Epitáfio escrita por Zoombie_Misora


Capítulo 1
O Meu Filme


Notas iniciais do capítulo

Eu fiquei um bom tempo querendo escrevê-la...
Espero que goste

Enjoy



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O barulho do aparelho simboliza o meu coração batendo. Não sei se você sabe, mas esse som é extremamente irritante. Fica pior se forem dois praticamente unidos.

Dou um desconto, pois o coração que bate ao meu lado é da pessoa a quem eu devo toda a minha felicidade, Jared.

Seus olhos azuis já estão tão cansados de tudo, seus cabelos castanhos escuros sem vida e sua pele branca tão seca. Seus lábios carnudos rachados por causa da febre da noite anterior e seu nariz molhado.

Meu nome é Daniel. Pode me chamar de Dani se quiser, não me importo, afinal eu estou aqui para nunca mais voltar. Com apenas 23 anos, eu fiz a maior decisão da minha vida: Morrer.

Uma forte dor aparece no meu peito. Eu tento deixar o meu rosto o mais natural o possível, afinal não quero que ele me veja sofrer. Estamos juntos numa maca e seus olhos azuis não me deixam por um segundo sequer.

-Não ouse fechar esses lindos olhos castanhos. –Diz Jared com um sorriso teimoso. –Não ouse deixar esse corpo de pele morena sem vida.

Dizem que quando você está para morrer, a sua vida passa como um filme. Eu posso afirmar isso para vocês.

Quando eu me vi como gente, estava morando em uma bela cidade do interior do Rio Grande do Sul, região metropolitana. Era um lugar pequeno, um pouco aconchegante chamado Cachoeirinha.

Meu pai trabalhava em um pequeno comércio da cidade. Éramos vizinhos de motoqueiros e de pessoas idosas numa rua perto da igreja principal da cidade. Sempre tive uma educação católica, apesar de não aparentar quando cresci.

Jared se mudou quando eu tinha 6 anos e ele, apenas 4. Ele ficou na casa na frente da minha. Como eu gostava de aprontar, brincávamos até de noite. Na verdade, ele não se enturmava muito. Sempre foi muito frágil, não corria e tossia pra caramba às vezes.

Eu não desconfiava de nada. Tirando isso, ele sempre foi uma criança normal. Saíamos pra tomar sorvete, comer crepe, andar na pracinha e estudar. Na verdade, ele adorava, eu não.

Por ter um rosto afeminado, alguns garotos tiravam onda dele. Meus amigos na real. Ele chorava muito no banheiro. Uma vez, eu fui consolá-lo. Foi a primeira e última, pois falaram que éramos namorados por um mês.

Eu sempre o acudi quando voltávamos.

Ele nunca ligou para essa minha dupla vida. Só dizia querer o meu bem. E eu o aceitei como um tenro amigo. Aquele que sempre sorria com um jeito especial quando terminávamos um bolo de aniversário para minha mãe.

Aquele que sempre dormiu comigo quando o sol nascia. Posamos na casa um do outro, choramos juntos por machucados, discutimos por causa de brinquedos. Nunca poderia imaginar uma infância melhor.

Quando começamos a entrar na puberdade, olhávamos filmes pornôs escondido dos nossos pais. Não entendíamos direito o que era aquilo, mas só sei que eu gostava. Para ser bem sincero, a minha primeira masturbação foi com ele.

Não que um fez no outro. Estávamos um do lado do outro, cuidando daquela coisa que estava dura, não sabíamos direito o que fazer. Doía um pouco, ele estava coradinho como uma maçã.

Eu gozei primeiro. Ele estava com tanta vergonha. Falei para ele fechar a mão mais forte, aumentar a velocidade. Seus dedinhos eram pequenos e sua mão tão macia. Não entendi o porquê eu o ajudei a forçar mais a mão.

Quando ele gozou, eu só estava na sua frente, esperando ele acabar. Abriu aqueles olhos azuis com um sorriso enorme e riu.

Por um motivo que ele não havia contado, nunca mais fizemos isso novamente.

Eu estava crescendo e gostando de uma garota. Beijei ela aos 13 anos. Era incrível como aquilo era estranho! Nunca tinha feito algo assim. O nome dela era... Adriana! Meu primeiro amor.

Conheci outro amigo que me acompanharia até aqui. O vinho. Adriana era quase quatro anos mais velha que eu, já bebia, fumava e fazia algumas coisas que eu sentia vergonha de pensar.

Sempre convidei Jared para irmos beber. Ele dizia que não podia. Acabei me afastando dele. Estava alucinado com meus novos amigos, eles bebiam e fumavam e não se importavam com a hora que chegariam em casa.

Não demorou muito, apenas dois anos para eu me envolver com drogas. Primeiro era só maconha que a Adriana conseguia pra mim. Pra isso, tive que fazer uns favores com a irmã dela.

Nunca tinha imaginado que, o que eles faziam em filmes pornôs era de verdade! Era como filmes de alienígenas pra mim, tudo uma coisa que eles pensavam ser assim.

