Saga Sillentya: Lágrimas da Alma escrita por Sunshine girl


Capítulo 21
XX - O Mal que Reside


Notas iniciais do capítulo

E mais uma vez estou aqui, trazendo talvez, o que seja o antepenúltimo capítulo desta fase.

*virou costume meu postar dia de quinta*

Boa leitura!!!!



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Capítulo XX – O Mal que Reside

“Um mundo morto,

Um trajeto escuro

Nem mesmo encruzilhadas para escolher

Todo o sangue vermelho

Cobre o chão atrás de mim

Contemplando essa justa criação de Deus!”.

“Bem-vindo ao meu Planeta Infernal”.

(Nightwish - Planet Hell)

Aos poucos, o céu clareava. A escuridão cedia espaço para os pontos luminosos e ofuscantes, e um manto cinza desenrolava-se sobre nós. Seria mais um dia sem sol.

Não vi isso como um presságio, afinal se aquele novo dia tivesse uma cor, certamente seria negra e amedrontadora. O primeiro dia do Wayeb, do calendário Maia apresentava-se para nós, humildes humanos apavorados e receosos.

Christian dirigia vagarosamente pelas vielas desertas de South Hooksett. Por mais estranho que aquilo fosse parecer, não havia ninguém na cidade; uma única alma viva. E aquilo ainda me causava arrepios.

Parecia que estávamos mais em um cenário de filme de terror de cidade fantasma. O vento assobiava fino, e eu mantinha os vidros do carro completamente fechados. Até mesmo a idéia de respirar o ar que circulava lá fora me dava calafrios e fazia meu coração martelar violentamente em meu peito.

O mais assustador, porém, sem dúvida alguma, era o silêncio que predominava. Nenhum único ruído pronunciava-se, apenas o ronco silencioso do motor de meu Grand Jeep Cherokee. Nada mais.

Tamara roia as unhas no banco traseiro, eu não poderia culpá-la. Eu mesma estava apavorada, com uma faca gelada enterrada em meu estômago. E ela remexia-se ali, de cinco em cinco minutos, relembrando-me de eu não fora capaz de evitar, afinal.

Peter olhava pela janela, abismado. E de vez em quando, pelo retrovisor, eu notava seus olhos sobre mim, algum tipo de acusação vincava-os.

Suspirei alto demais, quebrando o silêncio que havia se instaurado dentro do carro também. E Tamara finalmente surtou. Ela inclinou-se até mim no banco da frente, eu podia sentir a tensão e o medo emanar de seu corpo. Na verdade, eu podia sentir o cheiro do temor no ar.

- Agatha, diga-me o que está havendo, por favor? – sussurrou ela, os dedos agarrando meu assento.

Virei-me para ela, sem saber o que dizer. Por onde deveria começar? Eu poderia optar por dizer que eu, sua melhor amiga, fazia parte de uma raça condenada e perseguida por criaturas como aquela que dirigia nosso carro agora. Também poderia contar que eu possuo um selo que suprimi todos os meus poderes. Que eu apaixonei-me por meu pior inimigo, que faz parte de uma sociedade tão antiga e poderosa quanto os primeiros grandes impérios.

E que agora, todos estávamos condenados, porque cinco pessoas foram sacrificadas, dando inicio ao apocalipse previsto pelo Calendário Maia. E mais importante ainda, estávamos todos nas mãos de um desertor maluco que pretendia sabe-se lá o quê... É, eu realmente poderia contar tudo isso a ela, e esperar que ela não entre em pânico.

- Tamara, eu não sei... Não sei como te dizer isso.

Peter inclinou-se na nossa direção, e eu desviei os olhos, tornando a fitar as vielas vazias, as casas abandonadas. Mas quem respondera por mim, fora Christian, os olhos fixados nas ruas, o cenho franzido, os dedos envolvendo o volante do carro com uma força demasiada.

- Tudo o que precisam saber agora é que o apocalipse começou. E precisamos encontrar um local seguro para ficarmos.

- O quê? – intrometeu-se Peter – O que quer dizer com isso? Onde estão todas as pessoas?

- Não a veremos tão cedo. – respondeu ele, rispidamente – E se quiser realmente sobreviver a isso, torça para que nós não as encontremos.

Peter cerrou os punhos, e recostou-se no banco novamente, visivelmente irritado. Tamara levou as mãos à cabeça, atordoada e nervosa.

- Christian... – eu sussurrei, mas ele não me respondeu de imediato, e quando enfim o fez, falava com todos.

- Pararemos um pouco no mercado, peguem suprimentos, eu os levarei até o prédio da escola, é de longe o melhor lugar para ficarmos agora.

