meu profile.



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- Feliz Natal, Baachan!!!

Uruha entrou no pequeno apartamento sem esperar convite, abraçando forte – e quase erguendo do chão - uma velhinha com metade de seu tamanho, que vestia uma roupa branca um pouco larga para ela e parecia pálida. Uruha, por outro lado, estava usando um sobretudo negro pesado, sujo de neve e óculos escuros apesar do tempo carregado que fazia lá fora. Soltando uma exclamação de surpresa e falso desagrado, a senhora minúscula bateu no peito do rapaz com o punho fechado e pouca força, antes de beijá-lo nas duas bochechas.

- Hee, Uruha-kun. Achei que não apareceria mais pra dizer olá a essa velha Baachan aqui.

- Não seja boba, Baachan. Aqui – e tirou da bolsa com alça trespassada no tórax um presente fino embrulhado em papel de seda vermelho e verde, um pouco amassado, entregando-o a senhora, enquanto fechava a porta atrás de si. – Espero que goste. Foi difícil escolher.

- Não me diga que esses óculos escuros são porque você passou a noite escolhendo meu presente, né Uruha-kun...

Baachan piscou um olho e se afastou, com o presente seguro em ambas as mãos, deixando o loiro levemente corado. Como é que ela sabia...?! Não, ela só estava adivinhando. E aquela senhora de ar tão inocente sabia muito bem ‘adivinhar’ quando se tratava de olhos avermelhados e noitadas em claro.

Kai saiu da cozinha, limpando as mãos em seu avental azul e sorrindo aquele sorriso enorme e contagiante. Logo atrás dele, segurando uma travessa fumegante de carne ensopada, estava Akemi-san, vestida num elegante terninho vermelho escuro e com os cabelos negros presos de maneira quase casual no topo da cabeça. Também estava sorrindo, mas olhou Uruha com certo desagrado.

- Eh, Uruha, finalmente! Achei que teríamos que comer toda a comida sem sua ajuda – disse Kai, estendendo a toalha sobre a mesa de jantar, que também ficava na pequena sala.

- Vai esperando! – resmungou o loiro, parado com as mãos no bolso no meio da sala. Por mais que já fosse quase parte da família Yutaka, era meio estranho aparecer lá naquele dia em especifico. – Feliz Natal, Akemi-san.

- Que bom que veio – disse a mulher, um pouco friamente, mas logo que depositou a travessa na mesa, adiantou-se e abraçou o rapaz. – Feliz natal, Uruha-kun.

Quanto ao rapaz moreno, este apenas se limitou a dar palmadinhas nas costas do amigo, sorrindo e intimando-o a ajudá-lo a por a mesa. Antes, porém, Uruha tirou mais dois presentes da bolsa e entregou um a mulher e outro a Kai, que rapidamente rasgou o seu embrulho pequeno e segurou entre os dedos um anel de ônix largo tão negro quanto os olhos dele.

“...ou os olhos do Nao-san”, pensou, antes que pudesse pressentir o pensamento. Então enfiou o anel no dedo médio anelar antes que sentisse vontade de analisar aquilo.

Definitivamente, andava sendo afetado pelos comentários estúpidos de certo amigo encrenqueiro...

- Uau, é lindo, valeu, Uruha – disse, num tom de voz divertido, que Uruha leu como “Onde você o arrumou?”

“O cara de quem eu roubei também parecia achar isso”, pensou o loiro, sorrindo inocentemente. Depois, talvez, contasse a Kai sobre a fonte dos presentes. Akemi foi mais cuidadosa, descolando a fita que prendia seu presente e olhando dentro do pacote antes de dar um meio sorriso, puxando dele uma agenda novinha em folha, decorada com motivos hippies. Havia partes de letras de músicas em cada página, músicas americanas do Woodstock.

- Muito obrigado, Uruha-kun. É bem interessante.

Uruha notou que era a primeira vez desde que fora preso que ela lhe sorria verdadeiramente. Akemi-san era muito correta, muito apreciadora do trabalho honesto e embora gostasse mesmo dele, o loiro sabia que era difícil para ela aceitar seu... “estilo de vida”. Agora, sentia que estava perdoado completamente – até quem enfim! -, mas que ela, pelos deuses, não soubesse como ele havia conseguido aquela agenda.

- Akemi-san sempre fala que gostaria de ter ido aos Estados Unidos nos anos 60, então achei que iria gostar disso.

