No sonho, havia um quarto de hotel, com uma cama grande de casal. E nela, estava a rainha do cor-de-rosa, Thalia. Ela estava jogada de barriga para baixo, chorando. Então Luke entrava no quarto e sentava na cama, ao lado de Thalia. Ele puxou seu rosto delicadamente e falou alguma coisa e ela foi se acalmando. Então eu notei que seus rostos estavam quase colados, e os olhos de Luke desciam de vez em quando para a boca de Thalia, e eu sabia o que ia acontecer.

                Então eu acordei piscando forte e ofegando. Cocei os olhos molhados e percebi que eu suava frio. Me levantei e engoli em seco, olhando pela janela. O céu começava a assumir tons claros de azul e rosa, e Luke e Mors ainda dormiam. Saí do chalé indo em direção à floresta. Cheguei ao Punho de Zeus e vi alguém sentado lá.

                - Sem sono? – Thalia perguntou, sem se virar.

                - Não, eu sou sonâmbulo. – ironizei, me sentando ao seu lado.

                Ela me olhou de testa franzida.

                - Pesadelos. – expliquei. – Você? – perguntei.

                - Idem. – ela respondeu.

                - Quer contar?

                - Não. – ela respondeu. – Você?

                - Não.

                Ficamos em silêncio até que eu tive uma idéia suicida.

                - Uma filha de Zeus incomoda muita gente, duas filhas de Zeus incomodam incomodam muito mais. – cantarolei.

                Ela me olhou incrédula. Ri por dentro e continuei.

                - Duas filhas de Zeus incomodam muita gente, três filhas de Zeus incomodam incomodam incomodam muito mais.

                Ela começou a ficar vermelha de raiva e seus olhos faiscaram. Literalmente. Parecia que pequenos raiozinhos atravessavam suas íris. Eu ri de verdade. Continuei.

                - Três filhas de Zeus incomodam muita gente, quatro filhas de Zeus incomodam incomodam incomodam incomodam muito mais.

                Thalia ficou de pé, me olhando. Me levantei também. Outra idéia ainda mais suicida me ocorreu quando Mors chegou trotando e parou ao meu lado.

                Ei, Mors, quando eu disser ‘já’, pegue Thalia e voe.

                Ela assentiu.

                - Ei, Thalia, você já superou seu medo de altura? – falei alto, ela ficou pálida e começou a faiscar.

                - Não? Já está na hora, hã? – continuei, acrescentando mentalmente para Mors:

                Já.

                Mors avançou e “catou” Thalia, voando a uns bons 5 metros. Eu ri. Thalia ficou pálida. Nessa hora, Luke apareceu. Ele fez com que eu me lembrasse do meu sonho e corasse.

                Luke olhou para mim e depois para Thalia. Sua cara foi de surpresa, depois de raiva. Ainda zangado, ele se virou para mim.

                - Ponha ela no chão! – ele gritou.

                - Quem? Eu? – me fiz de inocente.

                Ele olhou para cima, onde Mors e Thalia estavam e gritou:

                - Mors! Desça agora!

                Mors não desceu. Thalia parecia prestes a desmaiar. De repente, a pegadinha tinha perdido a graça.

                - MORS! DESÇA! – Luke berrou.

                Mors desceu. Eu estava imóvel. Thalia saiu cambaleante de cima dela e Luke correu em sua direção, segurando Thalia, ao chegar lá. Quando a pegou, Thalia desmaiou, e ele a ajeitou no seu colo.

                Luke se virou para mim. Seus olhos não faiscaram, mas chegaram perto. Sua raiva era tão completamente evidente que chegou a me assustar. Ele me fuzilou com o olhar e saiu, com Thalia em seu colo, ainda desacordada. Eu permaneci imóvel e Mors veio para perto. Eu desabei sentado no chão, os sentimentos misturados, sem sentir nada exatamente. Mors deitou-se ao meu lado.

                Desculpe.

                Eu ouvi sua voz em minha mente. Retruquei.

                Não, eu que peço desculpas.

                Suspirei e me levantei, saindo da floresta. Mors me acompanhou.