Ele manobrou o carro, estacionando no meio-fio, colocando o carro em ponto morto. Ele abriu a porta e desceu. Eu o imitei, vendo que Peter e Tamara faziam o mesmo. Acho que todos temíamos ficar sozinhos naquele momento, principalmente longe da proteção que somente Christian poderia proporcionar-nos.

Cruzei os braços e o segui quanto ele entrou no mercadinho, abrindo a porta, o sino tinia, suavemente, entregando nossa chegada. Estava tão vazio quanto o restante da cidade.

Eu o observava vasculhar a mini loja com os olhos atentos, analisando qualquer tipo de movimentação ali, qualquer sinal de perigo. Mas não havia mais nada ali, e mais ninguém a não ser nós.

Tamara e Peter decidiram seguir seus conselhos e dirigiram-se até as prateleiras, apanhando o que fosse ser necessário para nós nos próximos cinco dias.

Decidi acompanhar a figura silenciosa de Christian, que vasculhava os fundos da lojinha.

- O que nós faremos? – perguntei a ele, tentando diminuir ao máximo o tom de minha voz.

- Primeiro, preciso levá-los a um lugar que seja seguro, depois, veremos o que acontecerá.

- Christian, e quanto ao sumiço de minha mãe? – perguntei-lhe, o coração aos pulos.

Ele tornou para mim, os olhos azuis ardendo nos meus, intensos, fogosos.

- Não se preocupe, tudo ficará bem, eu te prometo.

Baixei meus olhos, encarando o piso de linóleo, Tamara e Peter estacaram diante do balcão, e ele, furtivamente, depositou uma nota de cinqüenta dólares. Eu ainda não havia entendido muito bem o motivo de termos que nos trancafiar em algum lugar por cinco dias, mas talvez, fosse melhor que eu não descobrisse também.

- Pegamos tudo o que for necessário. – respondeu Peter, friamente a Christian. Ele sorriu em resposta, aceitando a provocação.

- Ótimo, já podemos ir então.

Eu os segui até a porta da lojinha, estacando na estreita calçada de pedra. Um vento estranho fez os pêlos de meus braços eriçarem-se.

Esfreguei minhas mãos por cima de meu casaco, tentando apaziguá-lo. Mas minha pele permaneceu arrepiada. Aquela gelidez parecia infiltrar-se por minha pele e alcançar meus ossos.

Observei o céu pálido, enquanto o vento rude castigava as árvores secas e desprovidas de folhagens, típicas do inverno. Um som estranho sobressaltou-me.

Girei o tronco, para o local de onde vinham os ruídos incessantes. Não estava enganada; eles vinham do céu. Só então, vi as incontáveis asas negras rasgando o ar acima de minha cabeça. Eram pássaros, muitos, muitos pássaros.

Todos imigravam, voando em bandos, emitindo grasnados e sons ásperos e atordoantes. Tamara e Peter também encaravam o bando, abismados. Seja qual for o motivo que os levava a deixar a cidade, dava-me arrepios.

Então, os pássaros baixaram, mergulhando no ar em nossa direção. As asas longas estendidas, e iam chocar-se todos contra nós, como pontas de flechas.

- Entrem no carro! – gritou Christian, a tensão ressoava em sua voz. Mas eu não consegui mover-me com eficácia, estava petrificada, congelada no asfalto.

Ao ver minha aparente imobilidade, Christian agarrou meus ombros, puxando-me para trás, abrindo a porta e enfiando dentro do carro com uma força demasiada.

Ele bateu a porta ao fechá-la e correu com uma velocidade inumana até a porta do motorista, metendo-se dentro dele, girando a chave que ficara na ignição e seu pé afundou no acelerador.

A essa altura os pássaros já se chocavam contra o teto do carro, como se milhares de pedras de granizo estivessem batendo contra ele.

Christian logo manobrou o carro e tirou-nos de lá, guiando-nos pelas vielas solitárias mais uma vez, deixando o bando de pássaros ensandecidos para trás.

Olhei pelo retrovisor, vendo-os voar em círculo lá atrás, como uma espécie de dança medonha em pleno ar.

Os pássaros ainda emitiam grasnados ásperos e selvagens, e esse som martelava em meus ouvidos como uma marcha fúnebre saída do pior de seus pesadelos. Era a dança da morte, graciosamente letal. Era o sinal, estávamos bem no meio do apocalipse.

Minhas unhas cravaram-se nas laterais do banco, eu ainda não respirava normalmente, e o oxigênio parecia pesar uma tonelada em meus pulmões, comprimindo meu tórax.

- O que foi isso? – consegui perguntar, usando o pouco de suprimento de oxigênio que tinha nos pulmões. Christian fitou-me, a face cautelosa, medindo minhas reações.

- Estou bem, apenas me diga o que raios está havendo nessa cidade. – garanti a ele.