Ela nem parece tão velha, pensou ele, olhando-a direito. Era pequena também, mas não tanto quanto a mãe. Baachan era minúscula e magrinha, e Akemi-san tinha talvez uns dois ou três quilos a mais em sua silhueta e uma única ruguinha lhe marcando a testa, mas tirando isso era Kai escrito e escarrado. Mesmos olhos, mesmo cabelo, mesmo sorriso. “Kai com peitos” como costumava dizer ao amigo na escola, antes de começar a apanhar de socos de um moreno injuriado.

Foi quando Baachan voltou de seu quarto com o seu presente ainda fechado nas mãos e outro embrulhado com esmero em papel de seda preto, que Uruha notou como ela andava lentamente.

Cuidadosamente.

Estava usando chinelos confortáveis, mas parecia estar pisando em ovos quando atravessou a pequenina sala de estar e jantar e entregou ao loiro seu presente, respondendo aos olhares indagadores de Kai e Akemi.

- O quê? Vocês acham que eu não tenho minhas economias?!

Uruha sentiu-se um pouco culpado enquanto abria seu presente. Baachan não deveria ter gasto com ele, ele até mesmo dissera a Kai que se ganhasse alguma coisa deles iria embora sem dizer nem tchau. Mas sorriu ao ver a capa de um CD com os quinze melhores solos de guitarra da década do Japão. E vinha com uma palheta! Tinha namorado esse CD por um tempo em uma loja, mas não comprara por medo de gastar seu pouco dinheiro disponível em coisas fúteis.

Baachan era a melhor vó do mundo! E nem mesmo era sua avó de verdade!

- Obrigado, Baachan! – falou, desta vez realmente erguendo a velhinha do chão ao abraçá-la. – Abra seu presente também.

Depois de reclamar e dizer que já era velha de mais pra ficar sendo erguida como uma garotinha, Baachan sentou-se no sofá, um pouco ofegante e abriu seu presente. Era uma pequena caixa aveludada, quadrada e fina, de joalheria. Seus dedos enrugados e macios abriram a tampa devagar e Uruha viu seus pequenos olhinhos negros como besouros se alargarem de surpresa. Com a mão levemente trêmula, Baachan ergueu o colar a altura dos olhos e este faiscou a luz esbranquiçada que entrava pela janela.

Uma corrente branca delicadamente entrelaçada, com um pingente em forma de borboleta, em cujas asas raiavam matizes de opala.

- Isso é ouro branco, Uruha-kun? – perguntou a velhinha, com voz surpresa e levemente irônica, sem desviar os olhos do objeto.

- Segundo a vendedora, é sim. Mas eu não ponho a mão no fogo por essas pessoas de casas de penhores.

Ele de fato comprara o colar em uma casa de penhores, por um preço tão caro quanto se poderia esperar de uma jóia como aquela. Passara por aquele colar em um domingo a tarde, quando a loja estava fechada e ao bater os olhos no objeto sabia que ele fora feito para sua Baachan. Belo, delicado, porém emanando certa força, um brilho especial. Tivera que ficar “trabalhando” por mais de duas horas em varias estações de metrô para conseguir dinheiro o bastante para comprá-lo - sob o risco constante de estar sendo espiado por Hiroto-san. Mas agora ao ver a velhinha pálida, magra demais para suas roupas antigas, com os dedos e a parte de baixo dos olhos levemente arroxeadas por causa da doença no coração, Uruha sabia que teria feito muito mais para poder dá-lo a ela.

Baachan merecia pelo menos um presente brilhante pra alegrar seus dias. O resto deles.

Kai sentou-se ao lado da avó e se ofereceu para colocar o presente no pescoço dela. A senhora parecia radiante como uma adolescente apaixonada. Beijou as bochechas de Uruha novamente e pôs-se a falar com ele sobre o significado das borboletas e das jóias que já ganhara de rapazes bonitos quando tinha a idade dele.

- Nunca imaginei que iria ganhar a mais bonita delas com quase cem anos de idade! – ela disse, rindo. Então Kai, fazendo um falso bico, pôs as mãos na cintura.

- Heee, Baachan! Você se apaixonou pelo Uruha e agora nem liga mais para o almoço que eu fiz com tanto carinho pra você!

Uruha, rindo de se dobrar, deu um tapa na nuca do amigo enquanto ajudava a velhinha a se levantar e a sentar a mesa para o almoço. Foi quando já estávamos todos se servindo que Uruha resolveu parar de bancar o sentimentaloide e alfinetar Kai um pouquinho.

- Hey, Kai, você não convidou o Nao-san. Por quê?

O moreno engasgou com a taça de vinho e tossiu por uns cinco minutos – com Akemi-san dando-lhe tapinhas nas costas – antes de erguer o rosto avermelhado. Que as mulheres da mesa atribuíram a falta de oxigênio repentina, mas Uruha sabia ter outra causa. Ah... aquele jogo ficava mais e mais interessante a cada dia...

