Duas horas da manhã.

            Não consigo dormir.

            Kasumi se foi, sem dar maiores explicações. Pra onde, não faço idéia. Acho que ela deve ir para sua cápsula, de algum jeito. Como será que ela dorme? Ela dorme? Ah, por que eu estou me fazendo perguntas sobre ela? Tem coisas maiores pra se preocupar.

            Levantei e fui até a cozinha tomar um pouco de água. Procurei, também, um remédio para insônia, mas não tinha nada parecido. Pelo jeito, passaria a noite em claro. Os fatos não me permitiam dormir. E a ação de Kasumi só piorava a situação.

            Kasumi...

            Que droga, por que ela não sai da minha cabeça?

            Voltei para o quarto, sem esperanças de uma boa noite de sono. Passei um tempo olhando pela janela, procurando o buraco da cápsula no quintal, mas estava escuro demais para encontrar qualquer coisa ainda mais escura. Resolvi ler um livro para tentar apaziguar minha cabeça esquentada.

            Abri a porta do armário, mas nesse momento, “ler um livro” desapareceu da minha mente. Minha coleção estava no mesmo canto, porém um deles estava faltando. Estava sendo usado como travesseiro por alguém...

            Kasumi dorme. E ainda no meu armário.

            A primeira coisa que me veio à mente foi sacudi-la pelos ombros e gritar “O que você tá fazendo aqui?!”, mas consegui me segurar, pra não acordar ninguém. Depois de passado o susto, observei direito o ambiente em que ela se encontrava, o que me fez estranhar ainda mais.

            Havia um SPIPA ao seu lado. Não podia ser o dela, porque ela estava na forma humana. Seria o de Joana? Minha curiosidade agiu por conta própria e segurou o capacete, ao mesmo tempo em que eu me perguntava “De que adianta, se ele é protegido por senha?”. Ainda assim, o vesti.

            Por um momento, achei que realmente não serviria de nada, já que tudo se apagou por um tempo muito maior que o normal. No entanto, uma voz surgiu na minha mente:

            - Usuário não-identificado. Funções de segurança bloqueadas.

            E os sons de adaptação surgiram normalmente.

            (Caramba, eu já estou achando esse tipo de coisa “normal”?...)

            Pensei, por alguns instantes, que eu estava colocando o SPIPA simplesmente por impulso. Mas então, me lembrei do que me afligia até aquele momento: Kasumi sabia de alguma coisa sobre o “fim do mundo”. E o capacete era a ferramenta perfeita para descobrir o quê.

            Aproximei-me de seu rosto e...

            Reparei, pela primeira vez, como ela era muito bonita.

            Eu já tinha percebido sua beleza desde que ela apareceu aqui, mas estava assustado demais para ver com clareza. Agora, mesmo no escuro, eu pude enxergar, com calma, sua face serena. E era linda! Sua pele suave, seus olhos cerrados com um quê de asiáticos, seus lábios semi-abertos...

            “Ei, Matt, você não tinha algo importante pra fazer”?

            De qualquer forma, aquela aparência era artificial. Ainda assim, o SPIPA havia feito um trabalho impecável... Tá, concentração.

            Cautelosamente, toquei os lábios de Kasumi com os meus. Nesse momento, minha mente se manifestou:

              “A função de análise está funcionando”?

            - KZM-8230147J;

              “Ah, funciona”.

            - Zerphys;

              “Mas por que eu não pensei em usá-la”?

            - C.E.M.;

              “Aliás, eu não pensei em nada”.

            - Moradia fixa não encontrada;

              “Nem em descobrir o que Kasumi sabe”.

            - Confusão;

              “Por que eu não pensei em descobrir seus objetivos antes de começar”?

            - Estresse;

              “Por que eu não quero pensar em nada”?

            - 89;

              “Por que essa sensação é tão boa”?

            - Matt;

              “...Hã?”

            Distanciei-me da sua boca, assustado. O que meu nome está fazendo no meio da análise? Eu lembro que apareceram nomes na minha e na da Ana, mas eles são de pessoas que a gente ama. Será que...?