Ele tornou a fitar a pista, os olhos estreitando-se suavemente.

- Eu lhe disse uma vez, lembra-se? Sobre como durante o Wayeb verdadeiros exércitos de Escravos de Sombras eram formados.

- Então é isso o que está havendo aqui? – intrometeu-se Peter – Alguém formou um exército com aquele bando de pássaros? – ele revirou os olhos teatralmente.

Christian sorriu, visivelmente satisfeito pela ignorância de Peter.

- É bem pior do que isso, pirralho, onde você acha que foram parar todos os moradores dessa cidade? Não me diga que você acha que eles foram todos acampar?

- Ei, quem você chamou de pirralho? – ele reclamou, os olhos irritadiços.

Christian bufou, mas então Tamara intrometeu-se na conversa, inclinando-se sobre o banco.

- O que vai acontecer com os moradores, Christian? Quer dizer, meus pais, Bryan, os alunos da escola...

Sua voz era fria e impassível enquanto ele a respondia.

- Eles terão o mesmo destino daqueles pássaros, infelizmente. Seus corpos estarão sujeitos a possessões durante os próximos cinco dias, e eles atacarão qualquer coisa que encontrem. Essa é a natureza de um Escravo das Sombras.

- Como vamos deter isso? – foi a minha vez de fazer as perguntas.

- Temos duas opções apenas; a primeira é esperar que esses cinco dias passem, ao pôr-do-sol do quinto dia, a barreira entre os dois planos estará completamente refeita e os espíritos terão que retornar. A segunda opção sou eu separar-me de vocês e procurar pelo mentor de tudo isso, destruindo a mente por trás disso, tudo voltará ao normal.

- De qualquer forma, corremos risco de vida, não é? – perguntei a ele, minha face desmoronando pela tristeza e pelo desânimo.

- Não posso mentir para você, Agatha, seus amigos humanos não serão o alvo, mas sim você. Se esse desertor conseguir pôr as mãos em você, e conseguir sacrificá-la logo depois de ter rompido seu selo, aí sim teremos o apocalipse na terra.

- Por que a Agatha? – perguntou Tamara, e só então me lembrei que ela ainda não sabia de absolutamente nada.

Christian fitou-me, um sorriso emoldurando seus lábios, um brilho fascinante tinia em seus olhos azuis e profundos como o oceano.

- Sua amiga, Tamara, tem dentro de si o que eu e os meus semelhantes chamamos de energia elemental. É a energia básica que deu origem a todo tipo de vida na terra. É uma energia tão intensa e poderosa que quando liberada pode tanto devastar quanto salvar.

- Quer dizer que um maluco e lunático está atrás da Agatha por que ela é portadora dessa energia? – ela perguntou, visivelmente irritada por ser a última, a saber, disso, ela apontou o dedo para Peter, o tom de sua voz denunciava o seu ultraje – Você sabia de tudo isso?

- Eu sabia que a Agatha era um pouco mais que especial, - ele deu de ombros e depois complementou - agora que ela porta essa tal energia, isso nem me passou pela cabeça. Se bem que eu deveria ter suspeitado disso, ninguém seria capaz de abrir um rio como ela abriu ontem.

Dessa vez o ultraje foi direcionado a mim. Tinha que agradecer a Peter por isso.

- Você abriu um rio?

- Não foi bem abri-lo – retruquei, defendendo-me –, eu mais ou menos o dividi ao meio...

- E não é a mesma coisa? – ela respondeu-me, irritada novamente.

Tamara cruzou os braços, revirando os olhos teatralmente.

- Até mesmo o palerma do meu irmão sabia disso tudo! Estou muito agradecida pela consideração que tem por mim, Agatha! Privando-me de informações cruciais assim... Humf...

Eu ri um pouquinho e Christian acompanhou-me, ver os chiliques de Tamara era algo bem divertido de fato.

- Se serve de consolo, eu só descobri toda a verdade ontem.

Christian logo estacionou o carro em frente ao prédio da escola. Estava vazio, como o restante da cidade. Parecia não haver nada de vivo em cinco quilômetros. E o sumiço de minha mãe ainda me incomodava.

Estaquei no gramado verde e encarei Christian, sugestivamente. E só então notei, havia algo de estranho em seu rosto. Um certo desconforto, uma centelha de desconfiança.

Corri até ele, colocando minha mão em seu ombro.

- Christian, você está bem?

Ele hesitou em responder-me e naquele instante eu soube que havia algo de errado com ele. Não sabia o que era, mas tinha certeza de que aquilo o incomodava.

- Christian? – insisti, exigindo sua total atenção novamente, dispersando seus pensamentos.