- Nós não somos tão íntimos, Uruha.

- Eu soube que ele sentou no meu lugar de honra na lanchonete.

- O balcão não é seu lugar de honra, e sim, convidei ele pra almoçar alguns dias atrás. Algum problema? – perguntou, sorrindo amarelo, os olhos faiscando em direção ao amigo.

- ...Não, nenhum – Uruha sorriu apenas com um canto dos lábios rosados.

- Ah, posso perguntar por que você não quer tirar esses óculos da cara hoje? – perguntou o moreno, casualmente.

O meio sorriso pareceu se transferir magicamente para os lábios de Kai.

- Não dormi bem. Os vizinhos ficaram ouvindo música alta.

- Sei... você devia procurar um advogado para cuidar desse seu problema com vizinhos, Uruha.

O loiro cerrou os dentes e sorriu amarelo. O pior é que nem estivera com Tora! Na verdade, ele nem se lembrava do nome daquele rapaz com quem estivera.

- Quem é Nao-san? – perguntou Baachan, olhando de um para outro.

- O novo amigo do Kai – disse Uruha, voltando a sorrir largo e olhando diretamente para o moreno. Akemi-san também olhou de um para outro e ergueu uma sobrancelha.

- Que tipo de amigo?

- Do tipo que tem um bom emprego e é bem mais agradável que ele – respondeu o cozinheiro, apontando seus hashis para o loiro acusadoramente. – Uruha está com ciúmes.

- Com ciúmes do cara-de-filhote?! Vai esperando Kai – o loiro engoliu um pedaço grande de carne ensopada quase sem mastigar. – E não sei o que tem de bom em ser babá de retardado.

- Ah, do seu novo “emprego” – Baachan fez questão de ironizar bastante a palavra emprego. – O que me lembra de perguntar, onde conseguiu dinheiro pra me comprar esse colar, Uruha-kun?

- Papai liberou – o loiro respondeu na lata, mas pôde ver Kai erguendo uma sobrancelha da mesma exata maneira que Akemi-san havia feito alguns segundos atrás.

- E, Uruha-kun, são seja indelicado. Ele provavelmente não gosta de ser chamado de babá de retardados – disse a mulher mais jovem. – Aposto que seus pais não iriam gostar de ouvir você falando assim.

- Ele é muito gentil, mamãe. E é enfermeiro, não babá – Disse Kai. – E você não acreditaria em quanto dinheiro a família do cara pra quem ele trabalha tem! É como... a cidade inteira! É tão irônico que Ruki-san esteja tão voltado pra si mesmo que é incapaz de perceber isso...

- Eu acho que Ruki não é tão idiota – murmurou Uruha, mais para si mesmo do que para os outros. – Quero dizer... ele tem toda aquela aparência de maluco e tal, mas tem alguma coisa errada nessa coisa toda de autismo. Parece que só isso não é o bastante pra explicar porque ele é daquele jeito. Pelo menos, me parece que alguém devia estar cuidando dele com um pouco mais de cuidado.

A mesa ficou em silêncio e Uruha ergueu os olhos. Estavam todos olhando para ele de maneira estranha.

- O quê?!

- ...É que... você fala sobre o Ruki-san como se se importasse com ele. E até chamou ele de Ruki... – disse Kai, baixinho. – Demorou mais de um ano pra você parar de me chamar de Yutaka.

Uruha fechou a cara.

- Ah, qual é! Não fique me analisando! Eu não me importo com o doidinho. Só me interessei pelo caso médico dele.

- Uhum.... – murmurou Baachan. Havia um sorrisinho indecente em seu rosto enrugado que não agradou em nada ao loiro.

Foi só depois de finalmente se cansar de fugir de toda a família Yutaka e seu complexo de psicanalistas – e de repetir o prato duas vezes - que Uruha afastou sua cadeira e perguntou a Kai se ele ainda mantinha sua guitarra afinada.

- Não toco naquilo desde que saí da escola, você sabe – disse Kai, mas se levantou para buscá-la.

Uruha novamente, e a contra gosto, notou o quão cansada Baachan parecia ficar com apenas um almoço. Ela continuava espirituosa e divertida, a velha Baachan de sempre. Mas tão... frágil! Como uma borboleta. Talvez fosse por isso que achou o colar tão perfeito para dar a ela. Droga! Odiava sequer pensar na idéia de ver Baachan deixando-os para trás. Ela merecia ter paz naqueles últimos anos em que já não precisava trabalhar tanto...