                Quando estávamos quase no meu chalé, Mors avisou mentalmente que ia para os estábulos, e eu assenti. Cheguei no meu chalé e entrei, fechando a porta atrás de mim. Thalia e Luke estavam sentados na cama dele. Thalia estava pálida e tinha um pedacinho meio comido de ambrosia na mão. Luke a olhava como se quisesse gravar cada centímetro de seu rosto.

                Sentei na cama à frente deles e suspirei.

                - Desculpe, Thalia. – falei. Ela me ignorou: ao invés de responder, ela olhou para Luke e disse:

                - Tem alguém me chamando, Luke? – ele corou e gaguejou ao responder:

                - É... é o N-n-nico.

                Nossa, que criatura burra, ele não sacou que ela tá me ignorando?

                - Ah, Thalia, vamos... eu pedi desculpas. – falei. Como não houve resposta, eu disse:

                - Não? Tá bom. Temos que começar a missão, vamos, crianças – era estranho chamar uma adolescente e um adulto mais velhos que você de ‘crianças’, mas ao mesmo tempo era legal.

                Nós três nos levantamos e saímos do meu chalé. O sol já estava alto, e as pessoas se direcionavam para o refeitório. Alcançamos Quíron e ele disse:

                - Ah, crianças, que bom que já estão despertas. Seria bom se vocês partissem o mais rápido possível, de preferência em cerca de meia hora.

                Nós assentimos e Thalia pediu para Quíron a lista de semideuses que iríamos buscar. Eu fui em direção a Percy, que estava sentado na sua mesa, comendo. Me aproximei.

                - Ei, Percy, desculpe por ontem, está bem? – falei, me sentando ao seu lado.

                - Que? Ah, tudo bem, Nico, Annabeth... entendeu... – ele falou.

                Eu ri. Eles deviam ter tido uma reconciliação bem divertida ontem a noite.

                Me levantei e fui até a mesa principal, onde Rachel falava feito uma louca com o sr. D. Andei por trás dela e disse, perto do seu rosto:

                - Ei, Ray, obrigado pela profecia! Já estou indo desvendá-la.

                Ela se assustou, mas se virou sorrindo.

                - Imagina, Nico, boa sorte! Até mais!

                Eu fui até Luke e Thalia, que ainda falavam com Quíron sobre sei-lá-o-que e avisei que estaria esperando por eles na Colina. Eles assentiram e eu fui.

                Cheguei ao topo da Colina e me sentei encostado no Pinheiro, com Peleu ao meu lado. Pensei no que poderia nos esperar além das fronteiras. Nada que não pudéssemos vencer. Pensei em descer para tomar um banho, mas algo me prendia ali. Pensei em como soava estranho que Luke estivesse conosco, mais uma vez, e se ele havia realmente... mudado. Então de repente pensei em como gostaria de ter alguém comigo ali naquele segundo.

                Como que em resposta ao meu desejo, ouvi um som como o de uma fúria quando está zangada. Ou com sono, mas aí é outra história. Me virei na direção do som, e Peleu me acompanhou.

                Talvez aquele tipo de cena fosse comum para os campistas, mas com certeza não era pra mim. Na base da Colina, havia três figuras. Uma delas, a menor, tinha pernas de bode, claramente um sátiro. A outra tinha uma silhueta esguia e cabelos que balançavam ao vento, obviamente uma garota, e considerando sua situação, uma semideusa. A terceira se prostrava no ar com as asas de couro, era uma das minhas companhias no Mundo Inferior, era uma fúria e se chamava Alecto.

                Desci correndo a Colina até os três, e passei os dois indefesos para trás de mim. Alecto me olhou surpresa e disse com seu sotaque carregado:

                - Lorde... Lorde Nico?

                - Oi, Alecto, bom te ver, agora que já cumpriu sua missão de trazer a semideusa para o Acampamento, pode ir embora. – falei sarcástico.

                - Mas, Lorde Nico... – ela começou, mas eu a interrompi, dizendo:

                -Obrigado, Alecto. Pode ir.

                Seu rosto feio se contorceu numa careta de zanga, ainda que não mudasse muita coisa. Então ela me olhou zangada e disse:

                - Como quiser, Lorde Nico.