- Eu estou... bem. É só um pequeno desconforto. Precisamos entrar agora.

Ele fez menção de mover-se, mas eu detive, segurando em seu braço.

- Diga-me o que está havendo com você. – insisti mais uma vez.

Ele tornou sua face para mim, e eu vi, uma fina camada de suor grudar alguns fios de seus cabelos em sua testa. Os olhos azuis não focalizavam meu rosto, pareciam estar vendo através de mim. E então ele gemeu de dor. Como se algo o tivesse golpeado no estômago.

Seu corpo tremeu e eu o amparei, enquanto Christian retorcia-se de dor em meus braços, seus olhos perderam foco. Peter e Tamara vieram ver o que estava havendo.

Vi que aos poucos, ele perdia a consciência, afundando mais e mais em uma profunda manta de torpor, como se areia movediça o estivesse engolfando lentamente.

- Christian... – chamei seu nome mais uma vez, mas já era tarde, ele perdera a consciência em meus braços.

- O que houve com ele? – perguntou Tamara, parecendo-me verdadeiramente preocupada com ele.

- Eu não sei – disse, sacudindo a cabeça e deixando que meus olhos prendessem-se no semblante sereno dele –, mas acho que está relacionado ao Wayeb.

Um vento frio irrompeu por toda a viela deserta novamente, balançando os galhos nas copas das árvores que margeavam ambos os lados da rua. E um som estranho verberou meus ouvidos.

Procurei por sua origem no mesmo instante, mas não havia nada. Deixei que meus olhos vagassem até o fim da rua, minha audição ainda captava-os, os ruídos não cessavam. Arquei minhas sobrancelhas, parecia... Um rosnado bestial...

Passei o braço de Christian em meu pescoço, segurando em sua cintura.

- Peter, ajude-me aqui! – pedi-lhe, já me levantando, cambaleando um pouco devido ao peso de seu corpo.

Peter acudiu-me no mesmo instante, carregando Christian pelo outro lado. Tamara, que estava mais à frente de nós, recuou, então eu não era a única a captar aqueles sons estranhos. Ela postou-se ao meu lado, os olhos esmeraldinos arregalados e assustados, sua respiração estava dificultosa.

- Agatha, o que está havendo?

Não lhe respondi, apenas apertei meus olhos contra o final da rua, esperançando poder ver algo, ou talvez fosse melhor que eu não visse absolutamente nada. Meu coração espremia-se em meu peito, lutando pela vida.

E então, revelando das sombras inexistentes e suspensas, do manto gélido e fúnebre que não poderia ser jamais visto por olhos humanos, o primeiro deles revelou-se.

Era um homem careca, de mais ou menos trinta anos. Vestia-se comumente, calça de moletom cinza-claro, camisa branca puída e tênis. Mas algo no modo como ele se movia lembrava-me de um elegante predador.

O homem caminhava solitário, sua silhueta destacava-se contra o fundo pálido como giz, o céu branco como papel. Através do asfalto áspero ele caminhava, movendo-se como uma serpente que rasteja pelo chão poeirento.

Os olhos, negros e profundos, como um poço em que se cai e cai sem jamais atingir o fundo, cintilavam ameaçadores e severos para nós, suas frágeis presas.

E o Escravo das Sombras estacou. Parando, ganhando a aparente imobilidade de uma estátua, várias dezenas de metros a nossa frente. E o tempo pareceu ter congelado.

Por alguns poucos segundos, tudo o que podia ouvir eram minha pulsação e minha respiração ofegante. Até que o rosnado bestial eclodiu de várias gargantas simultaneamente. O som áspero e selvagem deu-me uma certeza: estávamos frente a frente com a própria morte encarnada. Um poder de aniquilação e destruição jamais visto antes.

E vários outros escravos revelaram-se, postando-se atrás do primeiro. Encarei os semblantes de Peter e Tamara, tão pasmados e incrédulos quanto eu. Quantos seriam? Talvez mais de cem.

Deixei que Peter apoiasse inteiramente o peso de Christian – que ainda estava desacordado – e avancei vários passos à frente, determinada, consciente do que teria que fazer, do sacrifício que seria exigido. O problema era que eu não sabia exatamente o que poderia acontecer a mim.

Estaquei algum tempo depois que a calçada terminou, e eu encontrava-me no meio da pista deserta. Meus olhos estreitavam-se, meus punhos cerravam-se, e dentro de mim, aquela sensação de poder desenfreado fluía livremente, alimentando minha adrenalina, levando-me, arrastando-me até os campos inóspitos da sandice.

- Agatha, o que pensa que vai fazer? – berrou uma Tamara histérica, ou à beira de um colapso.

Virei-me para trás, detendo-a com uma das mãos, dizendo a ela que ficasse ali mesmo; o mais distante possível de mim.