O loiro pensou em, naquele fim de ano, ir a um santuário de ano novo pedir para que ela melhorasse. Não que fosse muito religioso, mas... bem, qualquer ajuda é ajuda. Kai voltou com sua velha guitarra, na verdade uma das velhas guitarras de Uruha, que a dera de presente ao amigo ainda na época do High School. Quando desistira da idéia de virar um grande guitarrista, mais exatamente.

Ao pegá-la e testar as cordas, o loiro se lembrou desse seu sonho bobo da época. E muita gente dizia que ele tinha talento! Ele no fundo sabia que tinha mesmo. Mas, em algum ponto, Uruha percebera o quão idealista estava sendo e enterrara aquele sonho impossível em meio a bagunça louca da sua vida. Mas isso não o impedia de devanear vez por outra. As vezes...quando não tinha ninguém em casa, ele fechava os olhos e imaginava que estava num palco, cercado por multidões histéricas, deslizando rápido os dedos pelas cordas de aço, ouvindo as ovações, as palmas...

- O que você vai tocar?

Uruha sorriu para Kai.

- Pedidos?

Baachan pediu alguma coisa dos Rolling Stones, fazendo Akemi-san pedir a mãe que, por favor, se comportasse como uma senhora de noventa anos descente.

Passaram o resto da tarde rindo e ouvindo Uruha fazer o que ele fazia melhor.

-

Em algum outro lugar da cidade, um jovenzinho de cabelos cor de mel olhava a neve cair, enquanto dedilhava as teclas do piano distraidamente. Estava se sentindo deprimido, embora não soubesse como expressar isso. Saga-sama não se dignara a comparecer na mansão no dia de Natal. Não que Ruki ligasse muito para Natal, mas seria mais aceitável se toda a família estivesse ali. Nao-san ficara bravo, Ruki percebera. Mas Nao-san estava sempre bravo com Saga-sama (o que não era nem um pouco bom, porque Saga-sama era mais inteligente que todo mundo e mais severo também). E estava sempre tentando protegê-lo. Protegê-lo de ficar olhando a janela no dia de Natal, olhando a neve cair e dedilhando músicas tristes. Como se Nao-san pudesse protegê-lo dele mesmo.

“É para me proteger que Saga-sama o paga, certo?” perguntou mentalmente, para ninguém em específico, tentando se conformar com aquilo.

Ruki desviou os olhos da janela para passá-los desinteressado pelo seu quarto. De alguma maneira, sabia que poderiam viver duas famílias ali, sem reclamar do espaço. Ou ao menos subjetivamente falando. Era mesmo um quarto muito grande, mas ele já se acostumara a isso, tudo na mansão era grande. Seu quarto não era diferente nisso.

Pelo menos nisso.

Nao-san rira a primeira vez que vira o piano no quarto dele. Ficava na parte mais alta, junto às janelas grandes, ao tapete macio e as poltronas fofas dispostas simetricamente. Descendo um degrau no chão de madeira, ficava a cama de casal, larga, as portas para o closet e para o banheiro, e todos aqueles brinquedos. Havia muitos brinquedos ali.

Ou, como dizia Nao-san, quebra-cabeças em vários formatos.

Havia todo tipo de estrelas e lanternas de papel colorido penduradas no teto. Montadas parte por parte de modo que fizessem prismas translúcidos por onde a luz branca passava vagamente. Nas paredes, desenhos a grafite contrastavam com quadros feitos com seus quebra-cabeças. O maior deles, logo acima da cama, era um quebra-cabeças de Mozart. Wolfgang Amadeus Mozart, ao piano.

No chão, ao redor da cama de dossel larga e escondida por uma cortina vermelha, tão simetricamente quanto possível, os brinquedos estavam dispostos por ordem de dificuldade. Muitos cubos quadrados coloridos empilhados em um canto. Cubos Rubik, lembrou-se, esse era o nome. Havia vários deles com dez, doze, vinte e seis faces. Todos com cada face de uma cor específica, completamente montados. Um dos cantos do quarto era um mini-escritório e ateliê, com uma mesa de desenho reclinável e toda a sorte de coisas que Ruki poderia querer para desenhar, pintar, estudar.

Mas ele gostava mais do piano.

Voltou a olhar a neve, se perguntando se Uruha-san estava comemorando o Natal com sua família. Ele havia falado uma vez sobre sua família, também morava com ela assim como ele. Ruki considerava Saga-sama sua família, pois Saga-sama lhe dizia que era assim. E Nao-san também, porque ele estava sempre ali. Ruki se lembrava de seus pais também, muito nitidamente, mas era melhor não se lembrar deles. Ou da época em que eles estavam vivos. O deixava mais deprimido. Mais angustiado.