                Uma fenda se abriu e Alecto sumiu por ali. Me virei para os dois atrás de mim. O sátiro parecia acabado. Sua camisa verde estava suja e tinha alguns poucos rasgos, seu cabelo loiro estava arrepiado, e seu pêlo de bode estava repleto de terra. E ele parecia tão assustado quanto... não, não tão assustado quanto a Thalia voando hoje mais cedo, mas estava quase lá.

                Olhei a garota. Ela parecia ter uns 14 anos. Tinha cabelos escuros, as pontas eram castanho claro, e eles caíam em pequenas ondulações até os ombros. Tinha um rosto bonito, delicado, mas cada traço se destacava. E seus olhos eram... com toda certeza, interessantes. Com toda certeza. Eles eram rosa. Cor de rosa. Rosa choque. Vibrantes, intensos. Bonitos. Meu primeiro pensamento quando os vi foi “Ah, essa não! Thalia perdeu o posto de rainha do cor-de-rosa!”.

                Seu corpo era esguio, magro. Ela usava um vestido que outrora devia ter sido branco, mas estava tão sujo que parecia algo entre bege e marrom, e estava rasgado na barra. Ele colava ao corpo dela, delineando suas curvas abundantes. Seu corpo era delicado, mas com certeza parecia de uma garota com mais idade do que a que seu rosto exibia. Ela percebeu que eu a examinava e corou. O sátiro pigarreou e eu falei:

                - Nico di Angelo, prazer. – estendi a mão na direção da garota, mas o sátiro se pôs à sua frente e apertou minha mão, dizendo:

                - Vito Inlen, protetor. Prazer, Nico.

                Eu o ignorei, ainda olhando a menina. A cor de seus olhos diminuiu de intensidade, passando do rosa choque para um rosa... meio termo. Nem claro nem escuro. Estranho, além de serem rosa, os olhos da criança ainda mudam de cor. Bizarro. Sua expressão era uma mistura entre medo, surpresa e... não sei... admiração, talvez.

                - Ally Miller. P-prazer. – ela falou.

                - Quem é seu parente olimpiano? – perguntei, já sabendo que ela não saberia.

                - Eu... eu não... eu não sei. – ela suspirou. NÃO FALEI? NÃO FALEI? ARRÁ! NICO DI ANGELO É O MELHOR!

                Eu provavelmente falaria algo como ‘vocês têm que entrar agora’, mas Thalia e Luke vieram correndo na nossa direção. Os dois nos olharam assustados, e Ally e Vito os olharam ainda mais assustados. Luke e Thalia pararam ofegantes, e Luke apoiou as mãos nos joelhos, mas Thalia continuou nos olhando, até que ela reclamou irritada:

                - Nico di Angelo, o que exatamente o senhor está fazendo aí?

                Pensei em falar algo entre ‘ah, agora você está falando comigo, senhorita Thalia?’ e ‘é bom te ver também!’, mas isso só pioraria, então falei/expliquei/perguntei:

                - Ahm... salvando a semideusa aqui do tormento eterno?

                Thalia olhou para Ally e sua expressão se suavizou. Ela estendeu a mão e disse:

                - Thalia, filha de Zeus. Prazer.

                Ally a olhou impressionada e apertou sua mão.

                - Ally Miller. Prazer. – se apresentou.

                Olhei em volta, procurando pelo sátiro, mas ele havia sumido, provavelmente ido para dentro. Luke estendeu a mão para Ally e disse:

                - Luke. Prazer, pequena.

                Ela corou e perguntou:

                - Luke? Só Luke? De quem você é filho?

                - Não... não importa. Pode me chamar apenas de Luke. – ele falou, nervoso.

                Ally me olhou.

                - E você, Nico? Quem é seu pai ou mãe? – ela perguntou.

                - Hades. – eu disse. Seu queixo caiu, e para evitar qualquer outra coisa, eu acrescentei:

                - Agora que já estamos apresentados, Ally, você tem que entrar.