- Fique onde está, eu tentarei retardá-los e ganhar um pouco de tempo!

- O quê? – ela arfou, os olhos cor de jade esbugalhados – Você enlouqueceu? Viu o que Christian disse, essas coisas foram criadas para matar!

- Afaste-se o máximo que puder! – gritei para ela e então tornei para frente, encarando as criaturas medonhas.

Mesmo assustada, Tamara seguiu meus conselhos, recuou vários passos, estacando ao lado de Peter.

Eu suspirei, sabia perfeitamente o que teria de fazer. E lembrava-me ainda das conseqüências que aquilo trazia. Mas não me restava alternativa. Porque agora era tudo ou nada, vida ou morte, os dados haviam sido lançados, não havia como voltar, não havia como fugir. Era apenas eu e meu amaldiçoado destino.

Fitei as nuvens cinza-claras, observando a suave brisa que agora se fazia presente. Concentrei-me, cerrando meus olhos e mais uma vez em menos de vinte e quatro horas, liberei aquela energia esmagadora que estava contida dentro de mim.

Abri meus olhos novamente, e o resultado foi imediato. O céu ensombreceu, nuvens medonhas, cinza-escuros espreitaram, dominando com eficiência e rapidez, tragando os pontos luminosos com avidez, e a cidade foi engolfada por suas sombras espessas, mergulhada em uma bolha cinza-escura.

Mais uma vez, eu senti aquela energia acumular-se dentro de mim, crescendo e crescendo, como uma criança que sopra uma bolha de sabão, e ela explodiu, exatamente como uma, liberando aquele véu espelhado e transparente novamente.

Desta vez ele não me recobriu, apenas se expandiu, espalhando-se ao meu redor. Eu sabia que era a única que podia vê-lo, mesmo assim era um espetáculo tão ou mais magnífico como da primeira vez.

Minhas mãos repousavam nas laterais de meu corpo, imóveis, meus punhos cerrados. E nem mesmo foi necessário elevar uma delas até o céu medonho, não, porque assim que trinquei meus dentes e forcei aquele véu de energia a expandir-se mais e mais, ele foi completamente direcionado para o céu, como se o próprio céu tivesse aspirado aquela energia.

E descendo das nuvens medonhas com graça e agilidade veio o primeiro deles; um funil de vento que se retorceu, girando, até alcançar terra firme.

Assim que sua ponta tocou nela, uma imensa nuvem de poeira foi levantada. E o funil permaneceu imóvel, o ar circulava a toda velocidade, apenas aguardando que eu fizesse o próximo movimento. E eu o fiz.

Concentrei todas as minhas forças para guiar o funil até o local dos Escravos das Sombras concentravam-se. Mas eles reagiram, como se impulsionados por uma força externa e poderosa. Todos dispararam na minha direção, lançando-se como flechas que eram disparadas de arcos, todas de uma vez só.

O funil moveu-se com minha força de vontade, levantando uma densa camada de poeira por onde quer que passasse, sacudindo os galhos dos carvalhos violentamente, arrancando suas folhagens.

E então, chocou-se contra os Escravos das Sombras que ainda disparavam na minha direção, içando-os do chão como se cordas invisíveis tivessem sido presas aos seus corpos. Abismada, eu via os corpos serem arremessados com força, girando em pleno ar, e repousando no asfalto de concreto, imóveis.

O funil que descia graciosamente da camada espessa de nuvens e tocava o chão, moveu-se mais uma vez, postando-se a várias dezenas de metros de mim, funcionando como uma barreira, impedindo que os demais conseguissem se aproximar.

E então veio a dor. Pontadas intensas, partindo de meu ombro esquerdo e espalhando-se como uma praga por todo o meu corpo, tirando minha concentração.

Concentrando minhas poucas forças remanescentes e trincando meus dentes com violência, eu mantive o funil circulando, girando e girando, mantendo aquela parede de vento entre mim e os humanos possessos.

Meu corpo discordou de minha decisão e eu curvei-me um pouco, a dor era tão intensa naquele momento que uma lágrima escorreu de meus olhos, descendo por meu rosto silenciosamente.

Tornei minha face para trás, vendo as figuras imóveis de Tamara e Peter, e ele ainda sustinha o peso de Christian.

- Entrem, agora! Entrem no prédio! Não sei por quanto tempo posso mantê-los assim!

Os olhos de Tamara esbugalharam no mesmo instante, eu sabia exatamente o que se passava pela sua cabeça: ela teria que me deixar para trás, teria que me deixar lá fora com eles, não havia alternativa, não havia escolha. Mas eu estava disposta a sacrificar-me ali pelo bem deles.