Mas Uruha-san, ele tinha uma família grande. Pai e mãe, e duas irmãs e dois sobrinhos. E ele tinha uma avó, que não era sua avó de verdade. Era avó daquele rapaz moreno que gostava de conversar com Nao-san. Kai. E, o mais estranho, é que Uruha-san parecia não gostar muito de ter uma família. Ruki poderia fazer tudo para ter uma família daquelas. Normal.

Então Ruki fechou os olhos com força e socou as teclas. Não devia estar pensando em Uruha! Não devia! Se Saga-sama descobrisse... Ele socou as teclas de novo, com mais força. Não, não, não! Melhor tomar cuidado com o que se pensa. Será que deveria pedir a um sacerdote para, talvez, tirar esses pensamentos de sua cabeça?

Nao entrou um pouco correndo, um pouco andando no quarto e viu Ruki sentado ao piano, olhando a janela inexpressivamente, porem balançando levemente o corpo. “O que será que há com ele...?” se perguntou pela milésima vez naquele mês. Parecia que Ruki andava cada vez mais nervoso, ansioso e triste. Mais do que o normal. E agora mesmo jurara ouvir o baixinho esmurrando o piano. Não era normal, mesmo se tratando dele.

- Ruki-san? Tudo bem?

- ...Nao-san, podemos ir a um santuário de ano novo?

- ...Claro. Faz tempo que você não vai, não é mesmo?

- É.

- Podemos ir na noite de ano novo, fazer nossos pedidos.

- É.

- Algum motivo especial pra querer ir?

- ... Um. Mas é segredo.

- Hum, sei... segredo até de mim?

- Eu não quero dizer nesta casa.

Nao franziu as sobrancelhas outra vez. Ele estava esquisito.

- Okay, pode me contar quando quiser, se quiser.

- É.

O enfermeiro ainda esperou um pouco, fingindo arrumar alguns cubos, esperando que ele voltasse a se manifestar, mas Ruki parecia perdido nos flocos de neve. Naquele mundo só dele onde só uma coisa importava e todo o resto sumia. As vezes, era quase invejável. Suspirou, sorrindo levemente, apoiando o rosto em uma mão e sorrindo tristemente.

Queria poder fazer o mundo desaparecer num floco de neve também.

-

Era noite de ano novo e Uruha, todo enrolado em suas roupas de inverno, enfrentava a neve à pé, para ir até aquele santuário. Devia estar cheio e um pouco mais quente lá e era isso que o motivava a seguir em frente naquele gelo infernal, porque se não fosse por Baachan, não teria saído da cama.

Bem, se não fosse por Baachan e toda a barulheira insuportável que sua família estava fazendo dentro de casa, tornando-a um lugar intolerável de se ficar. Seus sobrinhos pareciam competir para ver qual conseguia ser mais barulhento. E o mais novo tinha apenas seis meses! E Tieme...bem, Tieme poderia muito bem ser o próprio demônio da chatice, que Uruha nem iria se surpreender. Hayahi e aquele marido insípido dela lhe davam ânsia de vomito. E seu pai voltara a falar sobre faculdade.

O templo estava de fato cheio, quando finalmente chegou a ele, mas não lotado. Havia pessoas, famílias rindo, acendendo fogos, crianças balançando aquelas velas estrela, cheiro de incenso e ar de felicidade. Sorrindo vagamente, Uruha deixou-se aproximar das pessoas e quando teve a chance, chegou perto da parede de pedidos para observar todos aqueles papeis pendurados nela; e pensou que os deuses certamente tinham trabalho aquela época do ano. Cuidadosamente, misturou seu pedido aos outros. Era simples, um pouco informal. “Que Baachan encontre a paz que merece”.

Então foi se juntar a pequena multidão para a oferenda e a primeira peregrinação.

E com o passar das horas, as pessoas simplesmente começaram a ir embora. Os fogos haviam queimado todos, as crianças já não tinham mais estrelinhas pra brincar, as senhoras de quimono reclamavam do frio e os homens queriam comer. Os sacerdotes meditavam incansavelmente diante das estátuas, junto com uns poucos que haviam ficado para rezar. Uruha, este andava entre as lanternas internas de bronze, meio inebriado com o cheiro pungente de incenso, meio tomado por uma raríssima sensação de espiritualidade, com a qual ele lutava vagamente em meio a seus pensamentos.

Esses lugares o deixavam tonto.