Lembro da primeira vez que cheguei podre em casa. Meu pai me bateu, eu vomitei nele e na cozinha toda. Minha mãe chorava em um canto, quando ele dizia que eu era um bastardo.

Eu estava embaixo do chuveiro, de roupa e tudo até que Jared abriu a porta. Ele caminhou até mim, sorriu e botou meus cabelos no lugar. Tirou minha roupa, me deu banho e me ajudou a melhorar.

Mesmo sendo tão carinhoso comigo, eu voltei a usar. Menos de um ano, eu dormia com praticamente todas as amigas do grupo, sempre me protegendo é claro e ficando mais viciado. Eu queria um barato maior.

Me ensinaram a usar heroína. A pior merda que eu já conheci. Eu estava gostando, aproveitando e cada vez com mais medo da morte. Só parei quando vi que Jared foi até o lugar que estávamos e injetou uma dose.

Ele teve uma overdose e quase morreu no hospital. Eu estava sujo com o sangue e vômitos dele. Eles fizeram um montão de testes comigo e não entendi o problema. Quando perguntei ao enfermeiro, o meu choque foi grande.

Jared era soro positivo. Nasceu com AIDS e poderia ter passado para mim a doença. Como só ele usou aquela seringa, não houve risco de eu pegar e também, fazia o teste todo mês.

Quando o pequeno acordou, não falei nada. Ele não desconfiou que eu havia descoberto seu mais íntimo segredo. Seus olhos azuis se revelaram para mim e eu decidi tomar um rumo na minha vida.

Eu tinha quinze anos e já estava numa fazenda para recuperação de dependentes químicos. Jared me visitou todos os finais de semana, sagradamente. Levava bolo com o seu recheio especial, contava histórias que haviam acontecido na rua.

Seus dedinhos dedilhavam o meu cabelo. Dizia que sempre teria a cama dele como o meu refúgio quando ele precisasse.

Eu queria sempre tê-lo ao meu lado. Era impossível eu não me apaixonar cada vez que ele sorria. Eu disse me apaixonar? Sim... Eu disse.

Já tinha 17 anos quando eu percebi que ele não gostava de meninas como eu. Ele beijou um cara na bochecha na minha frente e disse que ele era o seu namorado. Eu nunca morri tanto de ciúmes.

O idiota tinha me falado para não me aproximar do ‘menino dele’ quando eu quissesse. Ele só iria me ver quando o querido deixasse. Audácia dele.

Eu conversei com Jared, que só corava e pedia para que eu entendesse o outro, afinal, ele era ciumento.

No aniversário do menor, o levei para a pracinha que brincávamos quando menores. Morremos de rir no gira-gira, tomamos sorvete, escrevemos nossos nomes com gravetos na areia e só curtimos o por do sol deitados na quadra da escola que ele estudava.

Sem entender, minha mão entrelaçou seus dedos e eu o puxei forte para perto de mim. Meu coração batia tão forte. Ele se aninhou no meu peito e só saímos de lá, quando o guardinha nos tirou.

O namorado de Jared havia descoberto a nossa aventura. Ele bateu no meu pequeno. Deixou o seu rosto praticamente irreconhecível por meses. Como ele chorava. Eu não deixei normal, parti para cima dele e dei a maior surra que alguém podia tomar na vida.

Meu frágil bebê ficou traumatizado, ele havia tentado transar com Jared, mas o menor não quis. O pequeno nunca mais teve um namorado nos anos que passaram.

Eu terminei o primeiro grau e larguei a escola. Comecei a tocar baixo em uma banda de garagem. Conheci os animes e me apaixonei pela música japonesa. Levei Jared comigo e descobri que sua voz era magnífica.

Conseguimos fazer um show, numa balada com j-rock. Nesse show, ele de vestido Lolita e nós todos esbanjando sensualidade. Quando ele chegou perto de mim, para se apoiar, eu resolvi beijá-lo pela primeira vez.

Totalmente de frescura.

Mas aquilo tinha um gosto tão bom. Ele corou tão belamente.

Ele terminou a escola, continuou na banda e começou a estudar matemática na UFRGS. Eu continuei na banda. A nossa amizade nunca mais foi a mesma após aquele beijo. Jared ficava com vergonha por tudo e acabou se afastando um pouco.

Quando eu fiz 21, me ligaram no celular enquanto eu trabalhava no mercado do meu pai. Jared estava no hospital. Pneumonia e das fortes. Eu fiquei o tempo todo ao seu lado. Ele estava debilitado, não comia direito, estava sem tempo para se cuidar.

Havia começado a trabalhar, pois o governo cortou seus remédios. Ele teria que comprá-los. O salário inteiro dele era para essa causa.

Ao pensar que poderia perdê-lo, eu me toquei do que realmente sentia por ele. Acho que foi tarde demais. Mas eu não posso fazer nada, pois eu só sentia atração por ele. Não era por qualquer homem. Somente ele.