Não continuei encarando-os para saber que decisão tomariam. Eu precisava concentrar todos os meus esforços para manter o funil girando e impedir o avanço dos Escravos.

A dor era tamanha naquele momento que eu mal sustentava o peso de meu corpo, minha respiração encontrava-se dificultosa, pesada. E o ciclone oscilou bem em frente a mim, sua base tremendo no chão poeirento.

Ajoelhei no asfalto, apoiando-me nas palmas de minhas mãos, e obriguei-me a manter aquele funil girando. Mas a dor era forte demais, intensa demais, e eu fraquejava. Meus braços tremulavam sob o peso de meu tronco. As lágrimas escorriam de meu rosto com uma maior intensidade. E para eu, naquele instante, manter o ciclone, sustentá-los com meus esforços era algo inútil.

Os ventos já diminuíam gradativamente, a parede de ar enfraquecia, permitindo aos seres cruéis e assassinos avançar pouco a pouco. Eu ofeguei, sentindo a dor instaurar-se em meu interior como uma faca que é plantada e revirada em sua carne.

Estava quase desistindo de lutar contra aquela dor insuportável e esmagadora, quando duas mãos envolveram meu braço, puxando-me para cima e arrastando-me com determinação dali. Não tentei lutar, mesmo se quisesse, não tinha forças para tal.

Então deixei que Tamara rebocasse-me dali, levando-me até o jardim da escola e depois, para a passarela de pedra.

Observei o funil desaparecer lentamente, a nuvem de poeira baixou, recaindo sobre o asfalto novamente, galhos de árvores, folhagens, muita sujeira fora devolvida depois que o funil recuou para cima, retornando ao seu ponto de origem, enquanto as nuvens medonhas já se dispersavam, revelando os pontos luminosos mais uma vez, deixando que toda a cidade banhasse-se na luz diurna.

Tamara carregou-me consigo até a porta de vidro da frente da escola, depois me ajudou a me levantar do chão e correu comigo pelos estreitos corredores, outrora apinhados e barulhentos, agora vazios e silenciosos.

Tamara agarrava a manga de meu casaco, puxando-me e puxando-me, eu cambaleava para acompanhar seu ritmo frenético e acelerado, e com a respiração entrecortada e o coração aos pulos continuava a segui-la.

Chegamos ao ginásio do colégio, passamos pelas largas portas de ferro batido, onde Peter já nos esperava. Ele passou a grossa tranca na porta e prendeu um cadeado imenso a uma corrente. Mas será que isso os deteria?

Estaquei, apoiando minhas mãos em minhas coxas, respirando aos arquejos, enquanto Tamara acompanhava-me, tão exausta quanto eu.

Ela sorriu para mim, os olhos verdes tinindo como duas pedras esmeraldas.

- Eu sei, não precisa... agradecer-me.

Eu ri um pouco, de fato, eu estava devendo uma a ela. E mais tarde arranjaria um jeito de agradecê-la por me salvar e me tirar daquele pandemônio.

Peter aproximou-se de nós duas, a expressão cautelosa, os olhos analisavam a nós duas, certificando-se de que estávamos inteiras e bem. Só então me lembrei de Christian.

Varri todo o ginásio com meus olhos a sua procura e o encontrei repousado – ainda inconsciente – em uma das arquibancadas, o rosto pendendo de lado.

Corri até ele, amparando sua face entre minhas mãos, ele suava frio, e gemia inconsciente. Em um rompante, retirei sua jaqueta de couro negra e retirei meu casaco.Usei a manda de meu casaco para enxugar a camada pungente de suor que se acumulava em sua testa, dando a sua pele um aspecto meio doentio e brilhante.

Tamara aproximou-se de mim, os braços cruzados, o rosto vincado pela preocupação.

- O que acha que pode ter havido com ele?

- Eu não sei... – sussurrei – Mas o que nós podemos fazer além de esperar que ele desperte?

Uma pancada vinda do portão de ferro do ginásio sobressaltou-nos, virei-me assustada, vendo o portão ser sacudido por várias pancadas simultâneas. Era de arrepiar.

Peter afastou-se do portão, cauteloso e Tamara ajoelhou-se ao meu lado, os olhos assustados. As pancadas violentas sacudiam o portão de ferro batido, fazendo suas trancas tremularem. Perguntei-me por quanto tempo aquilo continuaria, ou quanto tempo o portão podia agüentar.

Tamara tapou os ouvidos e encolheu-se no chão, eu tornei a cuidar de Christian, enquanto Peter vigiava o portão largo, seus olhos fixados nas dobradiças grudadas à parede, e ele engoliu em seco...

A escuridão agora prevalecia, as sombras noturnas alcançaram-nos, invadindo nosso esconderijo, ensombrecendo nossas esperanças de escaparmos ilesos dali. Era noite.