Balançando a cabeça levemente, como se espantasse um inseto, o loiro saiu do lugar abafado para a neve brilhante da noite lá fora. Havia um banco de pedra ali perto, onde podia se sentar e quem sabe, fumar um cigarro ou dois antes que um velhinho vestido com aquela parafernália shinto o enxotasse dali. Devia ser próximo das quatro da manhã e a lua fazia as camadas pisadas de neve refletirem um brilho meio estranho, azulado. Uruha sentiu um certo alívio ao acender seu isqueiro, vendo a luz alaranjada emprestar um pouco de realismo a paisagem lúdica. Acendeu lentamente um cigarro preso entre os lábios rosados de frio e puxou para junto ao corpo o mesmo sobretudo negro que usara no Natal. Kai ligara a dois dias dizendo com voz animada que Baachan saíra naquele dia com sua velha bolsa de palha...

- Uhum...

Uruha virou o rosto repentinamente para a silhueta que se delineava contra o céu. Muitos casacos, um cachecol grosso de lã, um gorro, um reflexo azul esverdeado nos olhos.

- Ruki-san?!

O baixinho fez um sim com a cabeça e, timidamente, sentou-se ao lado do outro. Uruha o encarou por vários minutos, mas Ruki fixara o olhar em algum ponto da neve. Depois de vários minutos em silêncio, Uruha começou a se sentir desconfortável.

- Hum... cigarros?

Ruki balançou a cabeça em negativa.

- Então... chegou meio tarde, não é?

- E-eu não gosto de muita gente – murmurou o menor, numa voz quase inaudível, parecendo travar uma verdadeira luta interna para conseguir pronunciar aquelas poucas palavras em frente ao outro. E, na verdade, tivera que ensaiar em sua cabeça por meia hora, antes de se aproximar do outro naquele banco de pedra. Ficara observando-o e pensando no que dizer por meia hora inteira, escondido entre as pilastras cor de carmim.

Uruha abriu a boca e deixou que o cigarro caísse na neve, se apagando.

- Deuses! Você fala! – disse num tom divertido e Ruki deixou uma risadinha escapar, muito baixo.

- Uau... mesmo, esses santuários fazem coisas incríveis acontecerem – murmurou o loiro, caindo novamente em silêncio por mais uns cinco minutos inteiros. Antes de pigarrear levemente.

- E cadê sua babá? Quero dizer, não que precise de uma babá, mas é o que ele parece, aquele Nao-san.

- Está com a família – sussurrou o menor, pensando se Nao-san tinha mesmo cara de babá e por isso todo mundo o tratava como um bebê. Faria sentido.

- E você veio sozinho?

O menor apontou para um carro ultra moderno e negro parado do outro lado da praça que havia na frente do santuário. Era tão rebaixado e cheio de curvas que a um primeiro olhar Uruha achou que eram um monte de pedras vulcânicas amontoadas perto da calçada.

- ...Aquele carro não é seu...

- Saga-sama – murmurou Ruki e Uruha teve a impressão de que ele estremecera. De frio talvez.

- Então... você fala! Nunca falou comigo lá no Circe.

O menor parecia profundamente corado. Uruha sorriu brevemente.

- Relaxa, eu não vou te acusar nem nada assim. Na verdade, eu até acho que você é muito esperto para aquele lugar.

- P-pessoas... me deixam nervoso... – disse, sem olhar para o maior.

Era incrível! Uruha-san estar logo ali! Justo quando fora pedir para se esquecer dele! O que será que isso significava? Ruki se lembrava que sua mãe dizia algo sobre coincidências em dias de ano novo. Algo sobre prestar atenção aos sinais. E aquilo parecia um sinal. Não que Ruki entendesse bem essa coisa toda subjetiva de sinais e superstições, isso já era de mais para ele e simplesmente não se atrevia a ir além do que sabia que sua mente era capaz. Mas quanto a Uruha-san... Ele nunca estivera ali antes. Pelo menos Ruki não se lembrava de tê-lo visto ali em nenhum dos outros anos anteriores e Ruki sabia que tinha uma memória muito boa mesmo. E ainda bem que Saga-sama estava muito longe e provavelmente falando no celular e não poderia saber que aquele era Uruha-san. Porque ele não podia mesmo saber, ele dissera que Uruha-san não era um bom amigo para se ter. Não era uma boa pessoa.

Mas Ruki discordava disso. Uruha-san era todo diferente. Nunca fazia nada com ordem, sempre falava o que vinha a cabeça e Ruki ouvira de Shou-san que ele estava trabalhando no Circe porque apontara uma arma descarregada para um homem que tinha uma arma duas vezes maior e carregada! Um assalto ou algo assim e parece que tinha dado certo, até a parte em que a polícia o pegou.