                - E vocês? – ela perguntou, levantando as sobrancelhas, como que em desafio. Seus olhos tinham passado para um tom de rosa quase... vermelho, mas ainda claramente rosa.

                - Nós estamos em uma missão. Vamos partir agora mesmo. – Thalia falou.

                Os olhos de Ally se arregalaram e ela pediu:

                - Ah, sério? Deixem eu ir com vocês! Por favor!

                - O que? De jeito nenhum! – Luke exclamou.

                - Ah, mas por quê? Quer dizer, eu não tenho treinamento, mas eu posso aprender rápido! Por favor! Eu posso ser útil, por favor! – ela implorou e seus olhos mudaram para um rosa bem claro.

                - Claro que você seria útil, Ally. Mas não podemos. Realmente não podemos. Agora entre no Acampamento e peça para alguém lhe ajudar, está bem? – Thalia falou, como se falasse com uma criancinha pela qual ela se sentisse responsável.

                Ally me olhou suplicante. Eu neguei com a cabeça e desviei o olhar. Era desconcertante o modo como aqueles olhinhos multicoloridos me afetavam. Ela suspirou derrotada e subiu a Colina em silêncio. Me virei para Thalia e Luke e perguntei:

                - Então, como vamos?

                - O único modo é de... bom... – Luke olhou para Thalia – pégaso.

                Thalia o olhou incrédula e protestou:

                - O que? Não mesmo, eu não vou voar!

                - Ah, é, Thalia, e por quê? Está com medo de altura? – provoquei estreitando os olhos. Eu sabia que ela não feria o próprio orgulho.

                - Quem? Eu? Nunca!  - ela falou.

                - Bom, então está resolvido, vamos de pégaso. – concluí.

                Ela me olhou zangada e cruzou os braços, mas não protestou. Seu orgulho não deixaria que ela falasse nada.

                Me concentrei em Mors e pensei:

                Ei, Mors, pronta para voar outra vez?

                Hum... sempre, Nico!

                Ah, traga Guido e Porkpie com você, está bem? É importante.

                Certo. Tudo bem. Já estaremos aí.

                A escolha óbvia seria Guido e Porkpie, claro. Eu já voara com eles, e eles tinham grande experiência em missões. Eram ótimos. Em qualquer outro momento, eu pensaria em Blackjack, mas eu sabia que Percy estrangulava qualquer um que tocasse nele, e não estava a fim de morrer agora. Não agora. Depois, talvez, mas agora não.

                Dois minutos depois, três pégasos impressionantes aterrissavam ao nosso lado. Mor e os dois brancos pareciam... renovados, e Guido e Porkpie pareciam ansiosos para voar.

                Montei em Mors e mandei Luke e Thalia escolherem. Mas não foi bem assim que aconteceu. Guido foi para o lado de Thalia e tocou o focinho em seu braço. Ela se encolheu e ficou pálida. Guido olhou... presunçoso para Porkpie, que bufou zangado e foi para o lado de Luke. Como se Guido tivesse ganho um tipo de aposta cujo prêmio seria ficar com Thalia. Sinistro. Ouvi a risada de Mors em minha mente.

                Luke subiu em Porkpie e Guido cutucou Thalia de novo. Ela deu um gritinho de repente. Todos (pégasos inclusos) olharam para ela com cara de ‘o que você está fazendo, sua maluca?’. Ela nos olhou e falou, assustada:

                - Ele... ele falou comigo! O pégaso falou comigo! Em mente!

                Nós rimos. Quando um pégaso escolhe alguém, ele passa a poder se comunicar com seu “dono”.

                - Parabéns, Thalia, você acaba de ganhar um pégaso! Que tem nome, à propósito! – eu falei.

                Ela me fuzilou com o olhar e falou:

                - Eu sei que ele tem nome, Nico, e é Guido! – ela engoliu o orgulho e disse para Guido:

                - Oi, Guido! Eu sou Thalia!

                Ela deu outro gritinho.

                - Ele disse que sabe que eu sou Thalia! – ela falou.

                - Claro que ele sabe quem você é! – Luke falou.

                Thalia subiu por fim em seu pégaso e fechou os olhos. Então decolamos.