Lá fora, ruídos estranhos predominavam, murmúrios e suplícios de seres condenados que vagam à meia-noite, rastejando seus corpos sombrios à procura de presas a que possam tragar.

As pancadas no portão de ferro batido do ginásio haviam cessado há algumas horas, mas mesmo assim, encontramo-nos temerosos.

A luz prateada da lua banhava-nos, penetrando pelas clarabóias, concedendo-nos um pouco de iluminação, dissipando as penumbras mais densas, dispersando-as, traçando um círculo iluminado no piso lustroso.

Tamara dormia profundamente, encolhida em uma das arquibancadas, remexendo-se a cada cinco minutos, não podia culpá-la pelos pesadelos.

Peter encontrava-se do outro lado do salão do ginásio, o tronco repousado languidamente na parede, os olhos cerrados, mas algo me dizia que ele não estava exatamente dormindo.

Eu ainda cuidava de Christian, que se mantinha inconsciente, pelo menos o suor pegajoso e frio desaparecera. Então ele devia estar revigorando-se. Eu não saíra de seu lado por nenhum instante. Tinha receio de que algo pior lhe acometesse, Christian era tão... imprevisível.

Ele remexeu-se, movendo-se pela primeira vez, sobressaltei-me um pouco, havia me acostumado tanto com sua imobilidade e seu silêncio ali. Suas pálpebras oscilaram, e ele finalmente abriu seus olhos azuis.

Ele encarou-me por longos segundos, talvez imaginando o que deveria ter acontecido enquanto estivera inconsciente. E então, fez menção de levantar-se. Minhas mãos o detiveram no mesmo instante, segurando em seus ombros, empurrando-o novamente para baixo.

- Não! – eu sussurrei – Você precisa descansar mais um pouco...

Ele lançou-me um olhar de descrença e depois bufou, irritado. Mas decidiu dar ouvidos a mim, e recostou-se sua cabeça ao travesseiro improvisado que eu tinha feito. O silêncio instaurou-se entre nós dois por poucos segundos, eu o quebrei, desesperada por respostas.

- Por que não me contou que o Wayeb também o afetava? Isso quase custou nossas vidas.

Ele revirou os olhos teatralmente, e depois deu de ombros, ignorando meu olhar zangado e repreensivo.

- Você se preocupa demais, não queria lhe dar mais um motivo para ficar paranóica.

- Ah claro! Isso foi de muita ajuda! – retruquei, mal humorada.

Christian olhou em derredor, observando o local onde nos encontrávamos, depois ergueu ambas as sobrancelhas.

- Como chegamos até aqui? Só me lembro de ter apagado na frente do prédio.

Suspirei, respondendo-lhe tranqüilamente, baixando meu tom de voz ao máximo.

- Eu usei meus poderes para retardá-los, não fui muito eficiente, mas foi o bastante para podermos nos esconder aqui.

Um sorriso de canto brotou em seus lábios no mesmo instante, e ele lançou-me um olhar malicioso. Eu corei – um pouco – e tive que desviar meu rosto.

- Está se saindo muito melhor do que eu havia previsto. Suas habilidades são incríveis.

- Então, vai me dizer o que houve? – tentei debilmente mudar de assunto antes que a conversa voltasse-se para mim novamente. Christian soltou um longo suspiro, rendendo-se contra sua vontade.

- O Wayeb também afeta meus poderes, durante esses cinco dias estarei um pouco enfraquecido, e meus poderes estarão um pouco... limitados.

- Isso é mau, não é mesmo? – conjeturei, imaginando um desertor maluco por aí, milhares de Escravos das Sombras vagando pela cidade, sedentos por carnificina, e nós, dois adolescentes humanos e indefesos, um Mediador enfraquecido, e eu, uma Elemental com os poderes selados. Argh, isso não podia ficar pior!

- É por isso que precisamos ficar unidos. – respondeu-me Christian – Pelo menos, até que o Wayeb termine, temos que ficar aqui.

Encarei, receosa, a porta grande de ferro batido. Christian acompanhou meu olhar, entendendo meu raciocínio.

- Duvido que possamos agüentar mais quatro dias aqui... – murmurei.

- Temos que fazer o que for necessário. – ele retrucou e eu suspirei, profundamente – E depois, quando tudo terminar aqui, você irá para a Itália comigo.

Encarei-o, sugestivamente, e então baixei meus olhos, eu poderia mesmo dizer adeus a tudo e a todos aqui? Eu poderia separar-me dele? Essas dúvidas corroíam-me.

Christian levantou-se, sentando-se na arquibancada, ficando face a face comigo. Seus dedos repousaram em meu queixo, sustentando meu olhar, fazendo-me encará-lo. Os olhos azuis recaíram sobre o meu rosto no mesmo instante, e eu entreabri meus lábios, surpresa pela intensidade presente neles.