Okay, talvez ele fosse um pouco anormal. Mas Ruki sentia-se a vontade perto dele. E Ruki geralmente não se sentia a vontade perto de ninguém.

- ...Pessoas te deixam nervoso. Bom, isso não deveria ser um problema. Quando pessoas me deixam nervoso, eu meto um soco bem no meio das fuças delas.

Ruki abriu muito os olhos e os voltou para Uruha, surpreso, voltando novamente a olhar para o chão, duas vezes mais corado, quando viu que Uruha estava rindo e que aquilo deveria ser uma piada.

- Okay, okay, tudo bem.... você não gosta de falar. Eu entendi. Devia falar mais... você tem uma voz bonita.... mas vamos continuar com o esquema de sempre então. Eu falo demais e você finge que não está me ouvindo. Confortável assim?

- ...É. – murmurou quase inaudível. Tinha uma voz bonita?! Ninguém nunca lhe dissera isso antes.

- Bom, eu até gosto disso sabe. Porque em geral as pessoas sempre me olham como o cara mau, louco... sem ofensas, e que não sabe o que fazer da vida. E você... bom, você não dá a mínima, não é? Eu posso... acho que posso baixar as defesas um pouco, porque você não fala com ninguém. Pelo menos acho que não fala com ninguém. A respeito das besteiras que conversamos, quero dizer – Uruha pensou um pouco, procurando o maço de cigarros para acender outro. – Eu te invejo. Você faz o que quer não só porque tem dinheiro, mas porque ninguém espera que você seja outra coisa...

- Esperam sim –murmurou Ruki, antes de conseguir se frear. - ...Q-quero diz-zer... é... mais ou menos... é... eu n-não sou normal.... eu tento ser, mas...

- Ninguém é normal. Não existe esse negócio de normal. E eu disse, você parece muito inteligente para aquele lugar.

Caíram em silêncio. Uruha sentia-se incomodado. E estranhamente em paz. Era o primeiro dia do ano, Ruki falara com ele pela primeira vez... aquele incenso todo estava mexendo com seu cérebro. Era mais ou menos como estar drogado. Uruha sabia como era a sensação, embora não a experimentasse desde o high school. Mas aquilo... era diferente, ele não estava de fato drogado. Só com essa sensação estranha de estar apreensivo e relaxado ao mesmo tempo. De estar ansioso porque o doidinho falara com ele e feliz porque o doidinho falara com ele. E em paz porque o doidinho falara com ele. Era mais ou menos como voltar à escola e lutar pela amizade de alguém importante.

Ruki era importante? Desde quando?! Não, ele só era vagamente interessante. E um tremendo ouvinte, não podia negar.

Uruha voltou a tragar, enchendo seu pulmão com a familiar nicotina e Ruki tossiu.

- Desculpe.

O loiro mais velho jogou o segundo cigarro na neve e esfregou as mãos na frente do corpo. Frrrio. Porque apagara o cigarro?

- Hum.... veio fazer resoluções de ano novo?

O menor balançou positivamente a cabeça.

- Quais?

- ... – Ruki engoliu em seco. Deuses, será que ele desconfiaria que viera pedir para não pensar mais nele?!

- Ah, certo, não vamos falar sobre isso. Bem, eu fiz um pedido, pela Baachan. Sabe, a vó do Kai. Ela não anda bem de saúde. Geralmente não venho em santuários, me deixam zonzo. Com a sensação de que as coisas vão virar fumaça. Sabe?

Ruki novamente balançou a cabeça concordando.

- Bem, a Baachan... ela é uma velhinha legal. Você iria gostar dela. Ela curte rock, conta histórias inacreditáveis de quando era jovem e todas essas coisas. Não me lembro muito bem da minha avó, mas acho que ela era do tipo que vivia reclamando do tempo, da política, dos jovens de hoje em dia. Mas Baachan... ela nunca reclama. De nada. Parece que está sempre pronta pra começar outra vez. Ou pelo menos estava, antes da doença piorar – Uruha mordeu o lábio, os olhos cor de mel haviam se deslocado para o mesmo ponto na neve que Ruki observava antes e este agora olhava de esguelha para o rosto do maior. - ...Tenho medo que ela se vá a qualquer momento. Como uma borboleta. É... como um desses poetas por aí disse. As borboletas morrem quando o tempo fica frio. E está tão frio, Ruki... se ela se for agora, eu vou sentir saudades imensas dela. Ela é como minha parte normal.

- Ninguém é normal – o menor murmurou, sorrindo de canto.