Meu pequeno foi morar comigo. Eu já tinha meu próprio apê, então podia cuidar dele sem problemas. Quando ele melhorou, tivemos a conversa mais esclarecedora da nossa amizade.

Ele me amava. Chorou ao confessar. E disse que não poderia me ter, pois tinha medo de me deixar doente como ele. Eu segurei sua mão, embalei seu corpo no meu colo e beijei sua testa.

Aquela sensação me deixou tão feliz! O coração dele junto ao meu era uma sinfonia que eu nunca poderia esquecer. Começamos a namorar a partir daí. Fizemos segredo para todos que nos conheciam.

Fora do apartamento, éramos amigos. Dentro, companheiros de vida. Confesso que tive medo quando nos deitamos pela primeira vez. Mas foi algo tão mágico, tão delicioso, que eu esqueci de tudo.

Era o céu. Dentro daquele corpo tão frágil, baixinho e magrinho, se escondia o paraíso. Eu o provei todas as vezes que pude.

Mal havia passado um ano, quando ele teve outra crise. Parou no hospital novamente e o médico não me deu boas notícias. Ele não teria mais que um ano, mesmo tomando os remédios.

Sua saúde estava muito frágil e seus órgãos estavam começando a falhar. Ele teve que fazer hemodiálise. Começou um corre-corre por qualquer espirro que ele desse. Seus olhos não brilhavam mais.

Eu não tinha coragem de tocá-lo com medo de quebrá-lo em vários pedaços. Eu chorava pelos cantos, havia voltado a beber e não agüentava mais aquele sofrimento.

Um dia quando voltei do trabalho, ele havia deixado um bilhete. Nunca mais voltaria, pois não queria que eu morresse junto, eu era saudável e teria ainda uma vida pela frente.

Nunca andei tanto por esta cidade. O encontrei em Porto Alegre, ao lado daqui, olhando o Guaíba. Ele sempre quis que suas cinzas fossem jogadas lá. O abracei forte e limpei suas lágrimas.

Assistimos o sol se pôr de mãos dadas. Voltamos para casa, o banhei e o alimentei. Dormia como um anjo. Foi aí que eu tomei a minha decisão.

Não digo que foi aceita de primeira, pelo o contrário. Ele não aceitava o fato de eu querer ir junto com ele. Eu disse que faria de qualquer maneira, nem que se fosse preciso comprar uma puta para me transmitir.

Sim. Eu vou morrer da mesma causa que ele. Complicações por causa da AIDS. Não me importaria, afinal eu estaria junto dele. Até o final.

Depois de quase uma semana de discussões e lágrimas, ele se aproximou de nossa cama e tirou o roupão que usava. A única peça de roupa que cobria o seu corpo tão quente.

Ele tremia como nunca. Eu não pensei duas vezes ao penetrá-lo. Podia sentir ele por completo em volta de mim. Fizemos amor como nunca antes. Jared se entregou a mim como se fosse a nossa primeira vez.

Um orgasmo que eu nunca mais sentiria tão forte.

Depois de duas semanas, a confirmação. Eu estava com o vírus. Peguei chuva num dia de inverno e fiquei molhado o dia todo. Pneumonia. Eu nunca tomei um remédio se quer.

Se passou mais um mês e Jared deixou de tomar os remédios.

Ele sofreu um ataque forte. Ficou no hospital antes de mim. Eu o ameacei a suportar, até que eu ficasse ao seu lado. Não demorou muito para eu ficar até pior que ele. Fizemos amizade com algumas enfermeiras e conseguimos ficar no mesmo quarto.

Foram duas semanas internados, até eu sofrer uma parada cardíaca. Quando ele soube, teve uma complicação respiratória e quase morreu.

Agora estamos lado a lado em observação. O meu coração se fragilizou muito, por isso não agüentarei outro enfarto. E ele está respirando como pode. Minha mãe chegou e discutiu com médicos sobre o porquê eu estar ali.

Eu respondi:

-Porque eu o amo.

Foi o suficiente para fazê-la chorar. Não liguei muito, afinal eles já tinham tido outro filho, que ficou bem longe de mim após o meu envolvimento com drogas. Droga... Acho que foi daqui que comecei.

Olhei para o lado e o meu anjinho segurou minha mão. Estava chorando.

-Dói? –Perguntei.

-Muito... –Ele respondeu tentando respirar.

-Relaxa... –Falei. –Vai passar daqui a pouco...

-Eu te amo.

-Eu também te amo. Meu... amor.

Eu senti uma forte dor. Segurei a sua mão mais forte ainda. Me aproximei, limpei suas lágrimas com dificuldade e selei seus lábios com ternura. Eu sei que vou segui-lo, tenho certeza.

Seus dedos não forçavam mais a minha mão.

Seus olhos azuis se fecharam para mim. Eu olhei para o teto, não respirava bem, o som daqueles aparelhos era horrível, bipavam loucamente, eu só queria que eles parassem e me deixassem em paz!

Os aparelhos haviam parado de tocar.

Senti a mão de Jared se entrelaçando com os meus dedos timidamente.


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Notas finais do capítulo

eaí?