Ele envolveu meu rosto com suas mãos quentes, afagando minha pele. Eu quis recuar, aquela não era a hora certa para aquele assunto, mas para Christian, nada parecia ter uma hora certa...

- Você não respondeu nenhuma de minhas perguntas, muito menos disse-me um sim ou um não. Para nenhuma delas.

- Christian, agora não... Eu...

- Shhhh... – ele silenciou meus lábios com seu indicador – Eu sei, sou paciente, posso esperar. Mas saiba que eu não desistirei de você assim tão facilmente. Principalmente porque você não me disse um não definitivo.

Eu o encarei, sugestiva, arqueando uma de minhas sobrancelhas.

- Eu também não disse “sim”. – lembrei a ele.

Ele soltou uma risada curta e eu fechei minha expressão no mesmo instante.

- Eu sei – rendeu-se ele –, mas só quero que saiba que estarei esperando por você, sempre. E também quero que saiba que no momento que tomar sua decisão e me escolher, não haverá volta, você será minha para sempre.

- O que quer dizer com isso? – perguntei-lhe, um pouco confusa.

- Quero dizer que no momento que você decidir vir até mim, independente da circunstância, eu não a deixarei escapar como meu irmão fez, eu jamais a perderei de vista, Agatha.

Foi a minha vez de soltar uma pequena risada, baixa, mas que o fez erguer as sobrancelhas.

- Está me dizendo que eu irei beijá-lo futuramente? – supus, ainda rindo um pouco, mas ele continuou encarando-me seriamente, então eu cessei meu riso, ele não estava brincando.

- Isso nós veremos. – desafiou-me ele.

- Não conte muito com isso. – eu o adverti, com um tom engraçado na voz que o fez sorrir imediatamente.

- Tudo bem, senhorita sabichona, por que não descansa um pouco? – sugeriu-me ele – Eu fico de vigia, pois seu amiguinho ali – ele apontou para Peter, que já tombava a face de lado – não vai durar muito.

Eu bocejei instantaneamente, não queria admitir, mas estava exausta, ter usado meus poderes naquela manhã esgotou-me as forças. O melhor para mim naquele momento seria realmente dormir um pouco.

Espalmei minhas mãos, rendendo-me, enquanto via Christian ajeitar-se sobre a arquibancada. Meneei a cabeça, incrédula, ora, que idéia, eu beijá-lo, até parece!

Mas enquanto eu ajeitava-me em um canto qualquer da imensa arquibancada, vi que ele virou-se uma última vez para mim, os olhos estreitando-se suavemente, o azul intenso cintilava como uma jóia rara até mesmo na escuridão mais espessa.

- Não se preocupe, Agatha, tudo dará certo. – murmurou ele à meia-voz.

Assenti, mas pensei comigo mesma, quisera eu poder ter essa certeza também. Quisera eu poder confiar no dia de amanhã e que os seus eventos aterradores terminariam todos, sem graves conseqüências na minha vida, na vida de Christian, na vida de Tamara e Peter e na vida de todos os moradores de South Hooksett.


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Notas finais do capítulo

*medo*

Eu hein, se fosse a Agatha já teria dado no pé dessa cidade há muito tempo! E não é que escrevendo esse capítulo eu me lembrei de vários filmes de zumbis que já assisti? E o próximo vai estar mais parecido ainda... hehe

E no próximo capítulo, o bicho vai pegar mesmo! O desertor finalmente se revela! Eu não sei ao certo se teremos mais 2 ou 3 capítulos, pq dependendo do desenrolar dos fatos do próximo, eu terei que dividi-lo em 2 partes, mas veremos como vai ficar...

E eu já mandei mensagens avisando alguns de que já coloquei uma prévia da 3ª fase da Saga no meu perfil, que se chamará "Espelho do Destino". O prólogo já está prontinho, e terminando essa fase, eu já começo ela...

E finalmente teremos a volta de Aidan e o confronto dos irmãos Satoya! Além é claro, da 1ª aparição de Sillentya e das Sete Tristezas e todos os Mediadores e Elementais...

Na 3ª fase, o terror sairá um pouquinho de cena, e cederá espaço para mais batalhas de tirar o fôlego! Fora que se passará na Itália, na bela cidade de Roma.

Então, até a próxima!!! Ah, e eu queria avisar de que vou acelerar o passo para terminar logo a 2ª fase. Pararei com os capítulos de Nopti Furtunoasa (para quem acompanha), para poder me concentrar apenas em Lágrimas da Alma, mas logo eu retorno a escrevê-la...

Beijinhos!!!!