            Não... Não é possível...

            Ela é uma alienígena super-desenvolvida e eu sou um lixo de nível 42. Que motivos ela teria? Ela procura a perfeição pelo universo, eu estou bem longe disso. O que ela viu em mim? É absurdo... É impossível...

            Eu preciso saber.

            Preparei-me para analisá-la outra vez, porém um pensamento me segurou. Fiquei olhando, mais uma vez, para aquela linda face.

            - Você está acordada, não é?

            Como eu esperava, seus olhos se abriram lentamente. Olhos sem cor, por culpa do escuro, mas ainda assim, radiantes.

            - Sim. Eu não durmo.

            Ficamos ali, paralisados, olhando um para o outro.

            - Me-kun?

            - Hm?

            - Desativa a função de analise do SPIPA, só por um momento.

            - ...Pra quê?

            - Pra isso.

            Ela se levantou, me envolveu em seus braços e...

            - KZM-8230147J, Zerphys, C.E.M.,...

            “Desativar função de análise”.

            Era verdade. Kasumi não estava sob efeito do capacete. O nome que apareceu não era um simples erro de análise. Por algum motivo, ela me ama. E mesmo sendo alguém de outro mundo, se manifestou pelo beijo mais intenso que eu já senti.

            E eu me rendi.

            - Kasumi... – eu disse, quando acabou – Por quê...?

            - O amor também existe no meu mundo, Me-kun – ela respondeu, olhando para baixo – E ainda é uma das respostas que eu procurava.

            - ...

            - Até agora, eu não o entendo. E você foi uma das maiores provas disso.

            - ...Desde quando...?

            - Acho que a partir do momento que eu te vi, um afeto cresceu dentro de mim. Ele foi se desenvolvendo, à medida que eu te ajudava. A sua dedicação em chegar aonde quer, mesmo sendo tão fraca, eu admirei mais do que deveria.

            - ...

            - Me-kun... – ela se aproximou, ficando a alguns dedos de distância de mim – Eu não sei por que eu tenho esse sentimento por você. Mas eu quis expressá-lo para que você entenda a intensidade dele – fechou os olhos e chegou ainda mais perto. Antes que nossos lábios se tocassem, perguntei:

            - O modo de se expressar é o mesmo no seu mundo?

            O segundo beijo não chegou a acontecer. Ela me abraçou.

            - Não. Nessa parte, eu me baseio no que eu vi de você com a Ana.

            Ana...

            Eu ainda a amo. O que fazer?

            - Kasumi... – falei, indeciso – Eu ainda amo a Ana.

            - Eu sei – ela disse, se soltando – E nisso, eu não posso interferir.

            - Mas você me deixou confuso.

            - Eu imaginava que isso fosse acontecer.

            - Eu acho que... Eu quero ficar com você...

            - Não, você não quer – ela ficou um tanto séria – Sua mente está perturbada com tantas revelações. Você quer alguém pra te apoiar, é o que eu sempre fiz. E é só isso que eu vou fazer, sempre – nesse momento, seus olhos se encheram de lágrimas.

            Senti uma dor intensa ao vê-la chorando. Apesar de ser uma “alienígena super-desenvolvida”, ela também tinha esse defeito, que é a personalidade. Fica triste e sofre, assim como eu. Enfim, uma semelhança.

            Abracei-a.

            - Kasumi... Eu não quero te ver assim.

            - Desculpa, Me-kun – ela disse, entre soluços – Eu te amo muito. Mas eu não quero que você desista da Ana. Eu estou te atrapalhando.

            Fiquei em silêncio enquanto ela se lamentava em meus braços. Será que ela tinha razão? Um sentimento a mais por outra pessoa pode afetar seu relacionamento com quem você realmente ama? Eu amo a Ana. Mas agora... será que eu também amo a Kasumi? Minha cabeça está embaralhada.

            E eu esqueci, por um momento, que o mundo está prestes a acabar.

            O mundo deixa de existir quando seu problema é grande.

            O ser humano é muito egoísta.