Uruha voltou todo o rosto para ele e sorriu levemente. Havia algo de angelical em seu rosto naquele momento, algo que só Ruki podia ver. As bochechas coradas de frio e os lábios vermelhos em forma de coração. Os cabelos loiros caindo sobre a pele cor de leite como se fossem água com cor de ouro. Ouro azulado àquela luz fraca que vinha da lua e da neve. Havia algo de recomeço nesse rosto esculpido.

Ruki rapidamente tentou esconder seu rosto em seu cachecol. Deuses! Sentia-se verdadeiramente como uma criança.

- ...Você está bem, Ruki?

- ...É.

- Sabe... você me lembra novembro. Não sei por que.

Mais uma vez, reinou o silêncio sobre o santuário, além das vozes repetitivas dos sacerdotes e de um ou outro barulho de carros, distante. Um vento fraco balançou as roupas deles, fazendo-os estremecer levemente. Uruha sabia que teria que voltar para casa uma hora ou outra. E agora se sentia um pouco exposto de mais na frente do baixinho. Ou melhor, sentia-se... demasiadamente a vontade com ele naquele momento.

- Bom, eu vou indo. Até – disse se levantando, e refreando a vontade de lhe dar um abraço de boas festas.

O menor abanou uma mão coberta por uma luvinha colorida fofa, sem olhá-lo e Uruha apressou o passo pelos caminhos tortuosos da pequena praça. Olhou para trás no meio do caminho e viu que Ruki olhava para ele por baixo da franja. Não podia negar que vê-lo sentado tão inocentemente naquele banco de pedra, em frente ao santuário, era uma bela imagem. “Tipo cartão postal”.

No interior de um carro negro como pedras vulcânicas, olhos cor de chumbo olhavam o rapaz loiro se afastar. Ruki falara com aquele homem?! Realmente falara?! Hum... O que poderia significar algo assim? Talvez nada... Em todo caso, quando conseguisse finalmente voltar para casa e acabar com aquela ridícula e repentina vontade do menor de ser religioso, interrogaria Naoyuki a respeito. Ruki não podia simplesmente começar a falar com qualquer um...

O sol começou a aparecer quando estava na metade do caminho para casa e Uruha respirou fundo, abrindo os braços em direção ao céu. O vendo ainda era gelado, a neve ainda fazia montes em frente aos prédios, mas as ruas estavam desertas. Distinguível entre os ruídos naturais de uma cidade gigantesca, Uruha podia ouvir – ou talvez apenas pressentir – o canto dos pardais. Como se eles estivessem conversando, tagarelando sobre o novo ano que começava. Pardais eram criaturas insignificantes, entretanto... por isso mesmo talvez se parecessem com as pessoas. Insignificantes, porém quando se prestava mais atenção...

O loiro sorriu levemente, deixando-se levar pelas sensações de paz. Okay, sua vida era uma bagunça, nada estava certo como deveria ser, mas que raios! Era ano novo! Talvez fosse tempo de ouvir seu pai a respeito daquela faculdade. Talvez devesse pensar um pouco mais seriamente no que fazer a partir de agora. Talvez... mas não naquele momento. Naquele momento estava aproveitando a serenidade. Feliz, porque um garoto que nunca fala com ninguém falara com ele. Feliz, porque podia ser feliz, mesmo com tudo podendo dar errado a qualquer minuto. Uruha começou a assoviar com os pardais.

Parou quando se aproximou o bastante de casa para ver um vulto de uma pessoa sentada – jogada? – em frente ao portão. Aproximou-se mais e confirmou suas vagas suspeitas de que aquela pessoa era Kai. E seu amigo tinha o rosto riscado de lágrimas. Parecia ter se largado no portão da frente para chorar.

Um nó se formou na garganta de Uruha e este apenas o reteve quando Kai ergueu os olhos e o viu parado ali, quase estático, esperando pelo pior e desejando qualquer outra coisa além. Quando o moreno abriu a boca, sua voz não parecia pertencente a ele. Parecia separada do corpo, flutuando naquela manhã branca, grave como um trovão.

- Baachan se foi.

E de repente os pardais pareciam ter silenciado.

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Notas finais do capítulo

Foi triste? Vocês choraram? Nããã...eu não escrevo tão bem assim. Tudo bem que eu fiquei triste pela Baachan, mas ela está bem melhor na minha cabeça do que aqui. Perdão né, eu tento, mas as vezes não consigo passar exatamente o que tenho na minha cabeça para o papel. Okay... na maioria das vezes eu não consigo. Por favor, caso alguma coisa esteja saindo ruim ou esquisita, me deixem saber. Puxem minha orelha. Me cobrem. Eu preciso tremendamente de opiniões nesta fic, porque honestamente minhas idéias para ela ficam mais e mais vagas a cada dia.

But thanks! E volte sempre.